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quinta-feira, 23 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"



Luís Graça (2014)
1. Continuação da publicação de uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que podemos tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença e os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...


Por razões de força maior (doença terminal de uma pessoa, familiar,  que lhe é muito querida), o nosso editor está temporariamente com menos disponibilidade (física e mental) para editar o blogue, encontrando-se desde há uma semana no Norte (Madalena, Vila Nova de Gaia). Conta com os outros coeditores, 
 nomeamente com o sempre fiel, atento , discreto e incansável Carlos Vinhal, para ir mantendo todos os dias a "montra do blogue" devidamentee atualizada e renovada. 

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", a sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, medicos de clinica geral e familiar, administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança, educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça, (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Ele espera, ao menos, que a leitura destes textos desperte algum interesse, tenha algum proveito para os nossos leitores e suscite alguns comentários (críticos)...  LG.


Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte II : 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro'

Publicado, numa outra versão, no Médico de Família, III Série, 7 (Julho de 2000), pp. 40-44.

(Continuação) (*)


3. Estereótipos em relação aos médicos e à medicina



Na Europa cristã medieval, a medicina (do latim medicina, que também deu origem à palavra mezinha) — enquanto teoria da doença e prática terapêutica — tinha claramente retrocedido em relação ao legado greco-romano e árabe.

De facto, imperavam o dogmatismo e a superstição. O prognóstico era regulado pela astrologia, tal como na Babilónia (Lafaille e Hiemstra, 1990). O diagnóstico era praticamente limitado à observação das "águas" (urina) e, depois da Renascença, à tomada dos pulsos. A observação clínica estava posta de lado. O conhecimento da anatomia e da fisiologia do corpo humano era grosseiro, já que a dissecação de cadáveres era expressamente proibida pela Igreja. Daí o provérbio " Se queres conhecer o teu corpo, mata o teu corpo"... 

Quanto à terapêutica, resumia-se à magia e às orações, com algumas ervas pelo meio e sobretudo com muitas purgas e sangrias.

A par disso, não existiam hábitos de higiene pessoal nem de salubridade pública.  As condições sanitárias ambientais eram péssimas. As cidades medievais não tinham sistemas de abastecimento de água potável e  saneamento básico. Os despejos domésticos eram feitos para a via pública.

Quanto à tradição romana dos banhos públicos, de algum modo valorizada pela medicina judaica e árabe na península ibérica, sabemos como ela foi duramente combatida pelo cristianismo: por exemplo, homens da Igreja como São Jerónimo (c.343-420) não viam razões válidas para um cristão tomar banho depois do baptismo... se bem que na planta arquitectónica do célebre mosteiro de Sankt Gallen (Séc. IX) estivessem previstas latrinas e balneários (Graça, 1996).

Refira-se que este preconceito teológico em relação aos cuidados de higiene corporal vai ter consequências nefastas na saúde da população europeia (por exemplo, no caso da peste negra de 1347-1353).

Além disso, a teoria demoníaca da doença tinha então muito ascendente e, no caso das devastadoras epidemias que assolavam a Europa (sob o nome comum de "peste"), o bode expiatório eram geralmente os judeus ou outras minorias como as "bruxas" (ou sejam,  as mulheres com "poderes" terapêuticoss, mágicos ou maléficos). Ou até os próprios médicos, os comerciantes ricos, a nobreza, o alto clero e a corte real que sempre tinham mais meios de fugir, "depressa e para longe", dos sítios atingidos pela peste ou outras epidemis, de acordo com a aforismo da Escola de Salerno: Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi (Mira, 1947. 415), ou seja, Foge depressa, vai para longe e volta devagar...

O ensino da medicina, por sua vez, era escolástico, ou seja, dominado pelo espartilho filosófico-teológico apesar de se ter assistido à criação e a um certo florescimento de algumas escolas médicas, umas absolutamente pioneiras e pluralistas (como foi o caso da Escola de Salerno, a civitas hippocratica onde, no virar do 1º milénio, se cruzavam as culturas judaica, cristã e muçulmana), outras já na sequência do desenvolvimento da universidade a partir de finais do Séc. XII (por ex., Bolonha em 1188, Valência em 1209, Oxford em 1214, Paris em 1215, Montpellier em 1220, Salamanca em 1230, Coimbra em 1279).

O ensino da medicina também beneficia da redescoberta dos autores gregos, por via da sua tradução para o latim na Escola de Salerno e sobretudo para o siríaco e para árabe, nomeadamente através da seita cristã dos nestorianos que se instalaram na Pérsia, a partir de 489.

Entre os seguidores de Nestório, patriarca de Constantinopla, condenado como herege no Concílio de Éfeso (431), há médicos e outros letrados que levam consigo numerosas obras de autores gregos (Hipócrates, Aristóteles, Dioscórides, Galeno, etc.). O contacto com os nestorianos foi decisivo para o desenvolvimento da medicina árabe.

Mais importante ainda é a tradução de dezenas de obras da medicina árabe para o latim medieval, graças nomeadamente a:

  • Constantino, o Africano (c. 1020-1087), em Itália (Salerno e Montecasssino);
  • Gerardo de Cremona (c. 1114-1187) em Espanha (Toledo, reconquistada pelos cristão em 1085); entre as muitas obras traduzidas por Gerardo conta-se o Cânone de Avicena, por volta de 1150).

No essencial, o ensino da medicina irá limitar-se, durante séculos, mais à reprodução (sucessivamente deformada) dos clássicos (sobretudo Galeno e Avicena) do que à aprendizagem dos seus métodos empíricos de diagnóstico e terapêutica, baseados na observação e até na experimentação.

Hipócrates e muitos outros autores gregos só serão redescobertos e lidos no original a partir da Renascença. Muitos manuscritos chegam então ao Ocidente com a queda de Constantinopla em 1453 e o fim do império bizantino.

