Queridos amigos,
É redundante referir que a descolonização deixou feridas por sarar, em vários países.
Neste livro, Jacques Soustelle profere uma dolorosa litania a pensar fundamentalmente na Argélia que ele tão bem conheceu e tanto amou. Estudou o dossiê português, do lado nacionalista, e faz a sua defesa, ponto por ponto.
É um documento muito bem escrito, não é por acaso que ele foi alçapremado à Academia Francesa. Há quem continue a insistir, no caso português, que outra descolonização era possível. Há nacionalistas corajosos, caso de Jaime Nogueira Pinto, que já veio a público dizer que depois de muito estudar considera que outra via para a descolonização portuguesa não teria andado longe do que aconteceu com a que se praticou e está abundantemente documentada. Ora cá está um bom tema para férias, questionar o passado mais pela razão e menos pelo coração.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (4)
Carta aberta às vítimas da descolonização
Beja Santos
“Carta aberta às vítimas da descolonização”, por Jacques Soustelle, Parceria A. M. Pereira, Lda., 1973, foi uma obra que deu brado em França mas também em Portugal, onde recebeu grande aplauso de praticamente todos os adeptos da causa do Ultramar. Acrescia o facto desta carta-libelo sair do punho de uma personalidade eminente: Soustelle (1912-1990) tinha elevadas credenciais no campo da etnologia (os seus estudos na investigação da América Pré-Colombiana ainda hoje são de referência obrigatória), combateu na França Livre e foi ministro por várias vezes de Charles De Gaulle, teve elevadas responsabilidades na Argélia francesa, comprometeu-se com a OAS, o que o levou ao exílio; foi deputado e membro da Academia Francesa.
Esta carta dedicada à descolonização tem sempre a Argélia na mira, é pungente, documentada, elogia o esforço português na guerra em África. Tem um interlocutor, é Ibrahima Gueye, fala saudosamente de um projeto: “Sabíamos que já mais poderiam desaparecer entre os nossos povos as relações entre dominante e dominado, os complexos de superioridade ou de inferioridade, o desprezo racista. Pensávamos que as colónias deviam ser transformadas em províncias, regiões, Estados de uma grande federação multirracial, em redor da República Francesa”. Lê-se hoje e pensa-se no federalismo de Spínola. É uma carta onde se fala de destroços, da África arruinada, comandada por tiranos megalómanos, mas os mortos-mártires da Argélia pesam sempre, tanto ou mais que os franceses expulsos, o que dói mais é a sorte de cinco ou seis mil franceses e francesas desaparecidos para sempre, a morte no meio dos suplícios mais cruéis de cento e cinquenta mil muçulmanos culpados por terem acreditado na Argélia francesa, os muitos chacinados.
Increpa-se contra a denominação de Terceiro Mundo, eufemisticamente tratados como países em vias de desenvolvimento e diz frontalmente: “Os seus recursos insuficientes não conseguem fazer face a uma população que aumenta sem cessar. A esse desequilíbrio fundamental juntam-se, muitas vezes, os erros de uma administração incapaz ou corrompida, a exploração cínica de alguns países por um neocolonialismo que revela todos os defeitos do antigo, o militarismo desencadeado nos Estados sem elites formadas, o gosto pelo dinheiro e pelo luxo entre alguns privilegiados em confronto com a profunda miséria do povo. Com raríssimas exceções, é este o panorama que se revela na maioria dos antigos territórios coloniais: emancipados sob a férula de generais, coronéis e comandantes, com certeza mais ditatoriais e tirânicos – e até menos competentes – do que os piores governadores de outros tempos”.
É a carta de um europeu que se dirige àqueles que foram os seus compatriotas de além-mar. Alude nostalgicamente à vocação euro-africana na França, de que foi grande participante. Todos perderam com as soluções precipitadas daquelas independências: voltou o tribalismo, a mais degradante tirania feudal, enumera as violências de Bokassa, de Sekou Touré, e de tantos outros. É inadmissível, diz, haver um progresso nestes países em comparação ao que vivia no período colonial: “A verdade é que os povos nada ganharam com a nova situação, a não ser o fato de terem conhecido novos patrões”. A descolonização falhou em toda a parte, regrediu-se, esbanjou-se em projetos megalómanos de industrialização descurando as potencialidades que estavam a ser aproveitadas, e de novo fala na Argélia.
