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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26775: Os nossos enfermeiros (20): Era preciso ser doido para se ser especialista na ciência & arte de montar e desmontar minas e armadilhas... O caso do nosso Vilas Boas (António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6520/72, Mampatá, 1972/74)




Guiné > Região de Tombali > Mampatã > CART 6520/72 (1972/74) > O Vilas Boas à esquerda, no meio um militar do Pel Caç Nat 68 , à direita eu próprio

Foto (e legenda): © António Carvalho (2025).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blog Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O António Carvalho, mais conhecido como Carvalho de Mampatá, foi fur mil enf, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74); integra a Tabanca Grande desde 13/9/2008; tem cerca de referências no blogue; tem publicado algumas das suas histórias na série "Os nossos enfermeiros" (*); é autor do livro de memórias "Um Caminho de Quatro Passos" (Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1); tem em mãos uym segundo livro, de ficção histórica, centrado sobre a figura de um "brasileiro de torna-viagem"; mora em Medas, Gondomar, de que foi autarca (presidente da junta de freguesai)  há uns largos anos atrás

 

1. Mensagem de  António Carvalho

Data . Quinta, 1/05/2025, 17:35 

Assunto - Vilas Boas

Na sequência do meu encontro de ontem, na Tabanca de Matosinhos, com o Lopes da Régua, o Pinto de Famalicão, o Polónia e o Miranda Lopes do Porto, e o Vilas Boas de Braga, achei de algum interesse mandar-te esta estória que saiu por lá, da boca do próprio (Vilas Boas). Se entenderes podes torná-la pública no nosso blogue.

Carvalho de Mampatá


Os nossos enfermeiros (20) > Era preciso ser doido para se ser especialista na arte de montar e desmontar minas e armadilhas... O caso do nosso Vilas Boas

por António Carvalho


Estávamos na estação seca, no ano quente da guerra, em 1973. Havíamos de apoiar a
engenharia militar nos trabalhos de abertura e pavimentação da estrada entre Aldeia Formosa e Nhacobá, com passagem por Áfia, Mampatá, Ieroiel, Colibuia e Cumbidjã. Connosco, na protecção a esses trabalhos, estiveram ainda a CCaç 18, a Companhia de Cavalaria 8351, grupos do Batalhão 3852 e, mais tarde do 4514. 

Quanto mais a estrada se estendia, maior era a área sob a nossa protecção e sob a pressão do IN. Nas extensas áreas terraplanadas fácil era montar minas. Montavam-nas eles e nós também, segundo as estratégias concebidas pelos quadros especializados. 

Na minha companhia, CArt 6250 (1972/1974), o mais entendido na arte de as instalar e levantar era o Vilas Boas, fur mil Minas e Armadilhas. Levantava muitas, as que ele próprio instalava e as do IN. 

Tornou-se tão célebre nessa arte perigosa de neutralizar e levantar minas que um dia, no Café Bento, numa mesa de pessoal em trânsito por Bissau, se falava num gajo maluco que levantava minas a torto e a direito, lá para os lados de Aldeia Formosa. O que não sabiam os palradores era que o sujeito objecto daquela conversação estava ali mesmo, numa mesa ao lado. Por certo, algo envaidecido por ser o alvo daquele conclave de gente da guerra, levantou-se e puxou dos galões : 

− Pois não sabem que é esse gajo ? Sou eu próprio.

Não crendo nele, por terem preconcebido na sua mente, um militar avalentado, nunca um
finguelas de corpo como o que se arvorava em herói perante eles, riram-se de chacota. O
nosso Vilas Boas, natural e residente em Braga, aborrecido por não o tomarem a sério,
levantou-se e foi-se embora, não se esquecendo de os mandar abaixo de Braga.

Já não via o Vilas Boas há 30 anos, mas tive a sorte de o reencontrar no antigo Milho Rei, em
Matosinhos, na quarta-feira , dia 30, onde convivemos com mais quatro combatentes da nossa companhia. O rapaz contou-nos coisas do arco da velha, entre elas vai esta pérola.

Num dado momento, em 1973, o rapaz, saltava de um lado para o outro, numa área
terraplanada onde ele próprio tinha instalado algumas minas, na zona de Colibuia. Perante a
estupefacção e desespero do nosso Capitão, Luis Marcelino, arredado dez ou vinte metros, ele insistia que as minas que ali colocara, tinham detonado todas, não carecendo por isso de ser removidas.

Querendo comprová-lo arremessou a pica para longe e continuou a calcar a terra, aos saltos. 

O nosso Capitão, ajuizado, resolveu, logo que chegou a Mampatá, marcar-lhe uma consulta de psiquiatria, no Hospital Militar de Bissau. E o rapaz lá foi para Bissau passar uns dias merecidos de férias. 

Será que aquela dança (perigosa), avistada pelo nosso Capitão, arrepiado, não foi mais do que uma artimanha do Vilas Boas para se livrar das agruras do mato ?

Carvalho de Mampatá
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Nota

Último poste da série > 28 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25314: Os Nossos Enfermeiros (19) : Negócios Imobiliários em Mampatá (António de Carvalho, ex-Fur Mil Enf.º)

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26686: Notas de leitura (1789): "Quebo, Nos confins da Guiné", de Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2014 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Há algo de emocionante nos depoimentos de um punhado de convocados para falar de Rui Alexandrino Ferreira, da vida no Quebo, daquelas emboscadas duríssimas no chamado corredor de Guileje e suas variantes, nos patrulhamentos ininterruptos junto da fronteira; trata-se de gente de dois batalhões, de companhias de intervenção que conviveram com a CCAÇ 18, que jamais esqueceram que para além dos riscos de toda aquela operacionalidade chamada contrapenetração havia a vida na tabanca militar, alugaram-se junto da população civil habitações onde houve introduzir algum conforto, desviou-se cimento, tirou-se uma baixada de eletricidade, ninguém esqueceu o quarto do então capitão Rui Alexandrino que tinha um ambiente de casa de diversão noturna, não faltavam fotografias da Playboy, três ventoinhas, um gira-discos, uma pequena geleira, encontrou-se algum mobiliário de quarto, fez-se uma zona de balneário, instalou-se uma sanita, todos recordam aquele quarto como ponto turístico da Aldeia Formosa, uma vulgar e mísera palhota tornou-se um lugar de refúgio para muitos, ninguém esqueceu este ousado capitão que, como escreveu Pezarat Correia, aliava ao seu entusiasmo contagiante uma notável dose de bom-senso.

Um abraço do
Mário



Memórias do Quebo, da CCAÇ 18, o testemunho de amigos (2)

Mário Beja Santos

"Quebo, Nos confins da Guiné", Palimage (palimage@palimage.pt), 2014, é o segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) que fez duas comissões na Guiné. 

A primeira deu origem a uma obra de consulta obrigatória para quem estuda a literatura da guerra colonial, "Rumo a Fulacunda", Palimage, 2000; a segunda é "Quebo" que nos leva à sua segunda comissão, é já capitão e comanda uma companhia de tropa guineense, a CCAÇ 18. Começa por justificar as razões que o levaram, já na disponibilidade, em dezembro de 1967, e tendo regressado a Sá da Bandeira, onde pensa que iria encontrar readaptação, veio a descobrir que não era numa repartição de fazenda pública que sonhava viver, e decidiu então regressar à vida militar. 

Na primeira comissão recebera a condecoração da Cruz de Guerra de 1.ª Classe, descobrira o sentido da liderança e a vocação para comandar homens.

Arribou à Guiné, andou no Pelundo, recebeu ordem de ir formar uma companhia de caçadores africanos, a 18. E partiu para Aldeia Formosa, conviveu com dois batalhões, resolveu passar ao papel as recordações da segunda comissão, o relato tem singularidade de convocar amigos e camaradas desta segunda comissão, é o caso do capitão Horácio Malheiro, comandante da CCAÇ 3399, estacionada no Quebo entre agosto de 1971 e agosto de 1973, por curiosidade já tinham ambos feito comissão em 1967 e casualmente percorreram as mesmas estradas e trilhos. Lembra que os oficiais não tinham residência dentro do aquartelamento, alugavam na tabanca casas dos indígenas, punham algum conforto como telhados de chapa de zinco, portas e janelas, a luz vinha do gerador do quartel, fizeram-se latrinas e balneário. 

