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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26053: Timor Leste: Passado e presente (25): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo IV: a situação sanitária em 1944: "um presente desolador e um futuro sombrio"...


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 6 > Ação Civilizadora e Colonizadora > Vila Salazar (Baucau)


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 3 > Trajos, ornamentos, pertences e armas > Foto 16890 > Chefes tradicionais e suas esposas (e um labáric, criança em tétum):  Dom Aleixo, régulo de Ainaro, António Magno, chefes e suas mulheres. D. António Magno, de Ainaro, é o terceiro a contar da esquerda, na primeira fila dos homens.


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 3 >  Trajos, ornamentos, pertences e armas > Foto 16890 > Talvez o liurai Carlos Borromeu Duarte, de Alas



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Estimativa da população: 472,2 mil

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)


1. José dos Santos Carvalho (de quem não conhecemos nem temos uma única foto) foi médico de saúde pública, no território português de Timor, ao tempo da ocupação estrangeira da ilha (primeiro, da parte dos australianos e holandeses, e, depois,  dos japoneses).  

Exerceu as funções de chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane,nas imediações de Díli,  desde meados de 1943. Deva ter uma dupla formação em medicina tropical e saúde pública (ou medicina preventiva, como se dizia nesse tempo).

Fora colocado, em  meados de 1940, em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial".  Devido à guerra, levou alguns meses a chegar ao território (seguindo pela rota do Cabo). Desembarcou em Díli nas vésperas do ano novo de 1943.

O livro que escreveu sobre Timor durante a ocupação japonesa,  baseia-se nas suas vivências,  recordações e registos  pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio. 

Em anexo, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde relativos a 1943, 1944 e 1945  (pp. 142-194), que têm algum interesse documental para  a historiografia da presença portuguesa em Timor.  

Um produto da Bayer,
antes da "bala mágica". Fonte: cortesia de 
Museu da Farmácia de Brixen (ou Bressanone),
Itália

Igualmente são interessantes para a história  da medicina tropical e para se conhecer o limitado e obsoleto  arsenal terapêutico da época bem como as causas da morbimortalidade nas colónias  

Havia produtos, por exemplo, como o calomelano (ou cloreto mercuroso) que era  
usado como purgante e fungicida, hoje descartado devido à sua toxicidade; ou o neosalvarsan (que veio substituir nos anos 10/20 do século passado o altamente tóxico salvarsan),  usado no tratamento da sífilis, antes do aparecimento da penicilina (a "bala-mágica", já disponível na farmacopeia ocidental desde 1941, mas completamente desconhecida em Timor nessa época; de resto, o farmacêutico, o   capitão miliciano Mário Artur Borges de Oliveira, foi o primeiro a desaparecer, tendo-se refugiado na Austrália). 

Antes da guerra, a farmácia era reabastecida semestralmente, com produtos oriundos da Metrópole...

O dr. José  dos Santos Carvalho nunca deixou de elaborar esses relatórios,  apesar das dramáticas circunstâncias em que teve de exercer as suas funções de médico e  chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. 

Não sabemos se chegaram, na altura, ao conhecimento de quem de direito, para além  do governador da colónia (que, na prática, esteve, durante os três  anos de ocupação, na situação de refém dos japoneses e sem possibilidades de comunicação com Lisboa).

O livro, de 208 pp.,  ilustrado com algumas fotografias, terá sido  escrito, em 1970, quando passavam  já 25 anos sobre o fim da ocupação japonesa do território de Timor e a libertação dos prisioneiros portugueses, timorenses e outros. Foi composto e impresso na Gráfica Lamego e publicado pela Livraria Portugal, 1972, editora que já não existe. 

O livro e o autor merecem, contudo,  não ser esquecidos. 

Imagem à direita: Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp. , il... Livro raro, só possível de encontrar em alfarrabistas, ou então no Internet Archive, em formato digital; está registado na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, podendo ser encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal e no Instituto Científico de Investigação Tropical.

Sobre a situação da saúde da população nessa época e naquele território, bem como sobre a organização e funcionamento dos serviços de saúde naquela longínqua colónia portuguesa do sudeste da Ásia, continuamos a 
reproduzir aqui alguns excertos e apontamentos. 

A sua leitura ajuda-nos a perceber até que ponto a saúde das populações e os serviços de saúde são tão  vulneráveis em situações-limite como a guerra com todo o seu cortejo de horrores e privações.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo IV:  Relatório dos Serviços de Saúde 
(Ano de 1944) (pp. 156-169)


(i) "Não houve epidemias nem se registaram casos 
de doenças eminentemente contagiosas."...  
A afirmação consta do relatório dos serviços de saúde de Timor, 
respeitante ao ano de 1944, e é subscrita pelo dr. José dos Santos Carvalho, chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene... 

Como se a guerra, a ocupação japonesa, a guerrilha e a contraguerrilha, o terror das "colunas negras", o isolamento total dos portugueses e dos timorenses, a fome, as deslocações, etc.,  não tivessem sido em si uma verdadeira calamidade...


(ii) de tempos a tempos, o cônsul do Japão serve de intermediário 
com as tropas ocupantes e, inclusive, consegue dispensar algum material médico-hospitalar ao dr. José dos Santos Carvalho.

(iii) recorre-se também aos médicos militares japoneses 
em casos em que um doente necessita de  uma grande cirurgia;

(iv) estranhamente há poucas referências à saúde da população local 
(que no princípio dos anos 40 seria superior a 400 mil): 
espalhada pelas montanhas,  não parece afluir aos serviços de saúde 
em Lahane e Liquiçá,  sobretudo por razões de segurança 
(medo dos bombardeamentos dos Aliados,  
e das represálias dos nipónicos); 
por essa razão, e devido também 
ao confinamento do próprio médico,
há um evidente enviesamento nestes relatórios, 
onde se fala sobretudo da saúde 
da pequena comunidade portuguesa e dos assimilados 
(cerca de 160 pessoas);

(v) os profissionais de saúde (com apenas 2 médicos) 
estão reduzidos ao mínimo (18, de um quadro original de 52, 
dos quais restavam 34 em 1943).

(...) Estado sanitário da população 

(...) Não houve epidemias nem se registaram casos de doenças eminentemente contagiosas. O sezonismo [paludismo ou malária], endemia que reina em Timor, mostrou-se em inúmeros casos, a que, felizmente, pudemos atalhar por termos recebido quinino. Não nos foi possível, porém, distribuí-lo com fins profiláticos, como seria conveniente. 

Muitos portugueses não têm rede mosquiteira nas camas, as aberturas das casas não são protegidas com redes metálicas e é impossível fazer-se uma campanha antimosquito. Por isso a estatística mostra muitíssimos casos de sezonismo, felizmente benigno, com exceção de dois casos de sezonismo pernicioso cerebral, um em Lahane, numa menina de quatro anos, que felizmente se salvou, e outro em Liquiçá, numa rapariga de quinze anos, filha de pai europeu, que faleceu com um acesso pernicioso epileptiforme.

 A febre biliosa hemoglobinúrica atacou dois europeus: um de dezasseis anos, que faleceu, em Maubara; outro de oito anos de idade, que foi salvo, em Liquiçá. 

A caquexia palustre matou uma criança, em Liquiçá. 

Registou-se somente um caso de disenteria, em Liquiçá. 

A gripe foi rara. 

Registaram-se dois casos de tuberculose: pulmonar, um num europeu e outro num timorense. 

Uma senhora teve várias hemoptises.

 As úlceras e feridas, como de costume, foram muito frequentes. 

Apareceram doenças resultantes da carência ou defeito da alimentação. 

