Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)
Anexo II: O tenente, e depois capitão, António de Oliveira Liberato
1. Não fazia a mínima ideia da existência do tenente (e depois capitão) António de Oliveira Liberato, até começar a ler algo mais sobre a história de Timor.
Afinal foi um dos heróis portugueses de Timor durante a II Guerra Mundial. Era tenente de infantaria, adjunto do comando da Companhia de Caçadores de Timor (constituída por praças indígenas), cujo comandante, cap inf António Maria Freire da Costa (ex-aluno da Escola de Guerra, incorporado em 1917 para Infantaria, e natural de Lisboa) se terá suicidado, em Aileu, em 1 de outubro de 1941, juntamente com a esposa Maria Eugénia Freire da Costa, e mais outros três portugueses que estavam nessa noite em sua casa, incluindo o médico dr. Dinis Ângelo de Arriarte Pedroso (*).
O António de Oliveira Liberato tem dois livros de memórias sobre esse trágico período, os quais são abundantemente citados pelo médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, seu companheiro de infortúnio, autor de "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (Lisboa, 1972, 208 pp.), disponível em formato digital no Internet Archive.
Temos curiosidade em saber algo mais sobre alguns dos homens e mulheres, portugueses e timorenses, que conseguiram resistir, ativa ou passivamente, à ocupação estrangeira do território (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945), e nomeadamente à ocupação japonesa. Vamos, assim, continuar a publicar mais algumas notas de leitura do livro do citado José dos Santos Carvalho. (*)
António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália Editora, s/d, c. 1946, 242 pp.) e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 336 pp.). São dois livros, de difícil acesso, só dispossiveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.
Capa do livro "Quando Timor foi Notícia", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942, a que sobreviveu), irá casar depois com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, e com um filho de 12 anos, Luís Filipe, no campo de concentração de Liquiçá, em 1943. Viu a morte á sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois.
2. A par do advogado portuense, deportado por razões políticas em Timor, Carlos Cal Brandão ("Funo: guerrra em Timor", Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.), o tenente António de Oliveira Liberato foi o primeiro a publicar um relato circunstanciado dos acontecimentos ocorridos em Timor, entre finais de 1941 e setembro de 1945 ("O caso de Timor" Lisboa, Portugália Editora, s/d, c. 1946, 242 pp.).
O que aconteceu depois do seu regresso a Lisboa, aonde chegou a 15 de fevereiro de 1946 ? (*)
É um dos portugueses de Timor que é louvado pelo Governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho, no final do seu mandato, em 10 de outubro de 1945,
Estranhamente não há qualquer referência à sua prisão pelos japoneses em 9 de abril de 1944, e à sua deportação, três meses depois, em 11 de julho de 1944, para a ilha holandesa de Alor, juntamente com o engenheiro geógrafo Artur do Canto Resende, o gerente do BNU João Jorge Duarte e o aspirante administrativo José Duarte Santa. Eram todos "suspeitos" de colaborar com o inimigo (os Aliados).
Só o José Duarte Santa e o tenente Liberato sobreviveram, ao isolamento, aos maus tratos, à fome e à falta de assistência médica. Os dois sobreviventes só foram libertado em 28 de agosto de 1945.
Teor do louvor:
(...) Determinou, S. Ex. a o Ministro das Colónias que, pelo seu especial interesse fossem publicadas no Boletim as seguintes três portarias subscritas pelo Sr. governador de Timor:
PORTARIA N.° 1:137-A
Ao tornar a entrar a Colónia na sua vida normal, pelo restabelecimento pleno da autoridade portuguesa em todo o seu território, é dever do governador da Colónia não esquecer aqueles que, durante um período de extremas dificuldades, bem souberam cumprir o seu dever de portugueses e de funcionários, ocupando através de tudo os postos que as circunstâncias impuseram, trabalhando e sacrificando-se pelo bem comum, não hesitando nas mais rudes provações e dando tudo para serem úteis.
Todos os portugueses que em Timor se conservaram, souberam, de uma maneira geral e com um elevado espírito de patriotismo, cumprir o seu dever. Para eles são dirigidos neste momento os agradecimentos do governador da Colónia. Alguns houve, porém, e felizmente em número apreciável, que souberam cumprir esse dever por forma a bem merecerem ser distinguidos e terem individualmente público testemunho de louvor.
Nestes termos: O governador da Colónia de Timor, no uso das faculdades que lhe são atribuídas pelo artigo 31.° do Acto Colonial e pelo n.° 21.° do artigo 33.° da Carta Orgânica do Império Colonial Português, determina:
Que sejam louvados: (...)
— O tenente de infantaria António de Oliveira Literato, pela forma como sempre desempenhou as suas funções de subalterno da Companhia de Caçadores de Timor durante o período da ocupação da Colónia e especialmente pela sua actuação como comandante da força incumbida da repressão da revolta de indígenas da Circunscrição da Fronteira em Agosto, Setembro e Outubro de 1942, em que deu provas de tacto, energia e desprezo pelo perigo que o afirmam como óptimo oficial, com uma nítida compreensão dos seus deveres para com a Pátria e para com os seus chefes. (...)
Fonte: Excerto de "O restabelecimento da Autoridade Portuguesa de Timor", in José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 132-141.
O governador também louvou seis deportados mas nenhuns dos portuguese que alegadamente se suicidaram.
3. Sobre o tenente Liberato e outros "prisioneiros de guerra", escreveu J. S. Rocha (2022) (**):
(...) Se dúvidas houvesse, sobre o tratamento dado pelos japoneses aos portugueses e timorenses
acusados de colaborarem com as forças australianas, atente-se no caso do tenente Liberato.