Na antiguidade clássica greco-romana, a medicina era inseparável da filosofia, tal como o será da teologia entre os povos de religião monoteísta (os judeus, os cristãos e os muçulmanos). A ruptura epistemológica da medicina com o pensamento teológico e filosófico só se fará, muitos séculos depois, com o triunfo do positivismo em meados do Século XIX (e nomeadamente graças aos trabalhos de três figuras fundamentais: Bernard, Pasteur e Koch), sem esquecer obviamente toda uma plêiade de precursores, da Renascença ao Século das Luzes, que nas mais diversas áreas do conhecimento foram construindo as bases da moderna cultura científica (Goff e Sournia, 1985; Lyons e Petrucelli, 1991; Sournia, 1995) (vd. Caixa 1).




Quadro VIII— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o corpo, a anatomia,  a cirurgia e o cirurgião

Objecto

Provérbio

Anatomia Corpo

  • "Chegou a hora de pôr o cu na seringa"

  • "Homem e porco só depois de morto"

  • "Homem morto, cu de porco"

  • "Mais vale uma perna sã do que duas muletas"

  • "Mata o teu urso se queres ver o teu corpo"

  • "Naturalia non turpa" (1)

  • "O mal do olho coça-se com o cotovelo"

  • "Pôr as tripas ao sol"

  • "Se queres conhecer o teu corpo, abre o teu porco"

Cirurgia

  • "A pequeno mal, grande trapo" (Séc. XVII)

  • "Barriga que não leva dois jantares, facada nela"

  • "Mais vale um pé que duas muletas"

  • "Não mata mas dói"

  • "Por uma besta dar um coice, não se lhe há-de cortar a perna"

  • "Uma facada tem cura, mas a má palavra sempre dura"

Cirur-gião Mestre

  • "Deus é que sara e o mestre é que leva a prata"

  • "Dos feridos se fazem os mestres"

  • "Mão de mestre é unguento"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "Não há melhor cirurgião que o bem acutilado"

  • "O vinagre e o limão são meio cirurgião"

  • "Pratica e serás mestre"

  • "Quem se cura com benesses não vai à mão de mestres".


(1) Aforismo latino: "O que é natural [por exemplo, o corpo, os sues órgãos, 
a sua anatomia e a sua fisiologia] não envergonha"


Lentamente, e depois do gesto iconoclasta de Paracelso que, em 1520, queima publicamente as obras dos clássicos e passa a escrever em alemão, a medicina ocidental começa a afastar-se dum quadro teórico de referência que dominaria o ensino e a prática médicas durante quase milénio e meio. 

Mas essa ruptura epistemológica não vai ter efeitos imediatos nem na prática médica nem organização hospitalar. O hospital vai continuar tão fechado nos seus velhos regulamentos e hábitos como a própria universidade; esta, por sua vez, continuará de costas voltadas para o hospital até finais do Séc. XIX (1911, no caso português, ano da criação das Universidades de Lisboa e Porto e, portanto, das respetivas Faculdades de Medicina).

Os estudos sobre anatomia e fisiologia, nomeadamente a partir de A. Vesálio (1514-1564) e dos seus seguidores (Colombo, Fallopio, no Séc. XVI, Bonnet, no Séc. XVII, e Morgagni e Bichat, no Séc. XVIII), vão permitir o progressivo conhecimento do corpo humano (Quadro VIII), enquanto por outro lado surgem as primeiras técnicas de diagnóstico e terapêutica (auscultação, percussão, termómetro clínico, microscópio), lentamente aperfeiçoadas e divulgadas (Lyons e Petrucelli, 1991).

No Século XVIII, irá entretanto assistir-se ao desenvolvimento da prática e do ensino da medicina clínica, à cabeceira do doente, nomeadamente com H. Boerhaave (1668-1738), na universidade holandesa de Leiden, o qual introduz o termómetro e a lupa para uma observação clínica mais rigorosa. 

Por seu turno, a cirurgia, nomeadamente militar, faz progressos notáveis, apesar de ainda não poder contar com a anestesia, a antissepsia a assepsia e que só aparecerão em meados do Séc. XIX.


3.4. "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"


No polo oposto do físico e do cirurgião, está o boticário: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia", uma forma jocosa de ridicularizar a pobreza do arsenal terapêutico de que a medicina podia lançar mão, em contraste com o dinheiro que a botica arrecadava. Daí o aviso: "Foge do feio e do porcino, da botica e do remédio" (Quadro IX).

A arte farmacêutica é tão antiga como a arte médica, a ponto de se confundirem ou estarem intimamente relacionadas até à Alta Idade Média. A separação nítida entre a farmácia e a medicina, o seu ensino e a sua prática, dever-se-á aos árabes.

No entanto, a preparação de produtos de origem animal e vegetal, para prevenir as doenças, aliviar as dores ou curar as enfermidades, está documentada pelo menos desde o Egipto Antigo: por exemplo, o famoso papiro de Ebers (c. 1550 a. C.)  — do nome de Georg Ebers (1837-1898) a quem se deve o seu primeiro estudo, em 1875  — contém já uma lista de mais de 800 receitas, fórmulas ou prescrições terapêuticas e faz referência a mais de 7 mil substâncias medicinais (Lyons e Petrucelli, 1991; Dias, 1997).

Na Idade Média, o reconhecimento da actividade farmacêutica, como ofício, distinto da medicina, é atribuído à Escola de Salerno, fundada no Séc. IX, no sul da Itália.

Segundo leis promulgadas em 1240 pelo imperador Frederico II da Sicília e Nápoles, o médico estava proibido de ser proprietário de uma botica ou de preparar medicamentos, um princípio fundamental que irá influenciar toda a legislação posterior nesta matéria (Clément, 1995; Dias, 1997). E quanto à actividade farmacêutica, faz-se já a distinção entre os confectionnarii e os statunarii:

  • Os primeiros (confectionnarii) são produtores de mezinhas, percursores da indústria farmacêutica que se irá desenvolver na segunda metade do Séc. XIX: confeccionam por sua conta e risco, e de acordo com o estado da arte da sua época, os medicamentos que os médicos prescrevem para tratamento dos doentes;
  • Os statunarii, por seu turno, são meros comerciantes, limitando-se unicamente a vender as substâncias e os medicamentos simples, fornecidos pelos confectionnarii (Clément, 1995).