As doenças restantes foram: 
  • cáries dentárias
  • diarreias 
  • colites
  • enterites
  • helmintíases
  • dispepsias 
  • dermatoses (sobretudo a sarna, furunculose e a micose designada por "Hong-Kong foot") [ou pé de atleta]
  • abcessos
  • boubas
  • reumatismo
  • nefrite
  • blenorragia
  • ascite 
  • otite
  • conjuntivite 
  • infeção puerperal.
Registaram-se seis óbitos, em Liquiçá e Maubara (em Díli não os houve) de europeus ou seus descendentes, por:
  • diarreia infantil 
  • caquexia palustre 
  • sezonismo agudo 
  • acesso pernicioso epileptiforme 
  • febre biliosa hemoglobinúrica 
  • gripe (insuficiência cardíaca) 
  • tuberculose pulmonar  (...)
 
Entre os portugueses, não europeus, tratados nas enfermarias, houve vários óbitos: 

(a) Em Liquiçá e Mambara: 

  • diarreia crónica (2)
  • tuberculose pulmonar (2) 
  • anasarca (hipoalimentação) (1)
  • traumatismo (queda) (1) 
  • cirrose alcoólica (1)
  • debilidade congénita (recém-nascido) (1)
  • parto (1)
  • infeção puerperal (2) 
(b) Em Lahane :

  • caquexia palustre (1)
  • gangrena (1)
  • astenia (1)
  • sezonismo pernicioso (1)
  • beribéri (1)

TOTAL 16 
 
(...) O óbito por gangrena deu-se numa timorense que veio pedir tratamento ao nosso hospital, passados dias de ter sido ferida num pé por estilhaço. Era impossível salvá-la por a gangrena estar já generalizada. 

A média de doentes internados no Hospital Dr. Carvalho foi de quatro, por dia. 

Pelo acima dito conclui-se que o estado sanitário da população não foi mau, atendendo às lamentáveis circunstâncias em que vivemos que, sem exagero, podem ser classificadas de péssimas. 

Os meses de junho e julho foram os piores, devido ao elevado número de casos de sezonismo, pelo que foram classificados de maus pelo senhor Delegado de Saúde de Liquiçá [ dr. Francisco Rodrigues]; fevereiro e agosto foram bons e os meses restantes regulares. 

Em Lahane o estado sanitário, abstraindo do sezonismo, com que sempre contámos, pôde, sempre, considerar-se regular. Não nos atacaram a valer os gérmenes infecciosos. As nossas forças e resistências orgânicas é que estão muito desfalcadas, devido a vários factores que descreverei na parte deste relatório respeitante à Higiene Pública. 

Medicamentos e material de penso 

Foi-nos fornecido durante o ano, por intermédio do sr. Cônsul do Japão, o seguinte : 

  • bicarbonato de sódio 
  • dermatol 
  • calomelanos 
  • lactose 
  • neosalvarsan 
  • sufaminum 
  • salicilato de bismuto 
  • sulfato de magnésio 
  • óxido amarelo de mercúrio 
  • tablóides de quinino (...)
  • ataduras de gaze (diversos tamanhos) 
  • gaze (...) 
  • algodão hidrófilo (...)
  • material diverso 
  • seringas de vidro (...) 
  • irrigadores
  • frascos conta-gotas
  • tubo de borracha para irrigador (...)

Sempre que há transporte, tenho mandado [de Lahane] para Liquiçá o máximo possível dos medicamentos que nos restam. 

Não se podem enviar grandes quantidades de medicamentos em frascos pois é necessário que estes vão bem acondicionados em caixotes para que não partam com os solavancos da camioneta. Os medicamentos expedidos em maior quantidade, durante o ano, foram: 

  • vaselina (32 kg)
  • enxofre (5 kg) 
  • sulfato de sódio (20 kg)
  • mel (6 litros)
  • borato de sódio (15 litros)
  • glicerina (2 litros)
  • ácido bórico (5 litros)
  • permanganato  de potássio (1,400 kg)
  • sulfato de cobre (6 kg)
  • calomelanos (0,450 kg)

Faltam-nos muitos medicamentos. Aqueles cuja necessidade mais se tem feito sentir, são os:

  • tónicos e antianémicos (arsenicais, iodados, sais de cálcio, fitina, etc) ; 
  • produtos opoterápicos (extratos de fígado e baço, ovarina, etc) ; 
  • derivados de ópio (codeína, dionina, etc) ; 
  • anestésicos locais (cocaína, salicilato de metilo, etc.) ; 
  • antisséticos intestinais (benzonaftol, fermentos láticos, etc); 
  • purgantes oleosos; 
  • ácido salicílico (para tratamento das micoses) ; 
  • tópicos antidermatósicos (óxido de zinco, ictiol, etc); 
  • iodofórmio (para tratamento das úlceras tropicais); 
  • e pode dizer-se que todos os medicamentos de uso corrente, em injeção (quinina, arrenal, cacodilato de sódio, cânfora, vitaminas, mercuriais, hemostáticos, etc., etc.). 

O permanganato de potássio, precioso para múltiplos fins, acabou, praticamente, e grande falta fará por ser de uso corrente nas moléstias que aparecem todos os dias. 

Tem-me preocupado imenso o facto de não poder vacinar contra a varíola, pelo menos as crianças. Neste capítulo de vacinas, nada poderemos improvisar. 

Movimento cirúrgico 

Os dois médicos portugueses têm feito tudo que lhes permitem os limitadíssimos recursos em material para operações. 

Além das suturas de feridas traumáticas, extrações de dentes e abertura de abcessos e fleimões, foram por eles praticadas operações de pequena cirurgia. 

O Delegado de Saúde de Liquiçá tratou os portugueses feridos por bala de metralhadora (ou estilhaço?) em Liquiçá e Maubara e extraiu um quisto cebáceo a um europeu; a mim coube fazer a extracção duma placenta aderente (post-abortum) à mulher de um europeu e o tratamento de feridas de guerra por estilhaços de bombas de avião numa mulher e numa criança timorense, tendo empregado o método de Friederich, que tão bons resultados deu na guerra de Espanha os quais, agora, eu pude verificar também. 

A pedido do Consulado do Japão foi por mim tratado um timorense com a maior parte da mão esquerda esfacelada, tendo o Hospital Nipónico fornecido o material preciso e dois enfermeiros que me ajudaram. 

Houve dois casos em que os nossos recursos não bastavam, um por falta de material e medicamentos e outro por necessitar operação de grande eirrurgia. No primeiro caso tratava-se de uma menina europeia que apresentava um enorme lipoma na região escapular esquerda; impossível operá-la por faltar o material de penso e cirúrgico esterilisados e todo o material de anestesia, além de que seria necessário reunir os dois médicos em serviço, o que agora não convinha, por que a saída de qualquer deles da sua zona de acção durante vários dias, significaria ausência de assistência médica aos portugueses da zona respectiva. 

No segundo caso tratava-se de uma senhora grávida de quatro meses, com hemorragias profusas e frequentes, devidas a uma inserção baixa da placenta. Somente uma operação com laparotomia a poderia salvar. 

Pelos motivos apontados foi necessário pedir auxílio ao hospital nipónico, onde as duas portuguesas foram operadas sendo os resultados inteiramente satisfatórios. Em seguida às operações, as doentes voltaram para o hospital português, tendo vindo os médicos nipónicos que as operaram, muito dedicadamente, fazer os curativos subsequentes tendo-me eu encarregado da sua assistência médica. (...)

Higiene pública Alimentação 


Tem deixado muito a desejar. Se no ano de 1943 já se não passou bem, no ano presente a situação agravou-se de tal modo que só Deus sabe para onde vamos. O total efectivo de calorias diárias, provenientes dos alimentos fornecidos, e é somente com esses que praticamente podemos contar, está longe do mínimo suficiente. 