No dia 10 de julho de 1944 um militar português, tenente António Oliveira Liberato, e três
destacados funcionários civis também portugueses, foram, após detenção e interrogatório pela polícia
militar nipónica, a temida kempeitai, transferidos por via marítima para um local de cativeiro situado
na ilha de Alor designado Kalabai, onde ficaram detidos numa casa rudimentar, rodeada de arame
farpado, à guarda de indígenas armados comandados por um militar japonês.
"O tenente Liberato, como outros habitantes, acusado de colaboração com as forças australianas e
holandesas, tinha sido detido dois meses antes e durante o seu cativeiro em Díli foi sujeito a apertado
interrogatório onde não faltaram sessões de tortura, 'suplícios de inenarrável desumanidade'...
"De acordo com diversos relatos, amarrados pelos pulsos com uma corda os prisioneiros eram em
seguida pendurados nas grades do cárcere e içados de modo que os pés não tocassem o solo. Seguiam-se sessões intermináveis de interrogatórios e espancamentos, apenas interrompidos por breves
períodos para rotação do interrogador ou então, seguindo um qualquer programa de ação psicológica
sobre o prisioneiro que passava, depois de espancado, sentá-lo à mesa, conversar amistosamente com
ele, fornecer-lhe algum alimento e cigarros sendo em seguida novamente pendurados nas grades.
"Aos prisioneiros timorenses era também aplicada a chamada 'tortura da água' que consistia em
deitar o prisioneiro '(...) de costas, sobre um estrado, amarrados de pés e mãos, na boca um funil
introduzido, à força, entre dentes, enchiam de água o estômago do paciente. Expelida pela boca, pelas
narinas e pelos ouvidos a primeira dose, repetia-se outra (...).'
"Em 23 de fevereiro de 1945 faleceu o primeiro português (eng. Canto Resende).
Observados por um médico em 20 de março de 1945, aos restantes três portugueses foi
diagnosticado beribéri e paludismo sem que, contudo, lhes fosse fornecido qualquer tipo de
tratamento. Em 25 desse mês faleceria outro português (gerente do BNU João Duarte) inchado e com
graves dificuldades de locomoção.
"Viriam a deixar a ilha de Alor em 23 de agosto de 1945, chegando a Díli no dia 28 do mesmo mês.
Só no dia seguinte, e após intervenção do Governador junto Cônsul japonês, seriam definitivamente
libertados." (...) (**)
As autoridades portugueses, já no pós-guerra, em meados de 1946, não se terão mostrado recetivas e colaborantes com a comissáo australiana para a investigação de crimes de guerra cometidos no território.
(...) Por outro lado, e "no que respeita ao reconhecimento dos actos valerosos levados a cabo por portugueses e
timorenses em Timor durante a ocupação japonesa, ele foi efetivo por parte das autoridades
australianas e inexistente por parte das portuguesas que se revelaram mais empenhadas em punir
exemplarmente muitos dos resistentes de Timor.
"Ainda antes da invasão japonesa, em janeiro de 1942, o Governador de Timor proibira a população
em geral de apoiar as forças australianas e holandesas que tinham entrado no território ilegalmente.
Essa proibição voltou a ser anunciada publicamente em agosto e setembro de 1943 passando a
contemplar também todo e qualquer apoio prestado às forças militares japonesas. (...) (**)
4. Não sabemos mais pormenores sobre o passado miltar do António de Oliveira Liberato. (Teria feito parte do CEP - Corpo Expedicionário Português, 1914/1918, como soldado ? ... Ao que parece, terá chegado a Timor nos anos 30. Em 1941 era viúva e tinha um filho de 12 anos. Pelas nossas contas, terá nascido em finais do séc. XIX. )
Na altura acabava de se reformar, era "capitão de infantaria QR" , tendo sido louvado, em setembro de 1964, pelo Comando Geral da PSP, pelos 17 anos dedicados àquela corporação como oficial, ou seja, desde 1947 até 1964. Era, além disso, o delegado distrital da Censura.
Regresso a Lisboa, do tenene Liberato, em 1946, a bordo do N/M Angola, Foto do arquivo de Helena Oliveira Liberato, filha de Cacilda e de António Oliveira Liberato, já falecidos, nascida em Portalegre em 1952. Com a devida vénia à Visão História nº 8, abril de 2010.
A propósito da nº temático dedicado a “Portugal e a II Guerra Mundial”, pela revista Visão História n.º 8 , abril de 2010, diz o autor:
(...) 'Este número fala sobre o caso de Timor, no tempo da ocupação japonesa. E ao fazê-lo, refere o então tenente António de Oliveira Liberato.
"Aquela figura militar foi uma personalidade importante em Portalegre após aquele episódio da História de Portugal, no qual foi interveniente e do qual deixou em dois livros o relato dos factos que protagonizou.
"Conhecemo-lo em Portalegre, no posto de capitão, sem no entanto, e dado a larguíssima diferença de idade, alguma vez lhe tivéssemos dirigido a palavra. (,...)
"Era uma figura importante do Estado Novo em Portalegre, e recordamo-lo como uma pessoa simpática. Que nos lembre, pertencia à Legião Portuguesa e era responsável pela Censura.
"Como seria de esperar, teve dissabores após a Revolução do 25 de Abril de 1974, tendo estado preso.
"Mas quando regressou, teve sempre o respeito e consideração da maioria das gentes de Portalegre." (...)
E é tudo o que por ora sabemos deste militar, herói de Timor na II Guerra Mundial.