Não esqueceu os acontecimentos da noite de 24 de dezembro de 1971, houve tiroteio entre tropa metropolitana e guineense, tudo nasceu de um desacato, os guineenses puxaram pelas armas, houve um morto e feridos, Spínola apareceu prontamente, arengou, quis conhecer os autores do desacato, houve expressões azedas entre Spínola e Rui Alexandrino, Spínola deu umas bofetadas e mandou conduzir sob prisão para o avião um conjunto de militares, aplicando uma pesada pena ao comandante do batalhão, foi automaticamente removido do cargo.

Recorda as atividades da CCAÇ 18 e os seus sucessos nas emboscadas; dá especial ênfase à Operação Muralha Quimérica, previa-se a entrada na Guiné de elementos da ONU que vinham verificar a existência de zonas libertadas, a CCAÇ 3399 e a CCAÇ 18, bem como os paraquedistas, os comandos africanos e o grupo especial do Marcelino da Mata percorreram a região do Cantanhez, foi uma operação que durou 12 dias, não houve encontro com as forças do PAIGC e os visitantes. 

Refere Horácio Malheiro que comandou a companhia operacional que esteve mais tempo em intervenção em toda a guerra da Guiné, com missões no corredor de Guileje, em múltiplos patrulhamentos na fronteira, oito meses de proteção à abertura de uma estrada alcatroada dirigida a uma das principais bases do PAIGC no Sul, Unal-Salancaur e colunas de reabastecimento entre Aldeia Formosa e Buba. A guerra tinha evoluído, abrira-se uma nova frente de atividades com a construção de uma nova estrada, Mampatá-Colibuia-Cumbijã-Nhacobá, e de três novos quartéis em Colibuia, Cumbijã e Nhacobá, foi um período de atividade muito intensa e desgastante. Diz-se que o quartel de Nhacobá foi ocupado em 21 de maio de 1973 e abandonado a 25 de maio, por não oferecer condições de segurança mínimas e ter ataques contínuos com duração de horas.

O autor recorda a morte de Virgolino Ribeiro Spencer na já referida noite de 24 de dezembro de 1971 e dá a palavra a um conjunto de intervenções de amigos e camaradas, como Alexandre Valente, Aristóteles Tomé Pires Nunes, Carlos Naia, Carlos Santos, Eduardo Roseiro, Hélder Vaz Pereira, João Manuel Marcelino e Joaquim dos Reis Martins, há neste acervo observações muito curiosas, dão para perceber como ia evoluindo a guerra, Aldeia Formosa passou a ser flagelada, conta-se a história do sargento Hélder Vaz Pereira que foi graduado em alferes dada as suas qualidades de combatente e chefe, traz-nos um belo depoimento, dizendo a dada altura: 

“Com a partida do capitão Rui, em setembro de 1972, a tabanca da 18 perdeu todo o encanto que tinha e foi desativada.” 

E despede-se com agradecimentos: 

“Aos que comigo se alegraram nos bons momentos e aos que me ajudaram a suportar e superar as dores dos maus momentos, as angústias, os temores, as incertezas, os medos, os pesadelos e as desilusões que muito me ensinaram, a todos manifesto o meu mais profundo reconhecimento, do capitão Rui Ferreira ao último dos soldados, a todos, fico devedor para toda a vida.”

Rui Alexandrino despede-se rememorando histórias rocambolescas da guerra que escaparam ao seu primeiro livro "Rumo a Fulacunda", recorda a sua participação na Operação Muralha Quimérica, guarda muitas perguntas sem resposta, tais como: 

  • Estaria a Guiné em condições de se tornar independente? 
  • Quem mandou matar Amílcar Cabral? 
  • Foi apurada a responsabilidade de alguém sobre a tragédia do Corubal onde morreram 47 militares portugueses? 
  • Por que não se realizou, relativamente ao abandono de Guileje, o julgamento de Coutinho e Lima? 
  • Por que não prosseguiu o julgamento todo o caminho que lhe faltava?

 Pedro Pezarat Correia tece um grande elogio ao autor no seu depoimento:

“Há uma característica da liderança que considero o tempero decisivo capaz de se conferir virtude a determinados atributos de comando que, sem ela, podem tornar-se excessivos e transformar-se em defeitos perversos. Refiro-me ao bom-senso, o equilíbrio moderador que impede que a coragem resvale para temeridade gratuita empurrando os seus homens para riscos desnecessários, que evita o culto da disciplina pelo lugar ao autoritarismo desumano, que a tolerância resvale para o laxismo, que o gosto pela decisão rápida caia na precipitação, que o excesso de ponderação conduza à hesitação. O bom-senso confere sangue-frio a situações de pressão emocional, presença de espírito quando à volta se instala a ansiedade. É uma virtude que, normalmente, se adquire com a idade, com a experiência, com a dimensão da responsabilidade. Apesar da sua juventude, o capitão Rui Alexandrino Ferreira aliava ao seu entusiasmo contagiante uma notável dose de bom-senso, o que lhe permitiu aplicar a usa coragem, o seu sentido de disciplina, o seu gosto pela decisão, na medida e no sentido convenientes.”

Que fique a boa memória do Tenente Coronel Rui Alexandrino Ferreira.

Aldeia Formosa, 1973, fotografia de José Mota Veiga já publicada no nosso blogue
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Nota do editor

Último post da série de 11 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26678: Notas de leitura (1788): "Quebo, Nos confins da Guiné", de Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26678: Notas de leitura (1788): "Quebo, Nos confins da Guiné", de Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2014 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Escapara-me a leitura do segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira, referente precisamente à sua segunda comissão na Guiné, passou-a maioritariamente em Aldeia Formosa, emboscou com bastante sucesso os corredores de abastecimento do PAIGC na região, caso do chamado corredor de Missirã; é o relato de memórias para a qual o falecido coronel convocou amigos, como o major-general Pedro Pezarat Correia, a deporem sobre a vida e a atividade operacional na região e os laços de camaradagem, há depoimentos tocantes. Constata-se que o malogrado coronel guarda a amargura de não ter sido condecorado com a Torre e Espada, atendendo ao acervo de condecorações e louvores, considero uma anomalia o despacho do Conselho Superior de Justiça e Disciplina ter decidido que não era oportuno por extemporânea, e reflete amargamente o corporativismo nas Forças Armadas, era o que faltava um miliciano com a mais alta condecoração das Forças Armadas.

Um abraço do
Mário



Memórias do Quebo, da CCAÇ 18, o testemunho de amigos (1)

Mário Beja Santos

"Quebo, Nos confins da Guiné", Palimage (palimage@palimage.pt), 2014, é o segundo livro de Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) que fez duas comissões na Guiné. A primeira deu origem a uma obra de consulta obrigatória para quem estuda a literatura da guerra colonial, "Rumo a Fulacunda", Palimage, 2000; a segunda é Quebo que nos leva à sua segunda comissão, é já capitão e comanda uma companhia de tropa guineense, a CCAÇ 18. 

Começa por justificar as razões que o levaram, já na disponibilidade, em dezembro de 1967, e tendo regressado a Sá da Bandeira, onde pensa que iria encontrar readaptação, veio a descobrir que não era numa Repartição de Fazenda Pública que sonhava viver, e decidiu então regressar à vida militar. Na primeira comissão recebera a condecoração da Cruz de Guerra de 1.ª Classe, descobrira o sentido da liderança e a vocação para comandar homens.

O autor pediu ao Major-general Pedro Pezarat Correia que abordasse o contexto da sua comissão passada sobretudo em Aldeia Formosa. Antes, porém, conta-nos que chegou ao CIM em Bolama para a formação da CCAÇ 18, e cabe a Pezarat Correia falar-nos do BCAÇ 2892 e o Setor S-2, no Sul da Guiné. 