Passa-se grande necessidade. O pouquíssimo que se obtém, quase se reduz ao arroz, hortaliças e cocos, e qualquer destes produtos vegetais nem sempre existem. Têm-se comido como hortaliças: 

  • folhas da batateira doce
  • baião (Amarantus sp.)
  • cancoom (Ipomoea aquática, Forsk.)
  • beldroegas
  • folhas de papaeira 
  • e mesmo as folhas e até medula de árvores (que os timorenses só aproveitam quando nada mais têm para o seu sustento). 

Mesmo assim, é frequente não termos verduras nas refeições. Por muito felizes nos damos quando recebemos folhas de nabos e das mostardas timorenses. Conforme as épocas do ano, aparece um ou outro complemento alimentício como: jacas verdes, bananas verdes, etc, etc, que depois de cozidos podem ser consumidos. 

Tomates e agriões são mimos raríssimos, que poucas vezes aparecem no mercado ou que alguns portugueses conseguiram pela cultura de escassos palmos de terra, pois nem sequer há terrenos próprios para horta, à sua disposição. 

Qualquer espécie de fruta é iguaria que raramente podemos provar. Os alimentos ricos em vitaminas, albuminóides e sais minerais, são precisamente os de mais difícil aquisição. A carne é fornecida em quantidades muito reduzidas. Recebem-se, em Liquiçá, algumas garrafas de leite que são distribuídas pelas crianças de tenra idade e pelos doentes. A carne de galinha e os ovos são manjares que não alcançamos. As batatas da Europa, que tão bem se davam e já tão largamente se cultivavam em Timor, desapareceram. Os feijões só raramente se vêem em Liquiçá. Em Díli há muito que não os há. A batata doce também já é rara. 

Os alimentos intoxicantes, que se podem tornar comestíveis por meio de preparação, em regra trabalhosa, já entraram na alimentação (mandioca amarga, feijão bravio e outros). Não é pois de admirar que se registassem casos de intoxicação alimentar (Liquiçá, em novembro, e dezembro) e de dispepsias, gastralgias, enterites e diarreias, devidas à má qualidade dos alimentos ingeridos. 

Além disso, a hipoalimentação já se revela por sintomas de doenças por carência. Os edemas maleolares são frequentes, a maior parte da população está asténica, a fadiga é rápida, há repetidas indisposições intestinais, a cárie dentária, a queda dos dentes e as hemorragias gengivais são quase gerais. A desnutrição de todos é evidente. 

Se não fora o nele (nome que se dá em Timor ao arroz ainda não descascado) que temos recebido (que por não ser polido contém vitamina BJ) e as verduras, já teríamos tido que lamentar a perda de vidas por avitaminoses, sobretudo por beribéri. Para cúmulo a preparação da comida torna-se difícil por haver pouca lenha.

O quadro presente é pois inteiramente desolador. Não há ninguém que não se tenha preocupado com a falta de alimentos. Pela minha parte, sempre que as ocasiões o proporcionaram indiquei a todos os perigos que adviriam da deficiência das refeições, ao mesmo tempo que dava conselhos úteis.

 Sentindo-me na obrigação de empregar o máximo do meu esforço para aumentar os recursos alimentares, preparei e conclui um trabalho em que registei tudo quanto pude apurar sobre a existência em Timor de produtos vegetais comestíveis, aproveitando-me quer do que encontrei nos livros, quer das informações dos timorenses, cuja experiência de séculos fornece muitos conhecimentos aproveitáveis. 

Este trabalho não só como documentário bromatológico (que nunca foi feito na Colónia) mas também pela aplicação às circunstâncias atuais, tem, por certo, bastante utilidade embora ela seja limitada pela forte razão de que nós não podemos procurar os alimentos mas somente receber os que nos trazem. 

Aos senhores Administradores do Concelho prontamente dei todas as indicações que particularmente me solicitaram, tendo-lhes fornecido tabelas da composição e valor calórico dos géneros alimentícios, dados sobre a quantidade e qualidade dos alimentos necessários para os europeus nos países tropicais, etc, habilitando-os assim a conhecer as bases do problema da nutrição dos portugueses. (...)


Bebidas alcoólicas 

Se, por um lado, é bom não as termos por motivos óbvios, por outro fazem falta como fontes de energia, e mesmo como tónico contra a acção deprimente do clima, o que é recomendado pelos higienistas tropicais, sobretudo ingleses, desde que as quantidades ingeridas sejam moderadas. 

Os vinhos de palmeira, sobretudo, possuem vitaminas B e C em quantidade apreciável, sendo bebida agradável e refrescante e fracamente alcoólica. É pena pois que em terra tão rica em palmeiras, não a possamos obter. 

Tabaco 

É de todos conhecida a imperiosa necessidade que o viciado tem de fumar. Praticamente todos os portugueses fumam. Poder-se-á pois calcular o quanto os indispõe e irrita o não poderem satisfazer esse hábito. Recorrem às folhas secas de arbustos e árvores que embrulham em qualquer papel por não haver mortalhas nem ao menos papel de seda. Assim iludem um pouco o seu vício, mas a saúde é que terá forçosamente de se ressentir. 

Asseio 

A água é pouca, em Liquiçá, e não há sabão. É de notar o esforço de uma senhora, cuja idade já não é para trabalhos, a qual consegue preparar sabão utilizando óleo de coco e os álcalis obtidos da cinza. Porém o óleo de coco é pouco para a alimentação... 

Vestuário

 Já velho e gasto e em reduzidas quantidades, a não ser para um ou outro mais protegido da sorte, em breve faltará. É de calcular que em época muito próxima, a maioria dos portugueses não tenha senão andrajos para vestir. 

Também, não existe calçado à venda nem material para o fabricar. Há muito que se calçam camparas — sandálias de madeira que se seguram aos pés por uma tira de pano. 

Utensílios domésticos 

Tem sido precioso o trabalho dos artífices portugueses que fabricam,  com folha de zinco, panelas, tachos, chaleiras, pratos, candeeiros ,etc. 

Outros portugueses têm fabricado, com muita habilidade, objetos muito úteis: escovas de dentes e pincéis para a barba (com crina de cavalo) , pentes (de tartaruga) , etc. 

Habitações 

Com a vinda dos portugueses de Maubara para Liquiçá, acentuou-se a plétora de habitantes em cada casa. O encombrement [sic, em francês, sobrelotação]« é manifesto. 

Ambulâncias 

Devido à concentração dos portugueses em Liquiçá, a ambulância de Maubara foi extinta. Nela prestou bons serviços o enfermeiro Vítor Madeira. Foi criada, na Granja Eduardo Marques, uma ambulância para tratamento dos portugueses que aí trabalham. Todos os enfermeiros auxiliares em serviço na Delegação de Liquiçá habitam, agora, na Granja. 

Cursos de enfermagem 

A 27 e 28 de abril fizeram-se em Liquiçá e Lahane os exames de frequência dos alunos do curso do primeiro ano Em junho começaram as aulas do segundo ano. 

Todas as lições que eu dei, foram escritas, constituindo um volume de cerca de 220 páginas dactilografadas. Deste modo ficou concluído um guia de enfermagem aplicado às condições de Timor, assim como um formulário constituído pelas fórmulas mais práticas para o tratamento dos doentes pelos enfermeiros, contando-se somente com os medicamentos essenciais que deverão existir em todas as ambulâncias, que agora se podem indicar com rigor. 

Este assunto é uma das partes do estudo da futura organização dos Serviços de Saúde, em que continuo a trabalhar. 

Bombardeamentos 

Este ano mostrou-se particularmente violento para nós. Liquiçá e Maubara foram metralhadas. Em Lahane caiu grande quantidade de bombas junto ao hospital e ao palácio do governo. As chapas de zinco que cobrem o hospital foram furadas pelos estilhaços e deslocadas pelo movimento do ar; os vidros que restavam partiram-se. 

É de notar a boa vontade com que o mestre Pinto (sargento artífice), por si próprio, se encarregou de reparar os estragos; o seu auxílio profissional tem sido dos mais úteis para o hospital. 