Não sabemos até que ponto havia, na época, acumulação dos dois ofícios. De qualquer modo, os statunarii estão mais próximos da figura do moderno farmacêutico do que do antigo boticário que, entre nós, também era um produtor de mezinhas.

Referindo-se à diferenciação técnica e social que já existia na Antiguidade Clássica entre a farmácia e a medicina, Dias (1997, Capº 4) diz o seguinte:

"Na Grécia eram várias as denominações utilizadas para os profissionais que lidavam com medicamentos, para além dos médicos (iatroi )":

  • Os mais comuns eram os pharmakopoloi (singular pharmakopolos), ou "vendedores de medicamentos (...) cujo estatuto social e cultura não seriam elevados";
  • Pelo contrário, os rhizotomoi (singular rhizotomos), ou cortadores de raízes, tinham outra importância e estatuto, sendo também maior a sua preparação e o seu nível de conhecimentos;
  • Outros grupos no campo farmacêutico incluíam os pharmakopoeoi (sing. pharmakopoeos), "preparadores de medicamentos", além dos preparadores de unguentos, os vendedores de misturas, os vendedores de especiarias e os vendedores de mirra;

Em Roma, vamos encontrar estas e outras categorias ligadas à produção e/ou comercialização de medicamentos, tais como os vendedores ambulantes e os vendedores fixos de medicamentos, os trituradores de drogas (pharmacotribae ou pharmacotritae ), os prepradores de cosméticos (pigmentari ) e os herbanários (herbarii ) (Dias, 1997).

Outra restrição imposta à actividade farmacêutica, em 1240, em Salerno, prendia-se com o prazo de validade dos produtos, armazenados na botica, e que passavam a estar sujeitos a inspecção: esses produtos não podiam ultrapassar o período de um ano após a data da sua aquisição (Dictionnaire médicale Dechambre, 1887, cit. por Clement 1995, p. 33).

Dias (1997, Cap. 6º) acrescenta que o édito de Melfi, promulgado por Frederico II em 1240, vinha também introduzir o princípio do "controlo dos preços dos medicamentos" bem como do "licenciamento e inspecção da actividade farmacêutica".

O boticário enquanto ofício, ou seja como corporação, é reconhecido em França, por alvará régio de 1514 (Clément, 1995). Mas já anos antes, em 1495, há notícia da criação da primeira botica hospitalar (no Hôtel-Dieu de Paris). Tratava-se, ao que parece, de uma medida de excepção, já que no hospital medieval eram o pessoal religioso que se ocupava da farmácia.

Depois da Revolução Francesa, o Estado vai regulamentar o exercício da actividade farmacêutica, através da lei de 21 de Germinal do Ano XI: a abertura de um estabelecimento farmacêutico bem como a preparação e a venda de medicamentos só são autorizadas aos farmacêuticos e desde que estes sejam, eles próprios, proprietários dos estabelecimentos.

A única excepção continuam a ser os hospitais que, sobretudo os menos importantes e com menos recursos, não tem farmacêuticos privativos, pagando uma avença ao boticário local para exercer a função a tempo parcial (o mesmo acontecendo em Portugal).

A partir do final do Séc. XVI, vamos já encontrar a figura do boticário hospitalar (e dos seus ajudantes), residindo no próprio estabelecimento e assistindo à visita médica dos doentes. No nosso país, esta inovação é bastante anterior, estando pelo menos consagrada no Regimento do Hospital Real de Todos os Santos (1504) e, mesmo anteriormente, no Hospital Termal das Caldas da Rainha (fundado em 1484).

Só no princípio do Séc. XIX, é que será criada em França a carreira dos farmacêuticos hospitalares (1802). As suas funções continuam a ser a preparação dos medicamentos, mas já de acordo com a farmacopeia em vigor.

Além disso, devem prestar contas anualmente, à comissão administrativa do estabelecimento hospitalar, da gestão da farmácia. De qualquer modo, durante muito tempo e até recentemente, o seu estatuto (admissão, nomeação, remuneração, incompatibilidades, competências, etc.) era técnica e socialmente inferior ao do médico (Graça, 1996).

No caso português, pode considerar-se como ponto de partida (histórico), para "a organização de serviços de saúde com diferenciação funcional" (Ferreira, 1990, p.85):

  • A separação das actividades do físico-mor e do cirurgião-mor (1460);
  • E o reconhecimento das funções dos boticários, os quais passaram, pelo menos, por lei, a substituir os médicos na preparação dos medicamentos (1461).

Mais especificamente, uma lei de 23 de Abril de 1461, de D. Afonso V, vem proibir aos físicos e cirurgiões a manufactura de mezinhas em suas casas, e aos boticários a administração de mezinhas aos doentes sem parecer do físico ou do cirurgião. 

Aquele diploma régio continha ainda importantes disposições sobre a produção, o comércio e o controlo dos fármacos, obrigando nomeadamente os boticários ao registo das receitas que aviavam, com o nome do prescritor e do cliente.

Merceeiros, especieiros e quaisquer outros ficavam igualmente proibidos de vender ao público medicamentos compostos nas localidades com boticário estabelecido. O mesmo se passava com os teriagueiros, em geral, judeus que vendiam de terra em terra a teriaga (um preparado utilizado como antítodo dos mais variados venenos, ou mais ou menos o equivalente à "banha da cobra" que ainda hoje se vende nas feiras das nossas vilas e aldeias) (Lemos, 1991; Mira, 1947).

Com o Regimento do Físico-Mor do Reino de 1521, os boticários passaram, por sua vez, a estar sujeitos à obrigação geral de exame de aprovação (Sobre a história da farmácia em Portugal, ver o excelente o site de J. P. Sousa Dias, alojado nas páginas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa).