Este batalhão estacionava em Aldeia Formosa, em Nhala e em Buba, reforçado com mais três companhias operacionais que já se encontravam no Setor sob o comando do COP 4; o batalhão passou também a contar com o apoio de várias subunidades. Tinha sob controle operacional o Destacamento dos Fuzileiros Especiais 3, sediado em Buba, duas companhias de milícias em Empada e Mampatá, e um grupo de caçadores nativos.

O batalhão assumiu a responsabilidade operacional em novembro de 1969, assumia quatro tarefas prioritárias:

  •  proteção aos trabalhos de construção na pista de aterragem em Aldeia Formosa (concluída em março de 1970);
  •  contrapenetração nos eixos usados pelo PAIGC para reabastecer e rodar efetivos das suas bases no interior em Injassane (norte do Rio Grande de Buba) e em Xitole; 
  • controlo da região de Contabane, fronteiriça com a República da Guiné; condução da Ação Psicossocial.

 Na prática, e de acordo com a Ideia de Manobra, havia que proceder a ações de contrapenetração em corredores que constituíam os principais eixos de abastecimento do PAIGC para o interior sul, proceder a uma constante nomadização e emboscadas nas imediações das zonas mais favoráveis aos grupos do PAIGC para instalação de base de fogos para flagelações. F

Foi neste ambiente geográfico, humano e operacional que, em janeiro de 1971, se integrou a CCAÇ 18, acabada de formar, e comandada pelo capitão Rui Alexandrino, veio render a CART 2521.

A CCAÇ 18 era constituída por Fulas, parte deles oriundos da região do Quebo, tinham experiência operacional, haviam pertencido a pelotões de milícias e caçadores nativos. Mal chegados a Quebo, e no período de sobreposição, atuaram no corredor de Missirá, foi uma estreia com emboscada, desbarataram a coluna do PAIGC, Rui Alexandrino reorganizou as suas tropas e transferiu a emboscada para outro local, uma hora mais tarde novo contacto, causou baixas e capturou armamento.

 Depois o BCAÇ 2892 foi rendido pelo BCAÇ 3852, a CCAÇ 18 continuou a reforçar o novo batalhão, com bons resultados em novos contactos no corredor de Missirá.

 Ao terminar a sua comissão, em finais de 1972, Rui Alexandrino foi condecorado com uma Cruz de Guerra de 2.ª Classe.

Voltemos à narrativa pessoal do autor, como ele foi encontrar a Guiné após dois anos de ausência. Ele descreve a personalidade de Spínola e o que procurou fazer não só no campo militar como no desenvolvimento socioeconómico da região. 

Antes de ir para Bolama, Rui Alexandrino esteve no Pelundo, conta as suas memórias, conta-nos como viveu a formação da CCAÇ 18 em Bolama e depois a sua adaptação ao Quebo, a originalidade de ele e os seus oficiais e sargentos viverem em instalações na tabanca, lá foram arranjando comodidades, a ponto do seu quarto se ter transformado em ponto turístico da Aldeia Formosa.

 Faz um esquiço dos cuidados que a contrapenetração impunha, a dureza da atividade operacional de estar para ali horas camuflados, não fazer barulho, não tossir, não mexer, não espreguiçar e sobretudo não perder a concentração, além de ser imperativo não fazer modificações no ambiente que pudessem indiciar a existência de emboscada, e o autor aproveita para contar algumas peripécias e juntar alguns depoimentos de ex-camaradas.

Depõe como observador sobre os usos e costumes dos Fulas, a impressão que lhe provocava a maneira indigna como as mulheres eram tratadas, tece as suas lembranças sobre os militares metropolitanos e, inevitavelmente, vem exprimir a sua gratidão pelo seu guarda-costas, Ieró Embaló, feito prisioneiro depois da independência, passou onze anos nas masmorras, depois de muitas peripécias veio até Portugal, foi uma verdadeira odisseia vir a ser aceite os seus direitos de ser português, faleceu súbita e inesperadamente, e conta sumariamente a sua história:

“Raptado ainda muito novo, foi levado à força para a Guiné-Conacri, onde se viu obrigado a integrar as forças do PAIGC. Tendo sido colocado numa base operacional do partido, mesmo junto à nossa fronteira, daí tinha fugido na primeira oportunidade e feito a sua apresentação às forças portuguesas. 

Tinha um conhecimento profundo quer das formas de atuar do inimigo quer da tropa portuguesa. Era de um espantoso espírito de observação e de uma imensa capacidade de adaptação. Uma inteligência superior à média, tal como muitos Fulas, falava fluentemente o português, o fula e o crioulo, e igualmente o francês. Islâmico, profundamente religioso, seguia e norteava a sua vida pelas normas e preceitos do seu Deus.”

Rui Alexandrino recorda os atos de bravura do seu guarda-costas.

Entram agora na conversa dois coronéis, Gertrudes da Silva e Vasco Lourenço, falar-se-á do coronel Agostinho Ferreira, comandante em Aldeia Formosa, o autor deixa a sua lembrança sobre o fim da comissão do BCAÇ 2892, a chegada do BCAÇ 3852, veio de férias, regressou à guerra, temos de seguida o depoimento de outro capitão de Aldeia Formosa, Horácio Malheiro, e uma noite de horrores de conflito entre tropa metropolitana e gente da CCAÇ 18, haverá vítimas inocentes, como se contará a seguir.

Estamos perante o caderno de memórias, o autor aproveita a oportunidade para se ressarcir de imprecisões existentes no seu primeiro livro, revela poesia dedicada às filhas e convoca um bom punhado de antigos camaradas para relembrar acontecimentos vividos nesta segunda comissão.


Aldeia Formosa, 1973. Fotografia de José Mota Veiga já publicada no nosso blogue

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26661: Notas de leitura (1787): Libelo acusatório sobre o colonialismo, como não se escreveu outro, no livro "Discurso Sobre o Colonialismo", por Aimé Césaire, editado em 1955 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26327: Notas de leitura (1759): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Começo por uma manifestação de interesse, no passado domingo, 1 de dezembro, falei desta preciosa obra de literatura memorial, quiçá tratado como romance, pelas gerações vindouras, na apresentação feita na Casa do Alentejo, num mano a mano com Carlos de Matos Gomes. A singularidade detetada em Vindimas no Capim reaparece em força neste Lavar dos Cestos, a própria arquitetura da obra se assemelha com o romance premiado, é um galopar permanente em terras vindimeiras e, súbito, podemos estar em Catió, voltar à recruta e à especialidade, ouvir os estrondos em Gandembel, ter por companhia aquelas noites intermináveis em Mejo, uma emboscada perto do Corredor da Morte, e aquele frio na espinha que acompanhava as colunas de abastecimento para Buba ou Gadamael. Se alguém duvida, ainda hoje, que há memórias da guerra colonial que são inapagáveis, dê-se ao louvor, à exultação, à dor incontida que todo este livro de José Brás encerra,a modos de nos provocar no final, como se estivesse a proferir sermão, se nós não sentimos as liturgias da vinha da guerra, quem afinal, as sentiu? A cada um de nós cabe responder.