Antigo amigo de De Gaulle, refere a conferência de Brazzaville, de 1944, onde alguns dos mentores da França Livre se comprometeram a garantir a unidade política do mundo francês e a respeitar a liberdade local de cada um dos territórios além-mar, e critica profundamente as opções de De Gaulle que levaram ao abandono da Argélia. É neste contexto que elogia a política de Lisboa com a África portuguesa. Faz a ironia com a propaganda do PAIGC: “Amílcar Cabral pretende afirmar a cada passo que libertou dois terços ou quatro quintos da Guiné portuguesa, que assim se revela como um dos países mais extensos do mundo, porque as guerrilhas de Cabral avançam sem cessar desde há perto de dez anos, sem nunca chegarem a ocupar inteiramente esse território”. Recorda igualmente que a escravatura não foi uma invenção dos europeus, os africanos foram espancados, exterminados e escravizados, sem qualquer intervenção exterior, durante muitos séculos e observa: “Os árabes muçulmanos foram durante séculos os mais encarniçados caçadores de homens através dos seus mercados de escravos e de mulheres que alimentassem os haréns, e sabe-se ainda que nas Nações Unidas alguns países, que têm direito a voto e condenam virtuosamente o colonialismo, continuam a praticar a escravatura”.
Procura realçar paradoxos como ninguém se chocar com o império Russo na Ásia com os seus muçulmanos colonizados enquanto a opinião mundial anda permanentemente agitada com os muçulmanos argelinos, os árabes israelitas e palestinianos. Os ditadores africanos dedicam-se a práticas tribais e a um racismo que os revolucionários tenham a ignorar caso de Idi Amin Dada, Bokassa, Mobutu, entre outros. E regressa à África portuguesa, Soustelle considera que os portugueses são um povo isente de racismo, que não há discriminação racial nos territórios portugueses, que a despeito de muito atraso se progrediu muito na saúde e que o governo de Caetano tem implementado reformas corajosas. E questiona quem são os responsáveis da luta desencadeada contra as províncias portuguesas do Ultramar: aponta o dedo para Argel, para o coronel Boumediène, que deu guarida aos partidos terroristas. Fala nos apoios militares soviético e chinês, e também cubano, das armas soviéticas, checas e chinesas. Fala dos perigos do controle soviético nestas paragens, parece um general português da velha escola: “Possuir as ilhas de Cabo Verde, como também Moçambique, é possuir uma enorme vantagem, talvez decisiva, no caso de conflito mundial. Nas mãos de um país neutro, despojado de todo o intento agressivo, mas pró-ocidental, estas ilhas constituem um elemento de segurança da Europa, especialmente porque que cobrem as linhas de comunicação à volta de África. Em poder de um estado imperialista, ameaçariam estas linhas vitais; a experiência da última guerra demostra que o Mediterrânio pode ser parcial ou completamente fechado, e é então que o acesso ao oceano Índico, ao Golfo Pérsico, ao petróleo do Médio Oriente, depende da possibilidade dos navios contornarem o continente africano”.
Jacques Soustelle estudou o dossier português na perfeição, no todo as suas posições confluem para as do governo de Marcello Caetano. E, por último, a carta-libelo regressa aos problemas da francofonia em África, aos demandos governamentais dos adeptos do socialismo africano, alerta para o perigo de se estar a falar cada vez menos francês em África. Ponto por ponto, desmonta o fiasco da descolonização argelina, mas também a cooperação que se envolve em projetos inúteis. Jacques Soustelle é frontal, é hipercrítico e é emotivo. E ao despedir-se questionando o seu interlocutor como será possível fazer frente às pesadas ameaças que cobrem o futuro, escreve; “Ninguém poderá dar uma resposta a esta pergunta, atualmente. Eis a razão, Ibrahima, porque escrevo uma carta tão longa e sem rodeios: já que as minhas inquietações e as minhas queixas são as de um homem que amou o vosso país e o vosso povo e que, por que não confessá-lo, os ama ainda hoje com todo o seu coração”. Pense o que se pensar desta catilinária, foi um documento que fez época e que caiu bem nas hostes já muito desorientadas dos ultranacionalistas portugueses.
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Na mesma manhã e no mesmo bricabraque onde comprei o livro de Jacques Soustelle, há muitos anos emprestado e desaparecido, encontrei numa caixa esta estampa, um primor de trabalho daqueles tempos em que qualquer livro que se prezasse trazia gravuras e estampas.
Gostei muito desta Aixa, sultana de Granada, e é com satisfação que a ofereço ao blogue.
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13491: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (3): A literatura de Mickey Spillane