A intervenção régia neste domínio (complementada pela acção do município de Lisboa, por exemplo através do regimento de 26 de Agosto de 1497 que vem exigir a existência, nas boticas, de livros de registo das receitas aviadas, de tabela de preços, de pesos e medidas apropriados, etc. ) deixa adivinhar a natureza e a amplitude da indisciplina que continuava a reinar na época, tanto ao nível do exercício da prática médica (vd. Caixa 2) como da produção, distribuição, venda e consumo de medicamentos Daí provavelmente a origem e a razão de ser de provérbios como:

  • "Antes (gastar) aqui que na farmácia"
  • "Dourar a pílula";
  • "Em ferreiro não pegues, em farmácia não proves, em sapateiro não sentes";
  • "Há de tudo como na botica";
  • "Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário" (Quadro IX).

Quadro IX — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a farmácia, o farmacêutico e a terapêutica

Objecto

Provérbio

Botica/

Farmácia

  • "Antes aqui que na farmácia"

  • "Com uma pipa de água fabrica o boticário um lagar de dinheiro"

  • "Em Agosto apanha macela que livra da botica o uso dela"

  • "Em ferreiro não pegues, em farmácia não proves, em sapateiro nem sentes"

  • "Foge do frio e do porcino, da botica e do remédio"

  • "Há de tudo como na botica" (Séc. XVIII)

  • "Não bebas em botica, nem pegues em ferreiro"

  • "Não há botica sem receitas"

  • "Por causa de titica ninguém vai à botica"

  • "Se a tua casa é húmida, abre conta na botica"

Boti-cário/ Farma-cêutico

  • "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "No boticário está a chave do médico e no escrivão a do peito"

  • "Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário"

  • "Quem tem doença, abra a bolsa e tenha paciência"

  • "Saúde o come que não boca grande"

Medica-mento/ Remédio

  • "Com um horto e um malvar há medicina para o lugar"

  • "Dourar a pílula"

  • "O bom remédio amarga na boca"

  • " O que não tem remédio remediado está"

  • "O tempo cura o enfermo e não o unguento"

  • "O tempo dá o remédio onde me falta o conselho"

  • "Para grandes males, grandes remédios"

  • "Para tudo há remédio senão para a morte"

  • "Pilulas engolem-se e não se mastigam"

  • "Pouca peçonha não mata"

  • "Tempo é remédio"

  • "Se a pílula bem soubera, não se dourara por fora"

  • "Uma pílula a tempo poupa nove"

Cura/ Terapêu-tica

  • "A má chaga má erva" (Séc. XVI)

  • "Com tempo tudo se cura"

  • "Enquanto há vida há esperança"

  • "Mal com mal se cura"

  • "Mastigar marmelada para os tísicos"

  • "Não adianta fugir com o cu à seringa"

  • "O que arde cura, o que aperta segura"

  • "Pior a cura que o mal"

  • "Se não morre do mal, morre da cura"

(Continua)

Caixa 1 - O legado hipocrático e arábico-galénico


A medicina hipocrática tem de ser entendida no contexto do desenvolvimento da filosofia grega   (e sobretudo dos filósofos naturalistas). Neles foi  Hipócrates (c. 460 - c. 377 a.C.) basear-se para construir a sua famosa teoria dos quatro humores   e do seu indispensável equilíbrio para explicar a doença e manter a saúde (Mossé, 1885; Sournia, 1995). Em termos sintéticos:

  • O universo (e, portanto, o corpo humano) é composto o do universo  por quatro elementos fundamentais: o fogo, a água, a terra e o ar;

  • A estes quatro elementos estão associadas quatro qualidades: o quente (fogo), o frio (água), o seco (terra), o húmido (ar);

  • A vida é mantida pelo equilíbrio de quatro humores, cada um procedente de uma determinada parte do corpo humano e tendo diferentes qualidades e funções:  (i) o sangue (coração),  que é quente e húmido; (ii) a fleuma (cérebro), fria e húmida; (iii) a bílis amarela (fígado), quente e seca; e (iv) a bílis (baço), fria e seca;

  • Do predomínio de um destes humores na constituição do indivíduo, resulta um determinado tipo fisiológico ou carácter: o sanguíneo, o fleumático, o colérico ou o melancólico;

  • doença não seria mais do que desequilíbrio dos humores;

  • O papel do médico é ajudar a physis a seguir os seus processos normais ou naturais;

  • De acordo com o aforismo hipocrático II. 22, "as doenças que resultam da plenitude são curadas por evacuação, as provenientes da vacuidade por repleção e, em geral, os contrários pelos contrários" (cit. por Sournia, 1995. 47, itálicos meus);

  • Daí o uso (e o abuso até ao Séc. XVIII) dos cautérios, sangrias, purgantes e vomitivos; no entanto, Hipócrates e a sua escola recomendava prudência no seu uso; também não davam excessiva importância aos medicamentos; valorizavam sobretudo o regime alimentar, o exercício físico e os bons ares.

Hipócrates é mais conhecido pelo célebre juramento que lhe é atribuído, ao que parece indevidamente (pelo menos na redacção que chegou até nós). Também se sabe muito pouco sobre a sua  vida, a não ser que (i) nasceu na ilha de Cós, (ii) era descendente de uma família de médicos, (iii) viajou muito no seu tempo e (iv) teve inúmeros discípulos. 

Sabe-se também muito pouco da sua teoria e da sua prática clínica:

  • Por Corpus Hippocraticum é conhecido o conjunto dos escritos (seus e da sua escola e seguidores) sobre o conhecimento médico da Antiguidade Clássica, de que o greco-romano Galeno foi sobretudo o grande divulgado;

  • Trata-se de uma colecção de 60 obras (escritas em diferentes épocas, entre o Séc. V e Séc. III a.C., por diferentes autores); o juramento de Hipócrates, por exemplo, faz parte provavelmente das obras mais tardias desta colecção;

  • De todas estas obras, as mais conhecidas são os Aforismos: traduzidos em latim no Séc. VI e depois em árabe e em hebreu, serão profusamente divulgados ao longo de toda a Idade Média;

  • Só no Séc. XV é que serão descobertas e traduzidas, para latim, directamente do grego, outras obras atribuídas a Hipócrates; talvez o mais interessante ainda sejam os seus casos clínicos, que irão despertar grande interesse na Europa do Séc. XVII.

O contributo da escola hipocrática terá sido sobretudo o de elaborar uma medicina racional (e não propriamente científica), constitutiva do acto médico, em que a prognosis precedia a diagnosis, e esta a decisão terapêutica e o tratamento. 