Um abraço do
Mário


Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (3)

Mário Beja Santos


Vamos hoje despedirmo-nos de Filipe Bento/José Brás com pompa e circunstância, é uma revisitação do Sul da Guiné, onde passou maus bocados, mas igualmente neste seu livro "Lavar dos Cestos" avulta a memória de acontecimentos da sua juventude em terras vindimeiras. A arquitetura da narrativa da obra é um verdadeiro carrossel de acontecimentos em terras estremenhas, fala-se no padre Gata, no Larixa, no seu avô José da Bonança, no tio Capadinho, na Mulher-João-Granja, no João Malino, no Vidigal Cigano, no Pirolas, no Zé Nicolau, tudo condimentado com intrigas e naifada, e pronto, já está, voltamos a África, mas cuidando sempre de denunciar as relações de poder envolvendo gente sem terra, lembrando tarefas de extrema dureza e até mesmo atentatórias de saúde:
“Nos sulfatos, não imaginam vocês, pelo menos os que nunca ataram esta vidinha das vinhas entre abril e o fim de junho, o cobre da solução cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra no enrugado e os poros. Se passarmos as mãos apenas por água limpa do poço, ou se as deixarmos até ao fim do dia sem uma boa lavagem dos altos para as refeições… ou até ao fim de semana… ou, havia quem fizesse assim, até ao fim da campanha em junho, três meses puxados, aquilo já não eram mãos de gente, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um bicharoco tentacular, um polvo a agitar os seus tentáculos. Eu cá, no fim do dia, lavava as mãos com mijo. Acabava o trabalho, esperava a vontade, afastava-me um pouco da maralha, virava costas a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos.
Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias.”

Estamos agora na Guiné, há ainda a recordação do Padre Francês, era assim que chamavam o Alex, que desertou e foi para Paris, vão suceder-se peripécias, montam-se emboscadas no caminho para o corredor de Guileje, há lembranças do rio Cumbijã, que ele assim apresenta: “É um senhor rio que vai subindo, subindo mapa acima, cruzando terras deste pequeno quase novo país, dando voltas e reviravoltas, a bombordo, a estibordo e de novo a bombordo, por vezes parecendo que volta para baixo, criando e recebendo dezenas de grandes e de pequenos outros rios que se subdividem e se multiplicam eles próprios, alargando chãos, chegando a aldeias, enchendo e vazando bolanhas, terras de arroz, sonhos de gente que se quer ver livre de soldados tugas, de fuzileiros, de barcaças, de canhões e de guerras.”

Mas também descreve lugares: “Catió tinha organização e disciplina militar, com cornetada da alvorada e tudo; casernas alinhadas e com casas de banho mais ou menos; não mostrava ninguém de calção e chinela havaiana; tinha comércios e café com esplanada, e até tinha igreja, aposto que com missa matinal diária, ou pelo menos dominical, arruamentos e valetas com escoamento fluvial, enfim, diziam que ainda assim, com a chatice de um ou outro ataque do inimigo e base agitada para muitas operações de Comandos, de Paraquedistas, de Fuzileiros por esse mato do Cantanhez adentro, aviões, helicópteros, barcos… o eco de muitos combates revoando por matas e ilhotas e tarrafos e bolanhas.”

Há um retorno ao mundo estremenho, novas histórias sobre as rixas, estamos de novo na Guiné, desta vez em Bolama, é este vaivém absolutamente frenético que captura o leitor do princípio ao fim, porque no final da obra José Brás vai inquietar-nos quanto às consequências que podemos tirar das misérias da guerra, das agruras dos vindimeiros, das recordações que ele guarda do Estado Novo, despede-se e deixa-nos no desconforto:
“Perco-me aqui numa embrulhada interminável de historietas sem lhes conseguir encontrar a ligação e o principal fica por contar. E quando comecei a escrever tinha quase a certeza de que iria atingir esse objetivo. Mostrar que a guerra não caiu do céu. Que antes da guerra começar a vida já existia nas aldeias e nas cidades e que não parou só porque a guerra rebentou e os soldados iam e vinham aos milhares. E que nem os soldados nem os pais dos soldados sabiam explicar muito bem porque carga de água, de repente, começou tudo aos tiros. Soldado ia, soldado vinha, quando vinha, e sinais de Pátria não se encontrava senão nas fomes, na enxada e outras ferramentas, e agora, também na G3, no morteiro, na bazuca, no canhão sem recuo e no sangue vertido das veias dos camaradas (…) E vocês viram morrer o Lemos, viram morrer o Cabo Júlio, viram morrer o Madeirense e os dois de Barcelos… Viram é uma forma de dizer!
Mas é a mesma coisa, se sentiram como eu senti ao contar-nos, ainda mais do que senti ao ver de vista mesmo, no ato da sua morte. Não necessitaram sair de casa, claro, para terem notícias circunstanciadas sobre as suas mortes.

Não precisavam de os ver agonizar, de os procurar na mata as pernas decepadas; de os olhar nos olhos na despedida; de os carregar aos ombros ainda vivos já cadáveres inevitáveis; de lhes respirar os pesados cheiros, dias e dias, até que helicópteros lhes retirassem dali as negras caixas; não tiveram de morrer também de medo, de solidão, de impotência, de fome e de sede; de calor e de frio; de mil cansaços; nos estrondos, das rajadas e de semanas inteiras de mato; nos fornilhos de fósforo, nas febres, na água podre da bolanha, nas centenas de quilómetros de picada, de caminhos, de trilhos, de selva subtropical; nas emboscadas, nas flagelações, nas horas a rastejar sobre capim, sobre ramos e raízes, sobre lamas; na lentidão do tempo para o regresso; no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gandembel; na iminência do assalto final; na vertigem da última bala e na brasa do estilhaço… Não tiveram de sentir no ombro a mordidela do arco do caneco pesado na subida inclinada da vinha do Boeiro, nem de fazer ano a ano a viagem de comboio da Beira-Alta para as vinhas do Salazar, em S. Jerónimo, por uma merda de jorna, sardinhas de três meses e feijão-frade com bicho…

Não sentiram nas tripas a frieza metálica do canivete de volta do João Gato, nem o chumbo quente no peito, como o Arlindo.
Não sentiram nunca a alma a estraçalhar-se de desânimo nos trilhos perdidos dos Pirenéus.
Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas das praças de homens; valorados em lanços de coroa ou dez tostões; um quarto de pão escuro na mesa da ceia.
Não sentiram nunca…
Não sentiram vocês…
Não sentiram?
Então quem foi que sentiu?”


Um belíssimo romance de literatura memorial, é o mínimo dos mínimos que se pode dizer de "Lavar dos Cestos", de José Brás.

- José Brás foi Furriel Miliciano de Transmissões na CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras
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Notas do editor

Posts anteriores de:

16 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): Lavar dos Cestos, José Brás e Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)
e
23 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de dezembro de 2024 >Guiné 61/74 - P26319: Notas de leitura (1758): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25745: Notas de leitura (1709): "Missões de Um Piloto de Guerra", por Rogério Lopes; edição de autor, 3.ª edição, 2019 - Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
São memórias de um piloto que combateu na Guiné e Angola, um feixe de peripécias de situações omnipresentes em todo o tempo que aquela durou, desde aviões avariados, ao nascimento de crianças a bordo, o transporte de prisioneiros ou de sacos de cadáveres vitimados por uma daquelas explosões do combustível que pôs os corpos em tocha. Lembranças amargas umas, porque morreram pilotos heróicos e devotados, histórias de sobressalto, como uma cobra metida num sapato, a revelação de um sabotador em Bissalanca, os bombardeamentos noturnos, permanecer uma noite no quarto com um avião avariado e levar com uma flagelação, os T-6 na Operação Tridente, apanhando os guerrilheiros em plena praia, e não podemos deixar de gargalhar com a mulher do Governador Schulz levada pela multidão, a senhora a gritar e o Governador a pedir para apanharem a velha... Leitura que não vou esquecer tão cedo, até porque me assaltou à memória as ajudas recebidas da Força Aérea na evacuação dos meus feridos, pilotos tão solícitos e enfermeiras tão dedicadas.

Um abraço do
Mário



Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Rogério Lopes, (2.º Sargento Piloto, Guiné, 1963-1965), nascido em 1939, tirou a primeira licença de piloto civil em 1959 através da Escola Aeronáutica da Mocidade Portuguesa e nesse mesmo ano entrou na Força Aérea. Durante 3 anos esteve colocado na base aérea de S. Jacinto, parte para a Guiné em 1963. Passou à reserva em 1970 e foi trabalhar para a aviação civil. Das suas missões em dois teatros de guerra deixa-nos este relato que já vai em 3.ª edição, Missões de Um Piloto de Guerra, 2019.