O ruído das explosões das bombas foi aterrador. Os enormes buracos que elas fizeram no terreno impressionaram imenso, até os menos timoratos. Os aviões vieram em certos meses quase todos os dias. Compreender-se-ia, pois, que o moral dos habitantes do Hospital e do Palácio estivesse profundamente deprimido. Felizmente tal não se verificou, sendo de notar que as senhoras demonstraram coragem surpreendente. 

Apesar de, após um bombardeamento se contar sempre com outro (pelo menos no dia seguinte), ninguém pediu para sair de Lahane. Todos se mantiveram no seu posto. 

Funcionários 

Têm estado sempre ao serviço, na sua totalidade, e por eles não foi requerida qualquer licença. Pode afirmar-se que, considerando o estado de intensa depressão moral em que vivemos, têm cumprido bem o seu dever. Os serviços de secretaria continuam a ser feitos com toda a boa vontade e proficiência pelo aspirante Domingos Afonso Ribeiro. 

Também ajudaram muito desinteressadamente, todos os serviços, o chefe de posto Francisco Torrezão e o chefe de posto João Gamboa (enquanto habitou em Díli) . 

Conclusões 

O estado sanitário da população só por milagre foi regular. A higiene pública deixa cada vez mais que desejar. O futuro é carregadamente sombrio. 

Contemos no próximo ano com elevada percentagem de óbitos, pois que, não possuindo os géneros alimentares convenientes nem os meios de fortalecer os organismos depauperados, também não teremos os medicamentos essenciais e as dietas próprias para tratamento dos numerosos doentes que forçosamente aparecerão. 

Repartição Técnica dos Serviços de Saúde e Higiene, em Lahane, aos 9 de fevereiro de 1945. O Chefe da Repartição interino, José dos Santos Carvalho
________
 
 (...) Pessoal em serviço e sua situação em 31 de Dezembro de 1944 

Médicos:
  • José dos Santos Carvalho,  Chefe da Repartição, interino, Director do Hospital, Delegado de Saúde de Díli;
  • Francisco Rodrigues,  Delegado de Saúde de Liquiçá.

Enfermeiros:

  • Victor José Gregório Madeira,  Sede da Delegação de Liquiçá; 
  • Luiz Correia de Lemos, idem;
  • Daniel Madeira, idem; 
  • Emílio Francisco de Oliveira, idem; 
  • António de Oliveira,  Hospital Dr. Carvalho;

Praticantes estagiários:

  • Orlando Correia de Lemos,  Sede da Delegação de Saúde de Liquiçá,
  •  Óscar Correia de Lemos, idem.

Enfermeiros auxiliares: 

  • Paulo de Jesus Granja Eduardo Marques Sebastião da Costa
  • João da Costa Pereira 
  • João Guterres
  • Francisco da Silva Vila Taveiro (Oekussi) 
  • Mateus Pereira
  • Pedro da Cruz,  Hospital Dr. Carvalho António Lopes 
  • Mateus Ribeiro,  Granja Eduardo Marques João Soriano
  • Aleixo da Costa, idem 
  • Manuel da Costa, Hospital Dr. Carvalho 

Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane, aos 31 de Dezembro de 1944. O Chefe da Repartição, int.°, José dos Santos Carvalho. 

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas, bold a vermelho, título: LG)

______________

Nota do editor:

quinta-feira, 23 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"



Luís Graça (2014)
1. Continuação da publicação de uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que podemos tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença e os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...


Por razões de força maior (doença terminal de uma pessoa, familiar,  que lhe é muito querida), o nosso editor está temporariamente com menos disponibilidade (física e mental) para editar o blogue, encontrando-se desde há uma semana no Norte (Madalena, Vila Nova de Gaia). Conta com os outros coeditores, 
 nomeamente com o sempre fiel, atento , discreto e incansável Carlos Vinhal, para ir mantendo todos os dias a "montra do blogue" devidamentee atualizada e renovada. 

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", a sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, medicos de clinica geral e familiar, administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança, educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça, (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Ele espera, ao menos, que a leitura destes textos desperte algum interesse, tenha algum proveito para os nossos leitores e suscite alguns comentários (críticos)...  LG.


Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte II : 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro'

Publicado, numa outra versão, no Médico de Família, III Série, 7 (Julho de 2000), pp. 40-44.

(Continuação) (*)


3. Estereótipos em relação aos médicos e à medicina



Na Europa cristã medieval, a medicina (do latim medicina, que também deu origem à palavra mezinha) — enquanto teoria da doença e prática terapêutica — tinha claramente retrocedido em relação ao legado greco-romano e árabe.

De facto, imperavam o dogmatismo e a superstição. O prognóstico era regulado pela astrologia, tal como na Babilónia (Lafaille e Hiemstra, 1990). O diagnóstico era praticamente limitado à observação das "águas" (urina) e, depois da Renascença, à tomada dos pulsos. A observação clínica estava posta de lado. O conhecimento da anatomia e da fisiologia do corpo humano era grosseiro, já que a dissecação de cadáveres era expressamente proibida pela Igreja. Daí o provérbio " Se queres conhecer o teu corpo, mata o teu corpo"... 

Quanto à terapêutica, resumia-se à magia e às orações, com algumas ervas pelo meio e sobretudo com muitas purgas e sangrias.

A par disso, não existiam hábitos de higiene pessoal nem de salubridade pública.  As condições sanitárias ambientais eram péssimas. As cidades medievais não tinham sistemas de abastecimento de água potável e  saneamento básico. Os despejos domésticos eram feitos para a via pública.

Quanto à tradição romana dos banhos públicos, de algum modo valorizada pela medicina judaica e árabe na península ibérica, sabemos como ela foi duramente combatida pelo cristianismo: por exemplo, homens da Igreja como São Jerónimo (c.343-420) não viam razões válidas para um cristão tomar banho depois do baptismo... se bem que na planta arquitectónica do célebre mosteiro de Sankt Gallen (Séc. IX) estivessem previstas latrinas e balneários (Graça, 1996).

Refira-se que este preconceito teológico em relação aos cuidados de higiene corporal vai ter consequências nefastas na saúde da população europeia (por exemplo, no caso da peste negra de 1347-1353).

Além disso, a teoria demoníaca da doença tinha então muito ascendente e, no caso das devastadoras epidemias que assolavam a Europa (sob o nome comum de "peste"), o bode expiatório eram geralmente os judeus ou outras minorias como as "bruxas" (ou sejam,  as mulheres com "poderes" terapêuticoss, mágicos ou maléficos). Ou até os próprios médicos, os comerciantes ricos, a nobreza, o alto clero e a corte real que sempre tinham mais meios de fugir, "depressa e para longe", dos sítios atingidos pela peste ou outras epidemis, de acordo com a aforismo da Escola de Salerno: Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi (Mira, 1947. 415), ou seja, Foge depressa, vai para longe e volta devagar...

O ensino da medicina, por sua vez, era escolástico, ou seja, dominado pelo espartilho filosófico-teológico apesar de se ter assistido à criação e a um certo florescimento de algumas escolas médicas, umas absolutamente pioneiras e pluralistas (como foi o caso da Escola de Salerno, a civitas hippocratica onde, no virar do 1º milénio, se cruzavam as culturas judaica, cristã e muçulmana), outras já na sequência do desenvolvimento da universidade a partir de finais do Séc. XII (por ex., Bolonha em 1188, Valência em 1209, Oxford em 1214, Paris em 1215, Montpellier em 1220, Salamanca em 1230, Coimbra em 1279).

O ensino da medicina também beneficia da redescoberta dos autores gregos, por via da sua tradução para o latim na Escola de Salerno e sobretudo para o siríaco e para árabe, nomeadamente através da seita cristã dos nestorianos que se instalaram na Pérsia, a partir de 489.