No entanto, sendo a saúde um estado de equilíbrio dinâmico, as drogas tinham um papel limitado na medicina hipocrática. Aliás, o próprio livro dos Aforismos começa com estas palavras, evocando a especificade e os limites da própria medicina: 

"A vida é curta e a arte [ de curar, ou seja a medicina] é longa, a ocasião fugidia,  a experiência enganadora, o juízo difícil" (tr. para o francês de E. Littré, cit. por Sournia, 1995.47).

Mas o mais famoso dos médicos da Antiguidade Clássica não é   Hipócrates mas, sim, Galeno, do séc. II (c.129- c.n199). Os seus escritos irão constituir as bases essenciais do ensino médico medieval até à reforma da universidade, já em pleno Ancien Régime, tal como de resto a obra de Dioscórides (c. 60). Por exemplo, as prescrições constantes da obra mais conhecida de Dioscórides, De materia medica (donde constam numerosas aplicações terapêuticas, baseadas em produtos minerais, vegetais e animais), serão copiadas e recopiadas durante 18 séculos, ou seja, até ao Séc. XIX (!).

Aliás, a farmacologia enquanto disciplina autónoma entrará só muito tardiamente na universidade: em 1891 é nomeado o primeiro professor de farmacologia nos EUA (John Jakob Abel, Universidade de Ann Arbor) e em 1905 na Inglaterra (University College London, Artur Cushney)(Lyons e Petrucelli, 1991).

De Galeno sabe-se o seguinte:

  • Nasceu em Pérgamo, por volta de 129, na Ásia Menor, e estudou medicina em Alexandria, a mais famosa escola médica da Antiguidade; aqui teve contacto com a obra de Herófilo (c. 335-280 a. C), e de Erasistrato (c. 300 a.C.-260 a.C.), considerado como os pais da anatomia e da fisiologia, respectivamente;

  • Foi cirurgião dos gladiadores da sua terra natal, tendo partido para Roma em 162; tornar-se-ia depois médico da corte do imperador Marco Aurélio e, com isso, famoso e rico;

  • Para além da prática clínica, interessou-se pela anatomia e a fisiologia; dissecou porcos e macacos e demonstrou que as veias continham sangue e não ar (contrariamente aos ensinamentos de Aristóteles); transmitiria, no entanto, para a posteridade uma errónea descrição do sistema de circulação.

Da sua vasta obra (cerca de 400 livros), resta cerca de um quarto. O seu ensino manteve-se praticamente intacto até à Renascença. O facto da sua autoridade ter sido reconhecida pela própria Igreja, fez com que se tornasse uma espécie de bíblica médica, para o melhor e para o pior. E todos aqueles que posteriormente ousaram contestar os seus ensinamentos de Galeno serão perseguidos, excomungados ou até mortos.

Não reconhecendo a força terapêutica que Hipócrates atribuía à natureza, o maior contributo de Galeno para o desenvolvimento da medicina ocidental terá sido a ideia de que os vários sintomas de doença podiam ser estudados e individualmente tratados, dependendo esse tratamento dos órgãos afectados pela doença. Esta concepção organicista da doença ainda constitui ainda hoje o essencial do paradigma biomédico da saúde/doença (Sournia, 1995). 

Há um provérbio popular que reflete a fama (mas também a divergência) entre os dois médicos mais famosos da Antiguidade Clássica: "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não".

Dos arabistas (mais do que dos árabes propriamente ditos, já que o termo se aplica a todos os autores que escreviam em árabe, incluindo os persas e os judeus), há que destacar Avicena (980-1037), o conhecido autor do Cânone da medicina.

Todavia, o mais famoso médico da Idade Média terá infelizmente sucumbido, na opinião de Sournia (1995. 89), à "embriaguez de um unicismo total": Para Avicena, "é o movimento dos astros que regula a data das sangrias e o prognóstico das doenças, a geometria dos polígonos determina a cicatrização das feridas, e o pulso, contado através da clépsidra de água, orienta o diagnóstico" .

  

Caixa 2 - Evolução do estatuto socioprofissional dos médicos e cirurgiões

Em princípio, poderiam exercer medicina todos aqueles que fossem diplomados (bacharéis) pela universidade portuguesa ou por universidade estrangeira, no respectivo curso. A prática abusiva da medicina por indivíduos sem a necessária qualificação levará, entretanto, D. João I (1357-1433) a ordenar, por carta real de 28 de Junho de 1392, que nenhum homem ou mulhercristão, mouro ou judeu, pratique a arte de curar sem primeiro se submeter a um exame de provas práticas feito perante o físico-mor (um cargo de nomeação régia que só será extinto em 1836).

Aqueles que eram aprovados no exame, obtinham uma carta autenticada com o selo real que lhes conferia o direito de exercer legalmente a prática da medicina. Previam-se já pesadas sanções pelo exercício ilegal da medicina, muito embora essa disposição não tivesse provavelmente grandes efeitos práticos. Esta carta real é considerada "a primeira disposição legislativa em relação ao exercício da medicina", segundo Lemos (1991, Vol. I. 73).

No Regimento do Físico-Mor, de 15 de Outubro de 1476, esse exame passa a estender-se aos próprios diplomados pela universidade, portuguesa ou estrangeira, o que não deixa de ser sintomático (Graça, 1996):

  • Estamos provavelmente perante a primeira tentativa de controlo do exercício da medicina pelos próprios médicos, sob a figura do físico-mor e, portanto, sob protecção do próprio poder régio;

  • Por outro lado, tudo indica que o número de diplomados em medicina por universidades estrangeiras tenha aumentado no Século XV.

Nesta época, a cirurgia era um simples ofício que se aprendia com a prática e experiência dos mais velhos, não estando o seu exercício regulamentado. Era, aliás, uma arte considerada menor, que exigia sobretudo força e destreza manuais, e como tal desprezada pelos médicos diplomados. Era praticada sobretudo pelos barbeiros (até a meados do Século XVIII).