São narrativas versáteis, revelam memórias de um espírito otimista, entusiasta, dotado de grande espírito de corpo, de muitas coisas nos falará, desde o seu batismo de fogo, a missões de socorro, o seu apreço pelos heróis do ar, avarias que não acabaram em desastre, bombardeamentos noturnos, evacuações de uma atmosfera de tempestade, crianças que nasceram a bordo, episódios picarescos, vale a pena contar um pouco de tudo, são os primeiros anos da guerra da Guiné.

Obviamente que conheceu voos acidentados e alguns deles com a fuselagem crivada de tiros. Era um piloto bem preparado e não perdia o sangue frio, veja-se este episódio:
“Aconteceu-me um incidente numa missão de correio e transporte de Auster para Gadamale-Porto, cujo quartel ficava junto a um rio com um cais no fim da pista. Acontece que a dita pista era um caminho de terra e lama, onde só se podia aterrar na maré-baixa, tendo apenas 600 metros de comprimento. Ora, nesse dia, a maré já estava a encher, o que estreitava a faixa de aterragem e aumentava o perigo de derrapagem. Depois de uma passagem baixa resolvi aterrar, correndo todos os riscos inerentes, e porque tinha uma evacuação a fazer e isso podia custar a vida a alguém. Tudo correu bem até ao preciso momento de aconchegar os travões, que eram ao contrário de qualquer outro avião, que são na ponta dos pedais, enquanto estes eram nos calcanhares. Aí é que foi o diabo, o avião começou a dar ao rabo como uma dançarina de rumba, e lá vou eu, deslizando como sabão sobre azulejo molhado. Os 600 metros acabaram, consegui apontar à rampa de 5 metros de largura que dava acesso à doca e… entrei deslizando por ali dentro, gerando a confusão total. Soldados, civis, brancos, pretos e mestiços pareciam baratas aterrorizadas. Eu é que não estava pelos ajustes que só me restava uma solução: provocara um cavalo-de-pau, ou seja, rodar 360 graus, e assim fiz.”

Guarda saudades da Aldeia Formosa, o régulo recebia-o sempre prazenteiramente. Foi inevitável, nasceu-lhe uma criança a bordo, tudo aconteceu num Do-27, voou para Farim, a bordo seguia um mecânico e uma enfermeira paraquedista, tratava-se de um parto complicadíssimo. 

“No regresso e no eclodir dos primeiros gritos a bordo, a enfermeira-paraquedista, apesar dos seus temores, arregaçou as já curtas mangas, desinfetou-se, calçou luvas próprias, ordenou ao mecânico que agarrasse a mulher e mergulhou as suas mãos energicamente. Entre os gritos da paciente, da transpiração da enfermeira e da boca aberta do mecânico, esgazeado por todo aquele aparato a que nunca tinha assistido, eu ia tentando, com o meu feito brejeiro, amenizar um pouco todo aquele stress, dizia que ia sair do meu lugar para ajudar, o que deixava a pobre paraquedista ainda mais nervosa. Depois de uma hora de luta intensa, de berros, suores e cabelos em desalinho, finalmente ouvi um grito de jubilo: Ó Lopes, olhe, já se vê a cabecinha! O nosso cabo mecânico, com uma cara assaz comprometida, continuava a desculpar-se com o seu pouco ou nenhum auxílio, dizendo que não tinha luvas para tal tarefa. Quando aterrámos o bebé acabava de nascer.”

Uma vez foi a Tite levar passageiros e correio, quando este lhe foi entregue tentou ligar o motor, nada, como último recurso rodou a hélice à mão com os magnetos ligados, nada, ali ficou à espera de auxílio, no dia seguinte. Nessa noite houve flagelação, a sua grande preocupação era o avião, saiu ileso daquele confronto, em compensação parte do telhado da caserna tinha desaparecido. Ele fora bem recebido por um Furriel vagomestre, soube na manhã seguinte que tinha sido atingido à saída do quartel. 

Também passou por peripécias com jagudis intrometidos, houve um que lhe entrou no avião com uma bala de canhão, passou um mau bocado, mais tarde recebeu um jagudi embalsamado, “oferta dos nossos soldados do quartel de Binar para o aviador que nesse dia ia perdendo a vida ao tentar entregar o correio por que tanto ansiavam e não receberam, por este ter encontrado no caminho o guerreiro jagudi”.

E vem agora o episódio mais hilariante da narrativa, intitulado “A visita oficial do Governador”:
“Bem cedo, pela manhã, com o Dornier já preparado, pouco esperei pelo Governador e comitiva, que constava apenas da esposa, que aparentava ser mais velha do que ele e tinha dificuldade em andar, e o oficial de operações às ordens.
A viagem de Bissau a Bafatá era de mais ou menos uma hora. Nos bancos de trás, ia o oficial de operações e a senhora e, ao meu lado, o general. Como simpatizávamos um com o outro, aquela hora foi passada de forma e conversa agradável, até a nossa vista alcançar a pista de dois quilómetros de terra batida, mas em bom estado, ladeada pela formação das tropas dos três ramos das Forças Armadas. Todos eles com as suas melhores fardas e ostentando orgulhosamente as medalhas. A separar a população nativa havia um cordão da polícia militar para impedir a invasão da pista. Aterramos no meio de todo aquele aparato festivo, com o clamor de palmas, gritos, fanfarra, rufar tambores, guizos indígenas e bandeiras flutuando ao sabor da agitação de centenas de mãos; assim que parámos, um diligente oficial veio rapidamente abrir a porta de trás do Dornier, para ajudar e facilitar a saída da esposa do Governador.

Ainda hoje, não sei dizer ao certo como tal aconteceu, mas a verdade é que a populaça rompeu o cordão de segurança e, rodeando o Dornier, sacou rapidamente a senhora, levando-a em ombros, acompanhada de gritos festivos, para o meio da multidão em delírio.
A senhora olhava para trás e gritava para o marido a tirar dali, e ele, por sua vez, dizia para mim, com ar assustado: Ó Lopes, eles levam-me a velha!
Depois, gritando o mais que podia, para ser ouvido pela tropa que estava tão desnorteada como nós, repetia incessantemente: Apanhem a velha, apanhem a velha!
E lá se foi todo aquele aparato disciplinar por água abaixo. As alinhadas formaturas desfizeram-se, a multidão branca e preta corria para apanhar a senhora, que continuava a gritar para o marido, no meio daquele mar colorido de civis, militares, bandeiras, estandartes e fanfarra à mistura.”


Dedica um texto e muito emotivo à morte do alferes Pité, como igualmente nos relata a tragédia de fuzileiros falecidos mortos a caminha de Madina do Boé. Uma bazucada rebentara o depósito de combustível de um dos carros e todos os que ali iam foram consumidos pelas chamas, tiveram uma morte horrorosa. Os camaradas eram uma máscara de dor, com os seus gritos dilacerantes. E Rogério Lopes, pesaroso, descreve os voos para transportar os cadáveres envolvidos em enormes sacos de plástico preto. “Foram quarenta atrozes minutos em que as minhas narinas ficaram impregnadas de um cheiro que jamais esquecerei, assim como a pena por aqueles infelizes fuzileiros, que não conhecia pessoalmente, mas que admirava pela coragem demonstrada no campo de combate.”

Em maio findou a sua comissão, em junho foi condecorado no Terreiro do Paço com uma Cruz de Guerra, ao lado do seu Comandante na Guiné. Sentiu uma saudade imensa por aqueles que jamais voltariam.

Não vou esquecer tão cedo tão memorável, dura narrativa, recheada de peripécias inusitadas e outras não tanto, onde paira sempre o sentido de ver alanceado pelo otimismo.