Entre os seguidores de Nestório, patriarca de Constantinopla, condenado como herege no Concílio de Éfeso (431), há médicos e outros letrados que levam consigo numerosas obras de autores gregos (Hipócrates, Aristóteles, Dioscórides, Galeno, etc.). O contacto com os nestorianos foi decisivo para o desenvolvimento da medicina árabe.

Mais importante ainda é a tradução de dezenas de obras da medicina árabe para o latim medieval, graças nomeadamente a:

  • Constantino, o Africano (c. 1020-1087), em Itália (Salerno e Montecasssino);
  • Gerardo de Cremona (c. 1114-1187) em Espanha (Toledo, reconquistada pelos cristão em 1085); entre as muitas obras traduzidas por Gerardo conta-se o Cânone de Avicena, por volta de 1150).

No essencial, o ensino da medicina irá limitar-se, durante séculos, mais à reprodução (sucessivamente deformada) dos clássicos (sobretudo Galeno e Avicena) do que à aprendizagem dos seus métodos empíricos de diagnóstico e terapêutica, baseados na observação e até na experimentação.

Hipócrates e muitos outros autores gregos só serão redescobertos e lidos no original a partir da Renascença. Muitos manuscritos chegam então ao Ocidente com a queda de Constantinopla em 1453 e o fim do império bizantino.

Na antiguidade clássica greco-romana, a medicina era inseparável da filosofia, tal como o será da teologia entre os povos de religião monoteísta (os judeus, os cristãos e os muçulmanos). A ruptura epistemológica da medicina com o pensamento teológico e filosófico só se fará, muitos séculos depois, com o triunfo do positivismo em meados do Século XIX (e nomeadamente graças aos trabalhos de três figuras fundamentais: Bernard, Pasteur e Koch), sem esquecer obviamente toda uma plêiade de precursores, da Renascença ao Século das Luzes, que nas mais diversas áreas do conhecimento foram construindo as bases da moderna cultura científica (Goff e Sournia, 1985; Lyons e Petrucelli, 1991; Sournia, 1995) (vd. Caixa 1).




Quadro VIII— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o corpo, a anatomia,  a cirurgia e o cirurgião

Objecto

Provérbio

Anatomia Corpo

  • "Chegou a hora de pôr o cu na seringa"

  • "Homem e porco só depois de morto"

  • "Homem morto, cu de porco"

  • "Mais vale uma perna sã do que duas muletas"

  • "Mata o teu urso se queres ver o teu corpo"

  • "Naturalia non turpa" (1)

  • "O mal do olho coça-se com o cotovelo"

  • "Pôr as tripas ao sol"

  • "Se queres conhecer o teu corpo, abre o teu porco"

Cirurgia

  • "A pequeno mal, grande trapo" (Séc. XVII)

  • "Barriga que não leva dois jantares, facada nela"

  • "Mais vale um pé que duas muletas"

  • "Não mata mas dói"

  • "Por uma besta dar um coice, não se lhe há-de cortar a perna"

  • "Uma facada tem cura, mas a má palavra sempre dura"

Cirur-gião Mestre

  • "Deus é que sara e o mestre é que leva a prata"

  • "Dos feridos se fazem os mestres"

  • "Mão de mestre é unguento"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "Não há melhor cirurgião que o bem acutilado"

  • "O vinagre e o limão são meio cirurgião"

  • "Pratica e serás mestre"

  • "Quem se cura com benesses não vai à mão de mestres".


(1) Aforismo latino: "O que é natural [por exemplo, o corpo, os sues órgãos, 
a sua anatomia e a sua fisiologia] não envergonha"


Lentamente, e depois do gesto iconoclasta de Paracelso que, em 1520, queima publicamente as obras dos clássicos e passa a escrever em alemão, a medicina ocidental começa a afastar-se dum quadro teórico de referência que dominaria o ensino e a prática médicas durante quase milénio e meio. 

Mas essa ruptura epistemológica não vai ter efeitos imediatos nem na prática médica nem organização hospitalar. O hospital vai continuar tão fechado nos seus velhos regulamentos e hábitos como a própria universidade; esta, por sua vez, continuará de costas voltadas para o hospital até finais do Séc. XIX (1911, no caso português, ano da criação das Universidades de Lisboa e Porto e, portanto, das respetivas Faculdades de Medicina).

Os estudos sobre anatomia e fisiologia, nomeadamente a partir de A. Vesálio (1514-1564) e dos seus seguidores (Colombo, Fallopio, no Séc. XVI, Bonnet, no Séc. XVII, e Morgagni e Bichat, no Séc. XVIII), vão permitir o progressivo conhecimento do corpo humano (Quadro VIII), enquanto por outro lado surgem as primeiras técnicas de diagnóstico e terapêutica (auscultação, percussão, termómetro clínico, microscópio), lentamente aperfeiçoadas e divulgadas (Lyons e Petrucelli, 1991).

No Século XVIII, irá entretanto assistir-se ao desenvolvimento da prática e do ensino da medicina clínica, à cabeceira do doente, nomeadamente com H. Boerhaave (1668-1738), na universidade holandesa de Leiden, o qual introduz o termómetro e a lupa para uma observação clínica mais rigorosa. 

Por seu turno, a cirurgia, nomeadamente militar, faz progressos notáveis, apesar de ainda não poder contar com a anestesia, a antissepsia a assepsia e que só aparecerão em meados do Séc. XIX.


3.4. "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"


No polo oposto do físico e do cirurgião, está o boticário: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia", uma forma jocosa de ridicularizar a pobreza do arsenal terapêutico de que a medicina podia lançar mão, em contraste com o dinheiro que a botica arrecadava. Daí o aviso: "Foge do feio e do porcino, da botica e do remédio" (Quadro IX).

A arte farmacêutica é tão antiga como a arte médica, a ponto de se confundirem ou estarem intimamente relacionadas até à Alta Idade Média. A separação nítida entre a farmácia e a medicina, o seu ensino e a sua prática, dever-se-á aos árabes.

No entanto, a preparação de produtos de origem animal e vegetal, para prevenir as doenças, aliviar as dores ou curar as enfermidades, está documentada pelo menos desde o Egipto Antigo: por exemplo, o famoso papiro de Ebers (c. 1550 a. C.)  — do nome de Georg Ebers (1837-1898) a quem se deve o seu primeiro estudo, em 1875  — contém já uma lista de mais de 800 receitas, fórmulas ou prescrições terapêuticas e faz referência a mais de 7 mil substâncias medicinais (Lyons e Petrucelli, 1991; Dias, 1997).

Na Idade Média, o reconhecimento da actividade farmacêutica, como ofício, distinto da medicina, é atribuído à Escola de Salerno, fundada no Séc. IX, no sul da Itália.

Segundo leis promulgadas em 1240 pelo imperador Frederico II da Sicília e Nápoles, o médico estava proibido de ser proprietário de uma botica ou de preparar medicamentos, um princípio fundamental que irá influenciar toda a legislação posterior nesta matéria (Clément, 1995; Dias, 1997). E quanto à actividade farmacêutica, faz-se já a distinção entre os confectionnarii e os statunarii:

  • Os primeiros (confectionnarii) são produtores de mezinhas, percursores da indústria farmacêutica que se irá desenvolver na segunda metade do Séc. XIX: confeccionam por sua conta e risco, e de acordo com o estado da arte da sua época, os medicamentos que os médicos prescrevem para tratamento dos doentes;
  • Os statunarii, por seu turno, são meros comerciantes, limitando-se unicamente a vender as substâncias e os medicamentos simples, fornecidos pelos confectionnarii (Clément, 1995).

Não sabemos até que ponto havia, na época, acumulação dos dois ofícios. De qualquer modo, os statunarii estão mais próximos da figura do moderno farmacêutico do que do antigo boticário que, entre nós, também era um produtor de mezinhas.