Recorde-se que, segundo o Juramento de Hipócrates (vd. tradução de Littré, cit.por Sournia, 1995. 47-48), ao médico estava interdito o uso da faca (ou do bisturi): "Não praticarei a operação de corte, mas deixá-la-ei para as pessoas que dela se ocupam".

Só com o Regimento do Cirurgião-Mor, datado de 25 de Outubro de 1448, no tempo de D. Afonso V, é que passa igualmente a ser obrigatória a prestação de provas de habilitação para a prática da cirurgia. O exercício indevido da cirurgia passava também a ser punido com prisão.

O ofício de cirurgião só a partir do Século XVI é que começa a ser técnica e socialmente valorizado . Por exemplo, um alvará de 26 de Julho de 1559 vem restringir o seu exercício aos que fizessem ou tirassem o curso de dois anos do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS), com excepção dos diplomados pelas Universidades de Coimbra, Salamanca ou Guadalupe. Esta disposição não é, no entanto, confirmada  pelo Regimento do Cirurgião-Mor, de 12 de Dezembro de 1631.

Entretanto, no final do Séc. XVII, irão ser tomadas algumas providências relativas ao curso de cirurgia do HRTS:

  • Em 1693 exigia-se aos praticantes de cirurgia ou barbeiros, como habilitação mínima para frequentar o curso, o saber ler e escrever;

  • Por sua vez, o regimento de 1 de Julho de 1694 impõe já um numerus clausus (noventa alunos) e um internato de cinco anos (!).

Em 1758, o cirurgião-mor Soares Brandão volta a reiterar as exigências para admissão ao curso de cirurgia, ministrado naquele hospital: Saber ler e escrever, ter conhecimentos de ortografia e gramática da língua portuguesa, entre  outros requisitos (Mira, 1947).

Recorde-se que, contrariamente aos tratados médicos que eram obrigatoriamente escritos em latim, as obras sobre cirurgia e anatomia eram publicadas nas línguas vernáculas. Daí o professor de anatomia P. Dufau, no HRTS, ter aconselhado o seu brilhante aluno Manuel Constâncio, por volta de 1750, a estudar a "língua francesa para se aproveitar das excelentes obras que nela havia escritas" (Lemos, 1991, Vol. II.77).

Uma das saídas profissionais dos diplomados com o curso de cirurgia do HRTS era a marinha mercante, alistando-se como facultativos da tripulação, ou então o exército e a marinha de guerra, como facultativos militares.

Além Pirinéus, em França, a evolução do estatuto dos cirurgiões irá ser mais célere e, portanto,  mais favorável à reunificação da profissão médica (o que em Portugal só acontece tardiamente, muito depois da criação, em 1836, das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto):

  • Um passo importante no sentido do reconhecimento dos cirurgiões foi a criação, em França, da Academia Real de Cirurgia (em 1737);

  • Por outro lado, e não obstante a feroz oposição da conservadora Faculdade de Medicina de Paris, os cirurgiões passam inclusivamente a ter assento na Société Royale de Médecine, criada em 1778.

Aliás, já meio século antes, por decreto real de 23 de Abril de 1723, era reconhecida, em França,  a profissão de cirurgião. Em pleno Século das Luzes, P.-J. Desault (1738-1795) irá depois desenvolver o ensino da cirurgia à cabeceira do doente hospitalizado, podendo ser considerado o Boherhaave da cirurgia setecentista (Sournia, 1995).

Não obstante os progressos da prática clínica,  e  continuará a persistir, até ao final do Antigo Regime, uma dicotomia entre teoria e prática no campo da medicina. A maior parte da prática médica não era, de resto, controlada pelos próprios médicos, mesmo em país como a Inglaterra e a França onde  o associativisno médico estava mais desenvolvido.

Num texto significativo, L' Anarchie médicinale, publicado por um médico de Lyon, em 1772, pode ler-se: "La plus grande branche de la médecine pratique est entre les mains de gens nés hors du sein de l'art; les femmelettes, les dames de miséricorde, les charlatans, les mages, les rhabilleurs, les hospitalières, les moines, les religieuses, les droguistes, les herboristes, les chirurgiens, les apothicaires, traitent beaucoup plus de maladies, donnent beaucoup plus de remèdes que les medecins" (cit. por Foucault, 1972. 325. Itálicos nossos).

Entretanto, com a revolução francesa vão operar-se algumas mudanças decisivas no ensino e na prática da medicina e da cirurgia:

  • Em primeiro lugar, o ensino médico e cirúrgico é unificado;

  • Em segundo lugar, o latim cede o lugar ao francês;

  • Depois, são criadas cadeiras de prática clínica;

  • A atribuição de diplomas passa a depender da presença efectiva dos estudantes nas aulas de anatomia e nas enfermarias;

  • O hospital torna-se um verdadeiro local de aprendizagem;

  • E, last but not the leastIgreja perde a sua secular autoridade sobre o funcionamento das faculdades e dos hospitais.

Com o laicismo abre-se o caminho à inovação, à investigação e à independência científica. A pouco e pouco os ventos revolucionários acabam por chegar a toda a Europa, mesmo com um atraso de décadas, como acontecerá entre nós. Recorde-se nomeadamente o papel das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto (Mira, 1947):

  • À margem da Universidade de Coimbra, estas escolas  (e sobretudo a de Lisboa) irão dar um decisivo contributo para a unificação e afirmação da profissão médica;

  • Delas sairá a elite médica portuguesa da segunda metade do Século XIX.

Por outro lado, em 1841 ainda continuava o lento processo de secularização da Universidade de Coimbra, com a nomeação do seu primeiro reitor não eclesiástico...