Cruz de guerra, 3.ª classe
T-6 em pleno voo
O Do-27
O Auster
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Notas do editor:

Post anterior de 8 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25726: Notas de leitura (1707): "Missões de Um Piloto de Guerra", por Rogério Lopes; edição de autor, 3.ª edição, 2019 - Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 12 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25738: Notas de leitura (1708): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1867 e 1868) (11) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25494: Estórias do Zé Teixeira (63): O “Diário” do José Cuidado da Silva (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)


Segunda e última parte do "Diário" do José Cuidado da Silva, chegado até nós através do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381[1]

Buba, 22 de julho de 1968

Neste dia saímos do quartel às seis da manhã, e fomos emboscar na estrada de Buba para Aldeia Formosa para passar a coluna vinda de Aldeia. Neste dia estivemos sem comer durante todo o dia, e a coluna chegou já de noite ao quartel. 

Ao entrar dentro do quartel os turras começaram a atacar, mas graças a Deus só houve dois feridos, um alferes e um cabo, e a mim coube-me uma coisa sem importância, pois fiquei dentro de um oleoduto [?] que cheirava mal, ainda pior do que fosse uma retrete, e assim termino este meu [...] , sobre o ataque que eu tive nesta data.


Aldeia Formosa, 19 de agosto de 1968

Neste dia, há
   volta das oito horas da noite, mais um lindo ataque dos turras, mas as morteiradas não chegaram cá, pois apenas caíram duas perto do quartel, mas com certeza eram de canhão porque nós apenas mandamos cerca de dez morteiradas e o ataque durou cerca de vinte minutos, e assim com estas palavras termino.


Aldeia Formosa, 20 de agosto de 1968

Nesta data fomos fazer uma coluna a Gandembel e partimos de cá da terra (Aldeia Formosa) eram 11.30, e sempre a picar a estrada por causa das minas. 

A primeira ponte estava destruída. Tivemos de montar as pranchas para as viaturas passarem, e assim fomos andando. Mais à frente estava o chão cheio de minas, e assim tivemos de parar e o furriel Pedro foi rebentá-las, e rebentou cerca de cinco minas e um dos meus colegas rebentou uma com a vara e caiu para o chão como morto, e foi imediatamente o enfermeiro tratá-lo e foi transferido para Bissau, para o hospital de helicóptero. 

Como a estrada estava cheia de minas, e já era quase de noite tivemos ordem para regressar para o quartel. Este pobre rapaz é de perto da Foz do Arelho e chama-se António.


Aldeia Formosa, 22 de agosto de 1968

Neste dia tivemos de ir novamente fazer a coluna a Gandembel. Partimos de Aldeia eram 6 horas da manhã, e a estrada sempre picada pelo meu pelotão. 

Chegamos ao mesmo sítio anterior onde estavam as minas. Nós rebentamos cerca de 17 minas, e levantamos também algumas, não sei quantas. E aonde estavam também os paraquedistas a montar segurança. Eles levantaram cerca de trinta minas antipessoais, e quando as viaturas iam a passar rebentou uma debaixo de uma viatura, sem haver novidade, e assim chegamos a Gandembel, e tivemos de sair de lá cerca das quinze horas e depois regressar até Aldeia Formosa.

Chegamos até a Chamarra e tudo a correr bem. Daí em diante viemos nas viaturas a cavalo, bem descansados da nossa vida, quando sofremos uma emboscada no caminho e começaram as morteiradas a cair por cima da gente e a costureirinha a trabalhar, etc...

Estava um bombardeiro em Aldeia Formosa, de aonde levantou voo, e foi ter com a gente, ainda nos encontrávamos debaixo de fogo. Ele lá largou as suas mesinhas em cima daqueles cabrões, e eles logo deixaram de dar fogo. Houve cinco feridos. Três soldados da minha companhia e um furriel que era o Samouco e um soldado dos velhos. Destruíram também uma viatura. 

No dia seguinte o primeiro pelotão foi fazer o reconhecimento, e encontraram um morto e manga de sangue, um cantil e um carregador. Assim termino esta minha história vivida pelo meu pelotão e pelo quarto pelotão e alguns homens do Pelotão Fox.


Aldeia Formosa, 25 de agosto de 1968

Na data indicada em cima, tivemos uma tarde de festa que começou cerca das cinco horas, e demorou cerca de 15 minutos. Neste dia andavam africanos a jogar a bola com colegas meus, e o jogo era na pista de aviação.

 Pois os turras quando começaram a atacar, mandaram as canhoadas e as morteiradas para a pista, mas não houve novidade nenhuma dessa parte da pista, e depois começaram a cair para os lados das tabancas, e encontravam-se pessoas [militares ?]  no lado das tabancas. Quando iam a fugir para o quartel, um homem da companhia dos velhos levou com um estilhaço na barriga, e seguiu para o hospital em Bissau.

E estas são as últimas palavras deste ataque.


Aldeia Formosa, 27 de agosto de 1968

Fomos fazer uma coluna a Buba, que nela tivemos pouca sorte, e por isso tenho sempre escrito estes grandes sacrifícios que eu tenho passado junto dos meus colegas. 

E por isso vou agora contar o que se passou nesta coluna. Ia o 4º Pelotão a picar a estrada, tudo a correr bem, e aonde estava uma anticarro debaixo de um cibe e o 4º Pelotão não deu com ela. Passou a primeira viatura, sem haver problemas e quando ia a segunda viatura a passar arrebentou, e foi a uns poucos metros de altura, e o condutor também, pois ficou a contar estar muito esmagado por dentro, e a viatura ficou toda destruída. Ia a montar segurança entre a primeira e a segunda viatura, apenas caiu terra por cima da gente, mas não houve qualquer outro ferimento, e assim começamos a andar. 

Mais à frente estava a ponte destruída, pois tivemos de a arranjar, e aonde estavam quatro minas antipessoais, e um condutor da minha companhia pôs o pé em cima que ficou com o pé todo escavacado, e as três minas o furriel alevantou-as. Pois esse pobre rapaz, desde as 9.15 horas, sempre a gritar que até metia horror, pois só quase à noite é que veio o helicóptero buscar este infeliz. Quando chegamos a Nhala eram oito horas da noite. 

Chegamos de noite devido às pontes estarem destruídas pelos turras. Passamos a noite em Nhala e só no outro dia é que partimos para Buba, tudo a correr em bem graças a Deus, mas esse pobre infeliz rapaz que arrebentou a mina debaixo do pé teve de levar a perna cortada, e assim são estas últimas palavras desta minha guerra.


Aldeia Formosa, 9 de setembro de 1968

Mais um ataque neste dia por esses grandes parvos dos turras. Já era de noite quando eles atacaram, mas as morteiradas e as canhoadas não chegaram ao quartel, e nós mandamos só quarto morteiradass e seis obuzadas e os gajos assim nos deixaram a gente em paz. Ao fim de ter passado à volta de uma hora, mandamos dez obusadas para a Guiné francesa, e assim terminou este encontro.


Aldeia Formosa, 12 de setembro de 1968

Mais outra festa neste dia acima indicado, e assim vou contar esta história. Já quase de noite, os homens da Fox saíram fora do quartel com as Daimlers, e os turras estavam emboscado para atacarem o quartel, mas como ouviram o barulho dos carros a avançarem, logo atacaram os homens das Fox e o quartel ao mesmo tempo. O morteiro do quartel mandou quatro morteiradas e os obuses mandaram duas ameixas, e assim terminou a festa e o pessoal das Fox regressou depois para o quartel sem haver problema. 

Depois de ter passado uma hora, os obuses estiverem sempre a trabalhar toda a noite, pois mandaram dezasseis obuzadas para a Guiné francesa e já terminei.


Aldeia Formosa, 1 de outubro de 1968

Em virtude de me encontrar na Província Ultramarina da Guiné tenho de escrever mais estas seguintes palavras que foram passadas na data indicada acima em Aldeia Formosa. Assim vou escrever o que se passou durante cerca de sete horas, pois choveu tanto, e fazia tanto vento que queria levar as casernas, mas levou, apenas, as chapas de zinco, que estavam a fazer de telhas numa pequena caserna onde estava a secretaria e pessoal da minha companhia a dormir. 