Referindo-se à diferenciação técnica e social que já existia na Antiguidade Clássica entre a farmácia e a medicina, Dias (1997, Capº 4) diz o seguinte:

"Na Grécia eram várias as denominações utilizadas para os profissionais que lidavam com medicamentos, para além dos médicos (iatroi )":

  • Os mais comuns eram os pharmakopoloi (singular pharmakopolos), ou "vendedores de medicamentos (...) cujo estatuto social e cultura não seriam elevados";
  • Pelo contrário, os rhizotomoi (singular rhizotomos), ou cortadores de raízes, tinham outra importância e estatuto, sendo também maior a sua preparação e o seu nível de conhecimentos;
  • Outros grupos no campo farmacêutico incluíam os pharmakopoeoi (sing. pharmakopoeos), "preparadores de medicamentos", além dos preparadores de unguentos, os vendedores de misturas, os vendedores de especiarias e os vendedores de mirra;

Em Roma, vamos encontrar estas e outras categorias ligadas à produção e/ou comercialização de medicamentos, tais como os vendedores ambulantes e os vendedores fixos de medicamentos, os trituradores de drogas (pharmacotribae ou pharmacotritae ), os prepradores de cosméticos (pigmentari ) e os herbanários (herbarii ) (Dias, 1997).

Outra restrição imposta à actividade farmacêutica, em 1240, em Salerno, prendia-se com o prazo de validade dos produtos, armazenados na botica, e que passavam a estar sujeitos a inspecção: esses produtos não podiam ultrapassar o período de um ano após a data da sua aquisição (Dictionnaire médicale Dechambre, 1887, cit. por Clement 1995, p. 33).

Dias (1997, Cap. 6º) acrescenta que o édito de Melfi, promulgado por Frederico II em 1240, vinha também introduzir o princípio do "controlo dos preços dos medicamentos" bem como do "licenciamento e inspecção da actividade farmacêutica".

O boticário enquanto ofício, ou seja como corporação, é reconhecido em França, por alvará régio de 1514 (Clément, 1995). Mas já anos antes, em 1495, há notícia da criação da primeira botica hospitalar (no Hôtel-Dieu de Paris). Tratava-se, ao que parece, de uma medida de excepção, já que no hospital medieval eram o pessoal religioso que se ocupava da farmácia.

Depois da Revolução Francesa, o Estado vai regulamentar o exercício da actividade farmacêutica, através da lei de 21 de Germinal do Ano XI: a abertura de um estabelecimento farmacêutico bem como a preparação e a venda de medicamentos só são autorizadas aos farmacêuticos e desde que estes sejam, eles próprios, proprietários dos estabelecimentos.

A única excepção continuam a ser os hospitais que, sobretudo os menos importantes e com menos recursos, não tem farmacêuticos privativos, pagando uma avença ao boticário local para exercer a função a tempo parcial (o mesmo acontecendo em Portugal).

A partir do final do Séc. XVI, vamos já encontrar a figura do boticário hospitalar (e dos seus ajudantes), residindo no próprio estabelecimento e assistindo à visita médica dos doentes. No nosso país, esta inovação é bastante anterior, estando pelo menos consagrada no Regimento do Hospital Real de Todos os Santos (1504) e, mesmo anteriormente, no Hospital Termal das Caldas da Rainha (fundado em 1484).

Só no princípio do Séc. XIX, é que será criada em França a carreira dos farmacêuticos hospitalares (1802). As suas funções continuam a ser a preparação dos medicamentos, mas já de acordo com a farmacopeia em vigor.

Além disso, devem prestar contas anualmente, à comissão administrativa do estabelecimento hospitalar, da gestão da farmácia. De qualquer modo, durante muito tempo e até recentemente, o seu estatuto (admissão, nomeação, remuneração, incompatibilidades, competências, etc.) era técnica e socialmente inferior ao do médico (Graça, 1996).

No caso português, pode considerar-se como ponto de partida (histórico), para "a organização de serviços de saúde com diferenciação funcional" (Ferreira, 1990, p.85):

  • A separação das actividades do físico-mor e do cirurgião-mor (1460);
  • E o reconhecimento das funções dos boticários, os quais passaram, pelo menos, por lei, a substituir os médicos na preparação dos medicamentos (1461).

Mais especificamente, uma lei de 23 de Abril de 1461, de D. Afonso V, vem proibir aos físicos e cirurgiões a manufactura de mezinhas em suas casas, e aos boticários a administração de mezinhas aos doentes sem parecer do físico ou do cirurgião. 

Aquele diploma régio continha ainda importantes disposições sobre a produção, o comércio e o controlo dos fármacos, obrigando nomeadamente os boticários ao registo das receitas que aviavam, com o nome do prescritor e do cliente.

Merceeiros, especieiros e quaisquer outros ficavam igualmente proibidos de vender ao público medicamentos compostos nas localidades com boticário estabelecido. O mesmo se passava com os teriagueiros, em geral, judeus que vendiam de terra em terra a teriaga (um preparado utilizado como antítodo dos mais variados venenos, ou mais ou menos o equivalente à "banha da cobra" que ainda hoje se vende nas feiras das nossas vilas e aldeias) (Lemos, 1991; Mira, 1947).

Com o Regimento do Físico-Mor do Reino de 1521, os boticários passaram, por sua vez, a estar sujeitos à obrigação geral de exame de aprovação (Sobre a história da farmácia em Portugal, ver o excelente o site de J. P. Sousa Dias, alojado nas páginas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa).

A intervenção régia neste domínio (complementada pela acção do município de Lisboa, por exemplo através do regimento de 26 de Agosto de 1497 que vem exigir a existência, nas boticas, de livros de registo das receitas aviadas, de tabela de preços, de pesos e medidas apropriados, etc. ) deixa adivinhar a natureza e a amplitude da indisciplina que continuava a reinar na época, tanto ao nível do exercício da prática médica (vd. Caixa 2) como da produção, distribuição, venda e consumo de medicamentos Daí provavelmente a origem e a razão de ser de provérbios como:

  • "Antes (gastar) aqui que na farmácia"
  • "Dourar a pílula";
  • "Em ferreiro não pegues, em farmácia não proves, em sapateiro não sentes";
  • "Há de tudo como na botica";
  • "Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário" (Quadro IX).

Quadro IX — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a farmácia, o farmacêutico e a terapêutica

Objecto

Provérbio

Botica/

Farmácia

  • "Antes aqui que na farmácia"

  • "Com uma pipa de água fabrica o boticário um lagar de dinheiro"

  • "Em Agosto apanha macela que livra da botica o uso dela"

  • "Em ferreiro não pegues, em farmácia não proves, em sapateiro nem sentes"

  • "Foge do frio e do porcino, da botica e do remédio"

  • "Há de tudo como na botica" (Séc. XVIII)

  • "Não bebas em botica, nem pegues em ferreiro"

  • "Não há botica sem receitas"

  • "Por causa de titica ninguém vai à botica"

  • "Se a tua casa é húmida, abre conta na botica"

Boti-cário/ Farma-cêutico

  • "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "No boticário está a chave do médico e no escrivão a do peito"

  • "Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário"

  • "Quem tem doença, abra a bolsa e tenha paciência"

  • "Saúde o come que não boca grande"

Medica-mento/ Remédio

  • "Com um horto e um malvar há medicina para o lugar"

  • "Dourar a pílula"

  • "O bom remédio amarga na boca"

  • " O que não tem remédio remediado está"

  • "O tempo cura o enfermo e não o unguento"

  • "O tempo dá o remédio onde me falta o conselho"

  • "Para grandes males, grandes remédios"

  • "Para tudo há remédio senão para a morte"

  • "Pilulas engolem-se e não se mastigam"

  • "Pouca peçonha não mata"

  • "Tempo é remédio"

  • "Se a pílula bem soubera, não se dourara por fora"

  • "Uma pílula a tempo poupa nove"