 

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Nota do editor:

(*) ~Ultimo poste da série  > 20 de março de  2023  Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19224: (D)o outro lado do combate (38): Carta de Lourenço Gomes, datada de Samine, 3 de março de 1965, dirigida a Luís Cabral, expondo a dramática situação da farmácia do PAIGC (Jorge Araújo)



Citação: (1960-1961), "Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Lourenço Gomes e Armando Ramos em Conakry", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43591 (2018-10-26), com a devida vénia. [Há um quinto elemento, na ponta direita, que está por identificar]


Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.084. Título: Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Lourenço Gomes e Armando Ramos em Conakry. Assunto: Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Lourenço Gomes e Armando Ramos junto ao Secretariado Geral do PAIGC [A Direcção geral do PAIGC instalou-se em Conakry no mês de Maio de 1960]. Data: 1960-1961. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, 
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > 

OS PROBLEMAS DO PAIGC NA LOGÍSTICA DE SAÚDE EM 1965 > ENTRE A LUCIDEZ E O DESESPERO DE LOURENÇO GOMES, RESPONSÁVEL PELA ÁREA DA SAÚDE NA FRENTE NORTE


1. INTRODUÇÃO

Porque a curiosidade se mantém, definida como interesse pessoal no aprofundamento da temática em título, volto de novo ao fórum para partilhar convosco mais uma pequena investigação concluída a partir das últimas narrativas tendo por questão de partida a «Logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte». 

A primeira abordou o modo como se organizava o transporte dos guerrilheiros feridos no trajecto desde o interior do território [Região do Oio] até ao hospital de Ziguinchor, no Senegal – P18848, e a segunda descreveu o "protocolo" utilizado (o possível em função dos recursos) nas intervenções cirúrgicas na base do Sará – P19129.

Em ambos os casos, as narrativas foram reforçadas com imagens obtidas pela câmera do médico holandês Roel Coutinho, clínico que durante os anos de 1973/1974 cooperou com a estrutura militar do PAIGC em diferentes bases da região Norte, quer no apoio aos combatentes quer na ajuda humanitária às populações sob o seu controlo.

Recuando na fita do tempo até Março de 1965, dois anos após a guerrilha ter iniciado a luta armada em Tite (Janeiro de 1963), os dirigentes do PAIGC batiam-se com grandes dificuldades logísticas em todos as frentes, com destaque para a área da saúde. Para além da inexistência de estrutura clínica adequada, e qualificada, onde não era possível garantir qualquer consulta, prescrição ou tratamento em tempo útil a cada paciente, conceitos que fazem parte dos actos médicos, a falta de medicamentos necessários para cada uma das enfermidades era gerida com "pinças", por serem escassos e incertos. A forma mais comum de os obter era através do recurso ao endividamento, com compras a crédito (requisições), particularmente no circuito comercial (farmácias) existente nos locais mais próximos dos hospitais do PAIGC situados em Ziguinchor (Senegal), Koundara e Boké (Guiné-Conacri). [Vd. mapa a seguir.]




Porque esta situação se agravava/degradava diariamente, por efeito do crescente aumento do número de baixas - feridos e mortos - resultantes das actividades operacionais contra as NT, foram lançados diversos apelos a "Comités de Solidariedade" internacionais, incluindo as organizações da Cruz Vermelha, solicitando apoios urgentes nesta área, como provam os exemplos identificados no ponto 4.

2. ANTECEDENTES


Já em Julho de 1964, em documento elaborado por Lourenço Gomes, a quem tinha sido atribuída a incumbência de supervisionar as actividades do PAIGC na Frente Norte, enviado a Amílcar Cabral, aquele dava conta da estatística relacionada com os feridos e doentes existentes naquela zona sob a sua responsabilidade (ver quadro abaixo). 









Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35644 (2018-10-26), com a devida vénia.
Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.063. Assunto: Medicamentos. Enfermaria. Entrevista com Senghor. Prisão de Seco Camará. Em anexo: número de feridos e doentes em Casamansa e comunicado de guerra, assinado por Lourenço Gomes, referente ao dia 2 de Julho de 1964. Remetente: Lourenço Gomes, Samine [Frente Norte]. Destinatário Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Data: Domingo, 12 de Julho [Agosto?] de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.




Anexo 1 - Relação de doentes



Anexo 2 - Comunicado de guerra de  2/7/9164[, em vez do esperado extrato conta-corrente do mês de junho de 1964]


3.  CARACTERIZAÇÃO DA SITUAÇÃO EM MARÇO DE 1965


Em função das responsabilidades que lhe estavam atribuídas e perante as dificuldades em encontrar soluções para os diferentes problemas que lhe iam surgindo no âmbito das suas múltiplas actividades, tomou a iniciativa de caracterizar a situação em missiva enviada a Luís Cabral [Bissau; 1923 – Torres Vedras, 2011].

Eis o conteúdo da carta enviada de Samine (Senegal) por Lourenço Gomes, em 3 de Março de 1965 [conforme original reproduzido abaixo].

"Caro camarada Luís Cabral. Saudações combativas.

Esta carta é para lhe explicar as dificuldades que passo aqui na fronteira [Norte].

Se eu fosse uma pessoa que sofresse do coração, decerto já teria morrido; não só pelas dificuldades que se me apresentam, mas sim, e mais ainda, por presenciar todo o sofrimento que o nosso Povo passa nos Hospitais do Senegal, sem ter meios com que os possa valer, pois desde Dezembro do ano passado [1964] até à presente data, não tenho em mão a minha situação financeira, pois sempre o dinheiro para ocorrer às despesas, chega tarde e incompleto.

Bem sei que temos de lutar com dificuldades e admiro mesmo como a Direcção do nosso Partido, tem-nas conseguido superar até aqui. Reconheço isso tudo, mas o que me entristece é receber, em vez de palavras de encorajamento, recriminações desanimadoras.

O camarada Aristides [Pereira; Cabo Verde; 1923 – Coimbra; 2011], numa das últimas cartas que me escreveu, dizia-me que para um responsável não pode haver impossíveis. Devem levar em consideração que na fronteira Sul há um responsável em Koundara, um em Gaoual e ainda outro em Boké, ao passo que para esta fronteira toda sou eu o único responsável.

Os encargos são muitos, os trabalhos e canseiras sempre maiores cada dia que passa e os impossíveis têm de surgir, pois mesmo o carro não poderá trabalhar sem gasolina e esse só se consegue com dinheiro ou tendo as contas sempre em dia.