Os papeis da secretaria ficaram todos molhados, e a sorte de um rapaz foi de trazer a mala às costas, senão tinha ficado ferido. Uma chapa de zinco caiu em cima da mala, aonde a cortou ao meio e ainda coisas que continha dentro, e assim com estas palavras, não houve feridos, mas sabe Deus como nós nos vimos nesta aflição. Rebentaram cerca de seis armadilhas devido ao temporal, e assim são estas as últimas palavras deste temporal.


Aldeia formosa, 22 de novembro de 1968

Mais uma história que vou contar desta minha guerra. Nesta data fomos fazer uma coluna a Gandembel, aonde iam com a gente os paraquedistas. Levávamos oito viaturas com géneros, e a malta ia a pé, porque íamos a picar a estrada. Chegamos a meio do sector com tudo a correr bem, e depois tivemos de montar a ponte para as viaturas passarem, e daí em diante nós já fomos encima dos carros, mais à frente tivemos de passar por outra ponte que é a Ponte Balana. 

Ao passar a última viatura a ponte caiu, aonde houve dois feridos da minha companhia e dos paraquedistas, aonde foram logo transportados de helicóptero para Bissau. Depois regressamos a Aldeia Formosa, e assim chegamos ao nosso destino com tudo a correr pelo melhor.


Aldeia Formosa, 31 de dezembro de 1968

Nesta data indicada acima, tivemos mais um ataque ao quartel, e nós já estávamos sabedores, porque o nosso capitão mandou formar a companhia para nos dizer. Eu estava de reforço ao portão dois, eram perto das seis da tarde quando nós ouvimos arrebentamentos. Assim que nós ouvimos arrebentamentos fomos imediatamente para a paliçada, e quando eram perto das dez horas, nós começamos a fazer fogo, quando eles atacaram com mais umas morteiradas e canhoadas. Os melros não conseguiram meter nenhuma dentro do quartel, e só acabou era meia-noite e meia. 

Assim entramos no ano de 1969 ao som das morteiradas e canhoadas. Os melros atacaram com seis canhões sem recuo e morteiros 120, e vieram com viatura pois foi a Companhia velha foi fazer o reconhecimento e nada encontraram. Esta guerra por hoje terminou.


Buba, 4 de fevereiro de 1969

Como andamos a fazer uma estrada de Buba até Aldeia Formosa, e já temos perto de dez quilómetros, e neste dia nós íamos com a nossa calma pela estrada fora quando caímos numa emboscada. Iam dois pelotões pelos flancos. Era o meu e o quarto, mas a emboscada rebentou do lado onde ia o quarto. 

Eles tinham dois fornilhos montados, e quando ia a passar o quarto pelotão, eles arrebentaram com um fornilho, aonde mataram um pobre rapaz cujo nome era o "Velhinho",  e houve cinco feridos, e nós tivemos ainda muita sorte foi o outro fornilho não ter rebentado.

Quando fomos fazer o reconhecimento, só encontramos quatro granadas de roquete. Isto será o fim [deste episódio] .


Buba, 9 de fevereiro de 1969

Neste dia tivemos um ataque ao quartel que quando começou eram 10.30h. Eu já me encontrava a dormir, mas o ataque era tão grande que eu até acordei. Alevantei-me da cama, e ia para fugir para a vala, mas já estava tão cheia que fui para debaixo da cama. 

Assim terminou o ataque, metendo só uma que furou uma parede de uma caserna aonde estava a companhia de Gandembel . Apenas houve um ferido dessa companhia, e esse foi para Bissau, e depois essa companhia foi no dia seguinte fazer o reconhecimento, aonde eles atacaram com 10 canhões e 4 morteiros 82, e encontraram manga de granadas de canhão, e pronto já está escrito.


Buba, 13 para 14 de fevereiro de 1969

Na noite de 13 para 14 de fevereiro às cinco da manhã sofremos mais um ataque estava a malta ainda a dormir quando elas começaram a cair. Eu não tive nada. Fui para debaixo da cama, e vários camaradas também. Eles meteram muitas canhoadas e morteiradas dentro do quartel, mas só houve um ferido da Companhia 2382 que foi o “Esgota-pipas”, e foi para o hospital, e o meu pelotão e o segundo foram fazer o reconhecimento donde eles nos atacaram com 14 canhões, 3 morteiros 82 e com armas ligeiras. Apenas apanhamos algumas granadas de canhão, e isto é o fim.


Buba, 19 de abril de 1969

Tudo isto é guerra. Mais um ataque que começou pelas oito da noite. Apenas meterem duas canhoada,s e uma delas furou a parede da minha caserna, mas sem haver qualquer acidente, e durou cerca de 10 minutos. No dia seguinte foram dois pelotões da minha Companhia fazer o reconhecimento, aonde estavam 18 granadas de morteiro, e encontraram postas de sangue. Atacaram com 8 canhões e 3 morteiros, e pronto por hoje já chega.


Buba, 4 de maio de 1969

Fomos fazer uma coluna até Nhala e ia a engenharia também, mas a engenharia ficou no segundo pontão, e aonde estava minada de minas, pois alevantamos 38 minas antipessoais e uma anticarro, e mais à frente nós íamos a picar, e encontramos a estrada toda escavacada e aonde alevantamos três minas, e havia outra que um rapaz da minha companhia lhe pôs o pé encima, e ficou com o pé todo partido. Foi socorrido pelos primeiros socorros e depois foi para o hospital em Bissau. 

Ao fim de cinco minutos da mina ter arrebentado, rebentou uma emboscada e caíram duas morteiradas de 82 a 3 metros da estrada aonde se encontrava o pessoal, e trabalhou a "costureirinha", e armas pesadas, mas não houve mais feridos. 

Depois eu estava à rasca da cabeça, e fui pedir ao alferes para vir para o quartel, e ele deixou-me vir. Vim mais o rapaz que tinha arrebentado a mina com o pé e chama-se Miguel. Vim sempre a segurar a perna, e o resto da malta seguiu até Nhala, e alevantaram mais mina anticarro, e depois tudo correu bem, e assim termino. Tudo isto é guerra


Mampatá, 17 de maio de 1969

Estive em Mampatá cerca de 15 dias, e no dia 16 os turras fizerem um pequeno ataque. Foi apenas com lança.roquetes, e armas ligeiras, mas não houve qualquer novidade, e no dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e nada encontramos. 


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento... A unidade de quadrícula anterior terá sido a CCCAÇ 3326 (1971/73, Mampatá e Quinhamel) a que pertenceu o nosso camarada António Amaral Brum, há 36 anos emigrado no Canadá. Em 1968, no último trimestre, esteve aqui destacado o José Teixeira, o José Cuidado da Silva, o Eduardo Moutinho Santos, o José Belo, o José Manuel Samouco  e outros "Maiorais" (CCAÇ 2381, 1968/70).

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mampatá, 31 de maio de 1969

Neste dia saímos de Mampatá na coluna de Aldeia Formosa para Buba, e foram alguns rapazes da minha companhia a picar a estrada até ao meio do sector. Ao fim de alguns quilómetros tivemos uma emboscada, onde houve dois mortos e seis feridos. Os mortos e os feridos eram de uma companhia que já tinha dezanove meses, e assim seguimos para diante. 

Mais à frente encontramos uma mina anticarro, e por cima ainda estava um antipessoal. Passei eu e mais outro rapaz ao lado dela. A nossa sorte foi ele não a ter pisado, pois se a gente a pisasse, nem sequer se viam os nossos ossos, pois alevantamos a mina e começamos a andar. Ao fim de alguns quilómetros houve outra emboscada, aonde caiu uma roquetada aquase ao pé de mim e dos meus camaradas ferindo dois rapazes da minha companhia.

Um chama-se Manuel Luís que é da Azinheira e o outro era o Silva, e nós ao fim destas duas emboscadas já não tínhamos aquase 
[sic]   nenhum material de guerra.

