Capa do livro do Manel Mesquita,
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp.
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)
1. Não havia só as anedotas do "Caco Baldé", ou do "Gasparinho"... Havia uma Spinolândia, do Cacheu ao Cacine... Naquela guerra, todos os bons pretextos para um gajo se rir ajudavam a passar o tempo e amenizar as agruras do arame farpado e das operações no mato (*)...
Há "cromos" que ficam para a eternidade, "grafados" no papel. Outros vão desaparecer dos neurónios da nossa memória. Já aqui citámos alguns dos "heróis" do livro do Manel Mesquita, "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor, s/l, 2005, 144 pp.), como por exemplo o Mário...
O Mário já estava farto de estar na Guiné e um dia encheu-se de coragem e interrompeu o general, em plena parada, em Aldeia Formosa, para expor a sua situação: "Vossa Excelência, meu general, dá-me licença ?" (**)...
O general deu-lhe "licença" e o Mário ganhou um "bilhete" para regressar a casa no primeiro barco... A história foi contada pelo Manel Mesquita, o autor dos "Resistentes de Nhala", soldado da CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71).
O nosso crítico literário já lhe dedicou em tempos, ao livro e ao seu autor (que conheceu a caminho de Fátima), duas saborosas e generosoas "notas de leitura" (***)
(...) "Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente." (...)
Nessa galeria de figuras humanas, do tempo da Spinolândia, está o "Fugitivo"... Merece figurar aqui num poste, na montra grande do nosso blogue. Não sei se o Spínola o conheceu, mas deveria, por certo, de gostar de o conhecer. Nós gostámos e pedimos licença ao Manel Mesquita para partilhar o seu retrato-robô com os nossos leitores. É um retrato feito a traço grosso, convenhamos. Mas o leitor vai-se rir a bandeiras despregadas, como nós rimos.
É uma figura bem típica da "literatura pícara" da nossa guerra. Como é nosso timbre, não fazemos juízos de valor sobre os nossos camaradas... A verdade é que "a tropa mandava desenrascar"... E o "Fugitivo" era um militar desenrascado... À letra, desenrascado é alguém que se sabe "livrar de um perigo, de apuros, de dificuldades."...
Reproduzimos aqui, com a devida vénia, essas duas páginas do livro. É também uma homenagem aos "resistentes de Nhala", os bravos da CCAÇ 2614.
O "Fugitivo"
por Manel Mesquita
O "Fugitivo" era natural e residente no concelho de Sintra. Era fisicamente muito baixo e entroncado, um artista a jogar futebol, preferia o lugar de médio atacante.
Quando fomos para a recruta, rodava na televisão uma série com o nome "O Fugitivo". Ele assentou praça com um braço ao peito por fratura. Como havia outro, o outro levou com a alcunha de "Maneta". E o nosso Manuel Pedro M... levou com a alcunha de "Fugitivo".
Nunca se importou. Era uma pessoa alegre e com sentido de humor.
(i) A tomar banho, um dia, deu nas vistas o seu curto pénis, foi motivo de chacota durante toda a comissão, principalmente na presença de mulheres africanas. Ele não desarmava, dizia que era proporcional ao corpo.
(ii) Quando veio de férias, gabou-se e passou a constar-se que andava com uma determinada moça jeitosa e com dote. Tinha barba muito forte, uma manhã foi ao barbeiro, todos os cumprimentaram o recém-chegado e deram-lhe a vez.
Quando o barbeiro lhe passava a navalha de barba pela parte da frente do pescoço, perguntou-lhe:
− Então você é que é o tal que se gaba que anda a comer a minha filha?!
O Manel Pedro (como é lá conhecido) perdeu o sentido de humor, quase perdia a fala:
− Eu?!..., na, na, eu não!... É mentira. Isso é uma grande mentira..., eu até nem gosto de mulheres!!!...
O barbeiro voltou-se para a sua mesa de trabalho, passando a navalha pelo assentador.
O "Fugitivo" mostrou por que lhe chamavam tal nome: levanta-se da cadeira, larga as toalhas e, junto da porta, grita para dentro:
− Eu... eu até sou paneleiro!
Fugiu da barbearia com a barba meia feita e meia por fazer e toda por pagar, nunca mais por ali ele quis passar.
Mostrou, mais uma vez, que não foi por acaso que o batizaram como "Fugitivo". Ficou então a saber a que a tal Maria do Carmo era a filha do barbeiro...
(iii) Quando convidado para um petisco, era sempre o primeiro a aparecer. Era um bom garfo! Para trabalhar e para as saídas (para o mato) era sempre o último. Quando preparávamos a saída, o alferes perguntava se estava o "Fugitivo"; se sim, estava tudo, podíamos sair.
Escapava-se, sempre que podia, às faxinas e outros serviços de quartel.
(iv) Um dia segredou a um de nós que a namorada se queixava que nos aerogramas e cartas não lhe mandava palavras doces... Então o "Fugitivo" encheu-lhe uma aerograma de palavras como: marmelada, geleia, mel, açúcar, compostas, etc., isto para o pequeno-almoço; para o almoço: laranjas, tangerinas, etc.; para o lanche, marmelada, mel, geleias, etc.; para o jantar: uvas, figos, maçãs, pêras, etc.
(v) Um colega estava com uma máquina fotográficas na mão, ele meteu-se todo dentro de um bidão e... pediu-lhe:
− Tira-me uma fotografia de corpo inteiro para mandar à moça.
(vi) Num dos patrulhamentos, parámos para descansar junto à "Bolanha dos Passarinhos". Tirou a carga para descansar e, quando levantámos, nunca mais se lembrou que deixara ali no chão o cano suplente da HK 21.
Quando chegou oa aquartelamento deu pela falta. Preocupado, disse a todos a enrascada em que estava envolvido, que tinha que ir lá buscar o cano.
Como raramente falava a sério, ninguém se acreditou. Era noite, preparou-se e começou a ir sozinho. Foi aí que o pessoal se acreditou, e apareceram voluntários a comunicar e a pedir autorização ao capitão para ir ao local.
O "chefe" comprendeu a aflição do soldado e mandou uma viatura. Soubemos que havia correio em Buba, aproveitámos e fomos lá buscar o que para nós era importante receber. A viatura avariou, e não havia mecânico. Desenrascámo-nos, mas chegámos ao aquartelamento era quase meia-noite, sem jantar e sem comunicações com ninguém, mas já com o cano que era considerado material de guerra.
(vii) Dizem que um dia mandou dizer à mãe (não sei esta é verdade, ele nega; "lerpar" era um calão que queria dizer, para nós, morrer)... Ter-se-á referido a um colega duma aldeia vizinha, nestes termos:
− Minha mãe, o ... (nome do fulano) lerpou. Vai antes do tempo. Um dia destes ele vai chegar aí, num barco.
Na volta do correio, a mãe respondeu-lhe:
− Meu filho, vê se lerpas também, para vires mais cedo daí!
(Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)
Fonte: in Manel Mesquita, "Os Resistentes de Nhala", ed. autor. s/l, 2005, pp. 130/132.
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.) ______________