Na carta que escrevi ao camarada Aristides, pedia-lhe que me arranjasse um outro responsável, para qual o impossível não exista, para me substituir, porque confesso com toda a franqueza, que já estou cansado. Informei-lhe sobre as dívidas que temos a liquidar, principalmente na Farmácia, mas nem sequer obtive resposta sobre o assunto.

Estou sujeito a ser preso dum momento para o outro, pois o proprietário da Farmácia, constantemente me manda cobrar.

A minha situação é semelhante a de um náufrago, que já cansado de nadar e com as forças esgotadas se deixa morrer. Assim também, não será de admirar e até será muito possível o ter de qualquer dia abandonar o meu lugar, sem esperar ordens superiores, não significando isso falta de respeito ou disciplina, mas sim, só saturação e canseira até ao esgotamento.

Recebi pelo camarada Bicho, todos os recados de que lhe incumbiu, mas peço veja bem que sem possibilidades, talvez não poderei satisfazer os seus desejos, muito embora contra a minha vontade. O dinheiro que por ele recebi tive de o despender no pagamento de dívidas muito urgentes, não sabendo agora, como poderei mandar dez pessoas para Dakar, se não tenho sequer em meu poder dinheiro suficiente para adquirir gasolina para mandar o carro. Até à presente data, não recebi a importância completa correspondente ao mês de Fevereiro passado.

Bem sei que a si não lhe cabem culpas do que se passa, mas julgo do meu dever dar-lhe conhecimento, como membro que é da Direcção do Partido.

Amanhã mesmo, tenho de seguir para a fronteira de Kolda, possivelmente até perto de Cuntima, porque fui chamado com urgência de Salquenhé, para cumprir uma missão indispensável, em virtude do camarada Yaia Koté estar a estragar o trabalho do Partido naquela fronteira.

Desde sábado que mandei um portador com carta para o Osvaldo [Vieira; Bissau; 1938 - Koundara; 1974], mas até à presente data não regressou. Não sei se me poderei deslocar a Dakar em virtude da missão que vou cumprir, mas o camarada Bicho fica aqui a aguardar o portador e seguirá logo que o mesmo regresse de Morés".

Um abraço do camarada muito amigo.
Lourenço Gomes.

De acordo com o acima exposto (e independentemente do subtítulo dado a esta narrativa), será que estamos perante mais um exemplo de como pode ser explicado o provérbio «casa [ou organização] onde não há pão [recursos], todos ralham [ou se queixam] e ninguém tem razão»? Ou seja, onde falta o dinheiro e, por esse facto a vida se degrada por ausência das condições básicas que permitam um mínimo de dignidade às pessoas, então ninguém se entende porque, provavelmente, são todos culpados dessa situação. Foi isso o que aconteceu naquele contexto…?

Eis o original da carta enviada por Lourenço Gomes, desconhecendo-se a origem [ou a autoria] dos sublinhados [, possivelmente do destinatáriio, que mantivemos, não deixam de ser interessantes...].







Recorda-se, a este propósito, que três meses depois do envio desta carta por parte de Lourenço Gomes, o navio cubano Uvero desembarcava em Conacri, em 11 de Maio de 1965, a primeira (grande) ajuda de Cuba ao PAIGC, constituída por cento e trinta e sete caixas de medicamentos, entre outros apoios.


4. OS PEDIDOS DE APOIO EM MEDICAMENTOS CONTINUARAM…


Durante os treze anos da guerra colonial ou de libertação, os dirigentes do PAIGC nunca deixaram de fazer apelo a apoios internacionais, nomeadamente em equipamento militar e medicamentos.
Eis um exemplo do pedido de apoio de medicamentos elaborado dois anos depois da chegada da primeira ajuda remetida por Cuba [tradução do francês da nossa responsabilidade].
TELEGRAMAS ENVIADOS EM 11 DE ABRIL PARA:





COM O SEGUINTE CONTEÚDO… IGUAL PARA TODOS

Face situação muito grave motivo falta total medicamentos pondo em perigo vida diversos combatentes feridos e elementos população vítimas bombardeamentos lançamos apelo solicitando envio urgente todas quantidades possíveis medicamentos especialmente faixas - álcool - mercurocromo - curativos - algodão - antibióticos - antipalúdicos - antidiarreico - soro - leite (stop) Confiante vossa solidariedade aguardamos confirmação para endereço PAIGC BP 298 Conacri (stop) Fraternais agradecimentos.
Amílcar Cabral
Secretário-Geral PAIGC
Guiné dita portuguesa
Caixa Postal 298 Conacri, 11 Abril 1967





Citação: (1967), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34964 (2018-10-26), com a devida vénia.
Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07073.131.125. Assunto: Solicita o envio com urgência da maior quantidade de medicamentos. Situação grave por motivos de falta de medicamentos que põe em perigo de vida os combatentes feridos e elementos da população. Remetente: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Destinatário: Comité de Solidariedade Afro-asiático. Data: Terça, 11 de Abril de 1967. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Telegramas. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.



Citação: (1963-1973), "Enfermeira Nené Mendonça num hospital de campanha", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43675 (2018-10-26), com a devida vénia.
Fonte: CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.157. Título: Enfermeira Nené Mendonça num hospital de campanha. Assunto: Nené Mendonça, enfermeira do PAIGC num hospital de campanha [Hospital Carlos Sequeira], interior da Guiné. Data: 1963-1973. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.

Na imagem supra pode ver-se algumas caixas [de medicamentos?]. Na que aparece em primeiro plano está gravada a sua origem – Alemanha.

Oito anos depois da elaboração da carta de Lourenço Gomes agora divulgada, eis uma imagem da farmácia do hospital do PAIGC de Ziguinchor, seleccionada, com a devida vénia, da colecção do médico holandês Roel Coutinho.


ASC Leiden - Coutinho Collection - 22 20 - Ziguinchor Pharmacy head, Senegal - 1973. [Responsável da farmácia do hospital do PAIGC em Ziguinchor, enfermeiro Ramiro].

Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
29OUT2018.

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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de iutubro de 2018  Guiné 61/74 - P19129: (D)o outro lado do combate (37): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: As intervenções cirúrgicas na base do Sará: fotos do médico holandês Roel Coutinho (Jorge Araújo)