 Tivemos de ser abastecidos de helicóptero, e mais à frente tivemos mais outra emboscada que o fogo durou cerca de vinte minutos. Aquase que não tinha fim, e era aquase de noite. Houve um rapaz das Fox que levou um tiro na testa, e aonde veio a falecer ao fim de alguns momentos. Os bombardeiros andaram todo o dia por cima de nós, e os Fiat andaram também, cerca de quinze minutos, e também tivemos mais à frente outra emboscada, mas os bombardeiros deram com eles, e fizeram fogo, e depois daí em diante tudo nos correu bem até chegarmos a Buba, mas com muitos sacrifícios não chegamos, menos aqueles infelizes que morreram.


Empada, 13 de junho de 1969

Aqui, neste pequeno quartel de Empada, foi o meu primeiro ataque que eu tive na data indicada acima. Nada me meteu medo. Eu nessa altura estava a comer galinha e a beber aqueles copos da ordem junto de alguns camaradas.

 Nós ficamos tão descansados, como não fosse nada connosco pois elas caíram a 500 metros desviadas do quartel e assim por hoje já chega. Envio cumprimentos para os turras desta emboscada. José Cuidado da Silva


Empada, 16 de junho de 1969

Era uma hora da noite e eu estava dormindo num pequeno abrigo, mais alguns camaradas bem descansados, mas foi só ao som das canhoadas e morteiradas que nós acordamos. 

Fomos ver, eram os nossos amigos turras a darem-nos os bons dias, mas além de ser um quartel pequeno, eles ainda conseguiram meter algumas lá dentro ferindo dois rapazes. Um foi para o Hospital, o outro não foi preciso, e também caiu uma canhoada dentro da tabanca matando dois africanos e deixando um em perigo de vida. 

 No dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e só encontramos invólucros, e agora termino. Cá fico esperando os turras para um novo ataque.


Empada, 28 de junho de 1969

Mais uma vez uma linda festa feita pelos turras. Eram oito horas quando eles começaram a mandar morteiradas e canhoadas, mas elas caíram bem longe deste pequeno quartel, pois ficaram a meio do caminho. 

Quando a festa começou eu estava no café a beber aqueles copos da ordem, e eu ainda naquele momento disse estas seguintes palavras ao Eusébio: "Dá-me agora mais um tinto, e se quiseres beber aproveita agora, pois agora vai à saúde dos turras, não é verdade? Eles de vez em quando lembram-se de nós."


Buba, 31 de julho de 1969

Mais umas palavras tenho a acrescentar, mas desta vez é em Buba. Neste dia fomos picar a estrada para a coluna de Aldeia Formosa passar. O meu pelotão picou até cerca de quatro quilómetros, e foi tudo a correr bem. Depois rebentou uma mina na viatura da frente, aonde levava cerveja e tabaco. Foi tudo pelos ares, e nós a beber cerveja e roubar tabaco. Foram aquelas bebedeiras da ordem, e os pretos a roubar sabão, pois só houve dois feridos. Um era da minha companhia, e o outro era africano. 

Depois trouxemos a viatura para Buba e a coluna seguiu para Aldeia Formosa e pronto.


Buba, 3 de agosto de 1969

E agora, mais uma vez, aproveito cinco minutos para escrever estas palavras. Mais um lindo ataque neste tão belo dia. Eram seis da tarde quando caiu uma canhoada dentro do quartel e feriu duas vacas. Foi uma pena não as ter matado…e todas. 

E não houve mais novidade. Talvez para a próxima já haja novidades. Tu és Buba o alvo de canhoadas e morteiradas, mas só me faltam sete meses para acabar os meus sofrimentos.


Buba, 19 de setembro de 1969

Eram perto das seis da tarde, quando os turras começaram a atacar, mas elas caíram todas dentro do rio, e eu nessa altura estava dentro do refeitório para arreceber  
 [sic] a comida quando elas começaram a assobiar, e houve apenas um ferido e houve apenas um ferido [repetido] , mas foi devido a fazer fogo com o morteiro 60, e esse partiu dia 20 para o hospital, e não houve mais problema, apenas um preto fugiu no mesmo dia com uma G3. Pronto.


Buba, 21 de setembro de 1969

Eram 4.30 da tarde quando os turras resolveram novamente atacar, mas as morteiradas e canhoadas caíram todas dentro do rio, e apenas só nos assustaram, e nada mais.


Buba, 29 de setembro de 1969

Mais um ataque. Pois eram perto das 4 horas da tarde quando algumas morteiradas e canhoadas caíram dentro do rio. Apenas uma caiu dentro do quartel, e algumas também assobiaram por cima, e assim se passou mais um ataque sem haver problema, e quando eram perto das seis horas voltaram novamente, mas essas ficaram todas dentro do rio. Decerto era para matarem o peixe, e nós nesse segundo ataque não fizemos fogo, e por hoje já chega.


Buba, 10 de outubro de 1969

Neste dia fomos fazer uma coluna a Nhala, e quem foi a picar foi a minha malta. Saímos do quartel eram 6 horas da manhã, e nós ao meio do setor encontramos um fornilho. Quem o encontrou foi o Rio Maior. Era um fornilho com carga elétrica. O furriel Pedro alevantou-a, e assim começamos novamente a andar. Avançamos mais um km. e ficamos emboscados. Aguardamos perto das cinco horas, e depois viemos nas viaturas até Buba. 

Era quase de noite quando nós chegamos, e foi quando começou mais um ataque, mas as morteiradas e canhoadas ficaram a meio do caminho, e nós nem sequer fizemos fogo, e assim termino este historial.


Buba, 12 de outubro de 1969

Eram 5.30 horas da tarde quando os turras mais uma vez nos atacaram. Caiu manga de canhoadas e morteiradas dentro do quartel, mas não houve feridos, e assim que acabou o fogo, a malta saiu fora do quartel, e fomos ao local que eles estiveram a atacar.

 Nada encontramos, e já era quase noite, e amalta regressou ao quartel. Também estavam cerca de trezentos turras do outro lado com armas ligeiras para fazer a tentativa para entrar dentro do quartel, estava um pelotão da 2382, e a milícia emboscados, e quando os turras fizeram o seu esforço para entrar, a malta abriu fogo, e assim eles fugiram, pois no dia seguinte foram os fuzileiros fazer o reconhecimento, aonde encontraram 150 granadas de morteiro 82, 3 de roquete, seis de canhão e também uns binóculos, manga de fio e ainda telefone. Atacaram-nos com 8 canhões e quatro morteiros 82, e pronto e nada mais por hoje.


Empada, 9 de janeiro de 1970

Mais um ataque no qual arderam 6 tabancas, e não caiu nenhuma dentro do quartel. Eram 11.30 horas quando nos atacaram. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento, e nada encontramos, e eles roubaram mandioca aos pretos, pois fomos atacados a quinhentos metros do arame com roquetes e outras armas ligeiras.


Empada, 13 de janeiro de 1970

Eram dez horas da noite quando a festa começou pelos turras, mas desta vez ainda não caiu nada dentro deste tão pequeno alvo. Apenas queimaram seis tabancas. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento, e nada encontramos. Atacaram-nos com um canhão, um morteiro 82, roquetes e outras armas ligeiras.


Empada, 31 de janeiro de 1970

Mais um ataque com canhões e morteiros 82, mas não caiu nada dentro do quartel. Ficaram ao meio do caminho. Noutro dia seguinte fomos fazer o reconhecimento. Os nossos morteiros não chegaram lá, e assim foi o último ataque que nós tivemos. Depois viemos para Bissau, e aonde nos encontramos à espera de um autocarro para nos levar até à Metrópole, para visitar as nossas famílias.

Parti para esta Província da Guiné em defesa da Pátria - 1 de maio de 1968 e terminei a 9 de abril de 1970

Assim termino esta minha comissão de reforço com suor e lágrimas no meio destas matas em defesa da Pátria. Agora quero ir embora abraçar os meus pais.

Quero ir embora para matar as saudades que há tanto tempo me encontro ausente. A caminho de 24 meses gozando (?) estas terras desta tão pequena Província da Guiné com suor e lágrimas, e assim defendi, e lutarei sempre pela Pátria.

José Cuidado da Silva

(FIM)