Cura/ Terapêu-tica

  • "A má chaga má erva" (Séc. XVI)

  • "Com tempo tudo se cura"

  • "Enquanto há vida há esperança"

  • "Mal com mal se cura"

  • "Mastigar marmelada para os tísicos"

  • "Não adianta fugir com o cu à seringa"

  • "O que arde cura, o que aperta segura"

  • "Pior a cura que o mal"

  • "Se não morre do mal, morre da cura"

(Continua)

Caixa 1 - O legado hipocrático e arábico-galénico


A medicina hipocrática tem de ser entendida no contexto do desenvolvimento da filosofia grega   (e sobretudo dos filósofos naturalistas). Neles foi  Hipócrates (c. 460 - c. 377 a.C.) basear-se para construir a sua famosa teoria dos quatro humores   e do seu indispensável equilíbrio para explicar a doença e manter a saúde (Mossé, 1885; Sournia, 1995). Em termos sintéticos:

  • O universo (e, portanto, o corpo humano) é composto o do universo  por quatro elementos fundamentais: o fogo, a água, a terra e o ar;

  • A estes quatro elementos estão associadas quatro qualidades: o quente (fogo), o frio (água), o seco (terra), o húmido (ar);

  • A vida é mantida pelo equilíbrio de quatro humores, cada um procedente de uma determinada parte do corpo humano e tendo diferentes qualidades e funções:  (i) o sangue (coração),  que é quente e húmido; (ii) a fleuma (cérebro), fria e húmida; (iii) a bílis amarela (fígado), quente e seca; e (iv) a bílis (baço), fria e seca;

  • Do predomínio de um destes humores na constituição do indivíduo, resulta um determinado tipo fisiológico ou carácter: o sanguíneo, o fleumático, o colérico ou o melancólico;

  • doença não seria mais do que desequilíbrio dos humores;

  • O papel do médico é ajudar a physis a seguir os seus processos normais ou naturais;

  • De acordo com o aforismo hipocrático II. 22, "as doenças que resultam da plenitude são curadas por evacuação, as provenientes da vacuidade por repleção e, em geral, os contrários pelos contrários" (cit. por Sournia, 1995. 47, itálicos meus);

  • Daí o uso (e o abuso até ao Séc. XVIII) dos cautérios, sangrias, purgantes e vomitivos; no entanto, Hipócrates e a sua escola recomendava prudência no seu uso; também não davam excessiva importância aos medicamentos; valorizavam sobretudo o regime alimentar, o exercício físico e os bons ares.

Hipócrates é mais conhecido pelo célebre juramento que lhe é atribuído, ao que parece indevidamente (pelo menos na redacção que chegou até nós). Também se sabe muito pouco sobre a sua  vida, a não ser que (i) nasceu na ilha de Cós, (ii) era descendente de uma família de médicos, (iii) viajou muito no seu tempo e (iv) teve inúmeros discípulos. 

Sabe-se também muito pouco da sua teoria e da sua prática clínica:

  • Por Corpus Hippocraticum é conhecido o conjunto dos escritos (seus e da sua escola e seguidores) sobre o conhecimento médico da Antiguidade Clássica, de que o greco-romano Galeno foi sobretudo o grande divulgado;

  • Trata-se de uma colecção de 60 obras (escritas em diferentes épocas, entre o Séc. V e Séc. III a.C., por diferentes autores); o juramento de Hipócrates, por exemplo, faz parte provavelmente das obras mais tardias desta colecção;

  • De todas estas obras, as mais conhecidas são os Aforismos: traduzidos em latim no Séc. VI e depois em árabe e em hebreu, serão profusamente divulgados ao longo de toda a Idade Média;

  • Só no Séc. XV é que serão descobertas e traduzidas, para latim, directamente do grego, outras obras atribuídas a Hipócrates; talvez o mais interessante ainda sejam os seus casos clínicos, que irão despertar grande interesse na Europa do Séc. XVII.

O contributo da escola hipocrática terá sido sobretudo o de elaborar uma medicina racional (e não propriamente científica), constitutiva do acto médico, em que a prognosis precedia a diagnosis, e esta a decisão terapêutica e o tratamento. 

No entanto, sendo a saúde um estado de equilíbrio dinâmico, as drogas tinham um papel limitado na medicina hipocrática. Aliás, o próprio livro dos Aforismos começa com estas palavras, evocando a especificade e os limites da própria medicina: 

"A vida é curta e a arte [ de curar, ou seja a medicina] é longa, a ocasião fugidia,  a experiência enganadora, o juízo difícil" (tr. para o francês de E. Littré, cit. por Sournia, 1995.47).

Mas o mais famoso dos médicos da Antiguidade Clássica não é   Hipócrates mas, sim, Galeno, do séc. II (c.129- c.n199). Os seus escritos irão constituir as bases essenciais do ensino médico medieval até à reforma da universidade, já em pleno Ancien Régime, tal como de resto a obra de Dioscórides (c. 60). Por exemplo, as prescrições constantes da obra mais conhecida de Dioscórides, De materia medica (donde constam numerosas aplicações terapêuticas, baseadas em produtos minerais, vegetais e animais), serão copiadas e recopiadas durante 18 séculos, ou seja, até ao Séc. XIX (!).

Aliás, a farmacologia enquanto disciplina autónoma entrará só muito tardiamente na universidade: em 1891 é nomeado o primeiro professor de farmacologia nos EUA (John Jakob Abel, Universidade de Ann Arbor) e em 1905 na Inglaterra (University College London, Artur Cushney)(Lyons e Petrucelli, 1991).

De Galeno sabe-se o seguinte:

  • Nasceu em Pérgamo, por volta de 129, na Ásia Menor, e estudou medicina em Alexandria, a mais famosa escola médica da Antiguidade; aqui teve contacto com a obra de Herófilo (c. 335-280 a. C), e de Erasistrato (c. 300 a.C.-260 a.C.), considerado como os pais da anatomia e da fisiologia, respectivamente;

  • Foi cirurgião dos gladiadores da sua terra natal, tendo partido para Roma em 162; tornar-se-ia depois médico da corte do imperador Marco Aurélio e, com isso, famoso e rico;

  • Para além da prática clínica, interessou-se pela anatomia e a fisiologia; dissecou porcos e macacos e demonstrou que as veias continham sangue e não ar (contrariamente aos ensinamentos de Aristóteles); transmitiria, no entanto, para a posteridade uma errónea descrição do sistema de circulação.

Da sua vasta obra (cerca de 400 livros), resta cerca de um quarto. O seu ensino manteve-se praticamente intacto até à Renascença. O facto da sua autoridade ter sido reconhecida pela própria Igreja, fez com que se tornasse uma espécie de bíblica médica, para o melhor e para o pior. E todos aqueles que posteriormente ousaram contestar os seus ensinamentos de Galeno serão perseguidos, excomungados ou até mortos.

Não reconhecendo a força terapêutica que Hipócrates atribuía à natureza, o maior contributo de Galeno para o desenvolvimento da medicina ocidental terá sido a ideia de que os vários sintomas de doença podiam ser estudados e individualmente tratados, dependendo esse tratamento dos órgãos afectados pela doença. Esta concepção organicista da doença ainda constitui ainda hoje o essencial do paradigma biomédico da saúde/doença (Sournia, 1995). 

Há um provérbio popular que reflete a fama (mas também a divergência) entre os dois médicos mais famosos da Antiguidade Clássica: "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não".

Dos arabistas (mais do que dos árabes propriamente ditos, já que o termo se aplica a todos os autores que escreviam em árabe, incluindo os persas e os judeus), há que destacar Avicena (980-1037), o conhecido autor do Cânone da medicina.

Todavia, o mais famoso médico da Idade Média terá infelizmente sucumbido, na opinião de Sournia (1995. 89), à "embriaguez de um unicismo total": Para Avicena, "é o movimento dos astros que regula a data das sangrias e o prognóstico das doenças, a geometria dos polígonos determina a cicatrização das feridas, e o pulso, contado através da clépsidra de água, orienta o diagnóstico" .

  

Caixa 2 - Evolução do estatuto socioprofissional dos médicos e cirurgiões

Em princípio, poderiam exercer medicina todos aqueles que fossem diplomados (bacharéis) pela universidade portuguesa ou por universidade estrangeira, no respectivo curso. A prática abusiva da medicina por indivíduos sem a necessária qualificação levará, entretanto, D. João I (1357-1433) a ordenar, por carta real de 28 de Junho de 1392, que nenhum homem ou mulhercristão, mouro ou judeu, pratique a arte de curar sem primeiro se submeter a um exame de provas práticas feito perante o físico-mor (um cargo de nomeação régia que só será extinto em 1836).

Aqueles que eram aprovados no exame, obtinham uma carta autenticada com o selo real que lhes conferia o direito de exercer legalmente a prática da medicina. Previam-se já pesadas sanções pelo exercício ilegal da medicina, muito embora essa disposição não tivesse provavelmente grandes efeitos práticos. Esta carta real é considerada "a primeira disposição legislativa em relação ao exercício da medicina", segundo Lemos (1991, Vol. I. 73).

No Regimento do Físico-Mor, de 15 de Outubro de 1476, esse exame passa a estender-se aos próprios diplomados pela universidade, portuguesa ou estrangeira, o que não deixa de ser sintomático (Graça, 1996):

  • Estamos provavelmente perante a primeira tentativa de controlo do exercício da medicina pelos próprios médicos, sob a figura do físico-mor e, portanto, sob protecção do próprio poder régio;

  • Por outro lado, tudo indica que o número de diplomados em medicina por universidades estrangeiras tenha aumentado no Século XV.

Nesta época, a cirurgia era um simples ofício que se aprendia com a prática e experiência dos mais velhos, não estando o seu exercício regulamentado. Era, aliás, uma arte considerada menor, que exigia sobretudo força e destreza manuais, e como tal desprezada pelos médicos diplomados. Era praticada sobretudo pelos barbeiros (até a meados do Século XVIII).

Recorde-se que, segundo o Juramento de Hipócrates (vd. tradução de Littré, cit.por Sournia, 1995. 47-48), ao médico estava interdito o uso da faca (ou do bisturi): "Não praticarei a operação de corte, mas deixá-la-ei para as pessoas que dela se ocupam".

Só com o Regimento do Cirurgião-Mor, datado de 25 de Outubro de 1448, no tempo de D. Afonso V, é que passa igualmente a ser obrigatória a prestação de provas de habilitação para a prática da cirurgia. O exercício indevido da cirurgia passava também a ser punido com prisão.

O ofício de cirurgião só a partir do Século XVI é que começa a ser técnica e socialmente valorizado . Por exemplo, um alvará de 26 de Julho de 1559 vem restringir o seu exercício aos que fizessem ou tirassem o curso de dois anos do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS), com excepção dos diplomados pelas Universidades de Coimbra, Salamanca ou Guadalupe. Esta disposição não é, no entanto, confirmada  pelo Regimento do Cirurgião-Mor, de 12 de Dezembro de 1631.

Entretanto, no final do Séc. XVII, irão ser tomadas algumas providências relativas ao curso de cirurgia do HRTS:

  • Em 1693 exigia-se aos praticantes de cirurgia ou barbeiros, como habilitação mínima para frequentar o curso, o saber ler e escrever;

  • Por sua vez, o regimento de 1 de Julho de 1694 impõe já um numerus clausus (noventa alunos) e um internato de cinco anos (!).

Em 1758, o cirurgião-mor Soares Brandão volta a reiterar as exigências para admissão ao curso de cirurgia, ministrado naquele hospital: Saber ler e escrever, ter conhecimentos de ortografia e gramática da língua portuguesa, entre  outros requisitos (Mira, 1947).

Recorde-se que, contrariamente aos tratados médicos que eram obrigatoriamente escritos em latim, as obras sobre cirurgia e anatomia eram publicadas nas línguas vernáculas. Daí o professor de anatomia P. Dufau, no HRTS, ter aconselhado o seu brilhante aluno Manuel Constâncio, por volta de 1750, a estudar a "língua francesa para se aproveitar das excelentes obras que nela havia escritas" (Lemos, 1991, Vol. II.77).

Uma das saídas profissionais dos diplomados com o curso de cirurgia do HRTS era a marinha mercante, alistando-se como facultativos da tripulação, ou então o exército e a marinha de guerra, como facultativos militares.

Além Pirinéus, em França, a evolução do estatuto dos cirurgiões irá ser mais célere e, portanto,  mais favorável à reunificação da profissão médica (o que em Portugal só acontece tardiamente, muito depois da criação, em 1836, das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto):

  • Um passo importante no sentido do reconhecimento dos cirurgiões foi a criação, em França, da Academia Real de Cirurgia (em 1737);

  • Por outro lado, e não obstante a feroz oposição da conservadora Faculdade de Medicina de Paris, os cirurgiões passam inclusivamente a ter assento na Société Royale de Médecine, criada em 1778.

Aliás, já meio século antes, por decreto real de 23 de Abril de 1723, era reconhecida, em França,  a profissão de cirurgião. Em pleno Século das Luzes, P.-J. Desault (1738-1795) irá depois desenvolver o ensino da cirurgia à cabeceira do doente hospitalizado, podendo ser considerado o Boherhaave da cirurgia setecentista (Sournia, 1995).

Não obstante os progressos da prática clínica,  e  continuará a persistir, até ao final do Antigo Regime, uma dicotomia entre teoria e prática no campo da medicina. A maior parte da prática médica não era, de resto, controlada pelos próprios médicos, mesmo em país como a Inglaterra e a França onde  o associativisno médico estava mais desenvolvido.

Num texto significativo, L' Anarchie médicinale, publicado por um médico de Lyon, em 1772, pode ler-se: "La plus grande branche de la médecine pratique est entre les mains de gens nés hors du sein de l'art; les femmelettes, les dames de miséricorde, les charlatans, les mages, les rhabilleurs, les hospitalières, les moines, les religieuses, les droguistes, les herboristes, les chirurgiens, les apothicaires, traitent beaucoup plus de maladies, donnent beaucoup plus de remèdes que les medecins" (cit. por Foucault, 1972. 325. Itálicos nossos).

Entretanto, com a revolução francesa vão operar-se algumas mudanças decisivas no ensino e na prática da medicina e da cirurgia:

  • Em primeiro lugar, o ensino médico e cirúrgico é unificado;

  • Em segundo lugar, o latim cede o lugar ao francês;

  • Depois, são criadas cadeiras de prática clínica;

  • A atribuição de diplomas passa a depender da presença efectiva dos estudantes nas aulas de anatomia e nas enfermarias;

  • O hospital torna-se um verdadeiro local de aprendizagem;

  • E, last but not the leastIgreja perde a sua secular autoridade sobre o funcionamento das faculdades e dos hospitais.

Com o laicismo abre-se o caminho à inovação, à investigação e à independência científica. A pouco e pouco os ventos revolucionários acabam por chegar a toda a Europa, mesmo com um atraso de décadas, como acontecerá entre nós. Recorde-se nomeadamente o papel das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto (Mira, 1947):

  • À margem da Universidade de Coimbra, estas escolas  (e sobretudo a de Lisboa) irão dar um decisivo contributo para a unificação e afirmação da profissão médica;

  • Delas sairá a elite médica portuguesa da segunda metade do Século XIX.

Por outro lado, em 1841 ainda continuava o lento processo de secularização da Universidade de Coimbra, com a nomeação do seu primeiro reitor não eclesiástico...

 

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Nota do editor:

(*) ~Ultimo poste da série  > 20 de março de  2023  Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"