terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25396: Humor de caserna (58): O anedotário da Spinolândia (IX)... O "Fugitivo", por Manel Mesquita ("Os Resistentes de Nhala, 1969/71", s/l, ed. autor, 2005, pp. 130/132)


Capa do livro do Manel Mesquita, 
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp. 
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)


1. Não havia só as anedotas do "Caco Baldé", ou do "Gasparinho"... Havia uma Spinolândia, do Cacheu ao Cacine... Naquela guerra, todos os bons pretextos para um gajo se rir ajudavam a passar o tempo e amenizar as agruras do arame farpado e das operações no mato (*)... 

Há "cromos" que ficam para a eternidade, "grafados" no papel. Outros vão desaparecer dos neurónios da nossa memória.  Já aqui citámos alguns dos "heróis" do livro do Manel Mesquita,   "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor,  s/l, 2005, 144 pp.), como por exemplo o Mário...

O Mário já estava farto de estar na Guiné e um dia encheu-se de coragem e interrompeu o general, em plena parada, em Aldeia Formosa, para expor a sua situação: "Vossa Excelência, meu general, dá-me licença ?" (**)...

O general deu-lhe "licença" e o Mário ganhou um "bilhete" para regressar a casa  no primeiro barco... A história foi contada pelo Manel Mesquita, o autor dos "Resistentes de Nhala",  soldado da CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71). 

O nosso crítico literário já lhe dedicou em tempos, ao livro e ao seu autor (que conheceu a caminho de Fátima), duas saborosas e generosoas "notas de leitura" (***)

(...) "Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente." (...) 

Nessa galeria de figuras humanas, do tempo da Spinolândia, está o "Fugitivo"... Merece figurar aqui num poste, na montra grande do nosso blogue. Não sei se o Spínola o conheceu, mas deveria, por certo, de gostar de o conhecer. Nós gostámos e pedimos licença ao Manel Mesquita para partilhar o seu retrato-robô com os nossos leitores. É um retrato feito a traço grosso, convenhamos. Mas o leitor vai-se rir a bandeiras despregadas, como nós rimos. 

É uma figura bem típica da "literatura  pícara" da nossa guerra. Como é nosso timbre, não fazemos juízos de valor sobre os nossos camaradas... A verdade é que "a tropa mandava desenrascar"... E o "Fugitivo" era um militar desenrascado... À letra, desenrascado é alguém que se sabe "livrar de um perigo, de apuros, de dificuldades."...

Reproduzimos aqui, com a devida vénia, essas duas páginas do livro. É também uma homenagem aos "resistentes de Nhala", os bravos da CCAÇ 2614.


O "Fugitivo"

por Manel Mesquita

O "Fugitivo" era natural e residente no concelho de Sintra. Era fisicamente muito baixo e entroncado, um artista a jogar futebol, preferia o lugar de médio atacante.

Quando fomos para a recruta, rodava na televisão uma série com o nome "O Fugitivo". Ele assentou praça com um braço ao peito por fratura. Como havia outro, o outro levou com a alcunha de "Maneta". E o nosso Manuel Pedro M... levou com a alcunha de "Fugitivo". 

Nunca se importou. Era uma pessoa alegre e com sentido de humor. 

(i) A tomar banho, um dia, deu nas vistas o seu curto pénis, foi motivo de chacota durante toda a comissão, principalmente na presença de mulheres africanas. Ele não desarmava, dizia que era proporcional ao corpo.

(ii) Quando veio de férias, gabou-se e passou a constar-se que andava com uma determinada moça jeitosa e com dote. Tinha barba muito forte, uma manhã foi ao barbeiro, todos os cumprimentaram o recém-chegado e deram-lhe a vez. 

Quando o barbeiro lhe passava a navalha de barba pela parte da frente do pescoço, perguntou-lhe:

− Então você é que é o tal que se gaba que anda a comer a minha filha?!

O Manel Pedro (como é lá conhecido) perdeu o sentido de humor, quase perdia a fala:

− Eu?!..., na, na, eu não!... É mentira. Isso é uma grande mentira..., eu até nem gosto de mulheres!!!...

O barbeiro voltou-se para a sua mesa de trabalho, passando a navalha pelo assentador.

O "Fugitivo" mostrou  por que lhe chamavam tal nome: levanta-se da cadeira, larga as toalhas e, junto da porta, grita para dentro:

− Eu... eu até sou paneleiro!

Fugiu da barbearia com a barba meia feita e meia por fazer e toda por pagar, nunca mais  por ali ele quis passar. 

Mostrou, mais uma vez,  que não foi por acaso  que o batizaram como "Fugitivo". Ficou então a saber a que a tal Maria do Carmo era a filha do barbeiro...

(iii) Quando convidado para um petisco, era sempre o primeiro a aparecer. Era um bom garfo! Para trabalhar e para as saídas (para o mato) era sempre o último. Quando preparávamos a saída, o alferes perguntava se estava o "Fugitivo"; se sim, estava tudo, podíamos sair.

Escapava-se,  sempre que podia,  às faxinas e outros serviços de quartel.

(iv) Um dia segredou a um de nós que a namorada se queixava que nos aerogramas e cartas não lhe mandava palavras doces... Então o "Fugitivo" encheu-lhe uma aerograma de palavras como: marmelada, geleia, mel, açúcar, compostas, etc., isto para o pequeno-almoço;  para o almoço: laranjas, tangerinas, etc.; para  o lanche, marmelada, mel, geleias, etc.; para o jantar:  uvas, figos, maçãs, pêras, etc. 

(v) Um colega estava com uma máquina fotográficas na mão, ele meteu-se  todo dentro de um bidão e... pediu-lhe:

− Tira-me uma fotografia de corpo inteiro para mandar à moça.

(vi) Num dos patrulhamentos, parámos para descansar junto à "Bolanha dos Passarinhos". Tirou a carga para descansar e,  quando levantámos, nunca mais se lembrou que deixara ali no chão o cano suplente da HK 21. 

Quando chegou oa aquartelamento deu pela falta. Preocupado, disse a todos a enrascada  em que estava envolvido, que tinha que ir lá  buscar o cano. 

Como raramente falava a sério, ninguém se acreditou. Era noite, preparou-se e começou a ir sozinho. Foi aí que o pessoal se acreditou, e apareceram voluntários a comunicar e a pedir autorização ao capitão para ir ao local.

O "chefe" comprendeu a aflição do soldado e mandou uma viatura. Soubemos que havia correio em Buba, aproveitámos  e fomos lá buscar o que para nós era importante receber. A viatura avariou, e não havia mecânico. Desenrascámo-nos, mas chegámos ao aquartelamento era quase meia-noite, sem jantar e sem comunicações com ninguém, mas já com o cano que era considerado material de guerra.

(vii) Dizem que um dia mandou dizer à mãe (não sei esta é verdade, ele nega; "lerpar" era um calão que queria dizer, para nós, morrer)... Ter-se-á referido a um colega duma aldeia vizinha, nestes termos:

− Minha mãe, o ... (nome do fulano) lerpou. Vai antes do tempo. Um dia destes ele vai chegar aí, num barco.

Na volta do correio, a mãe respondeu-lhe:

− Meu filho, vê se lerpas também, para vires mais cedo daí! 

(Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)

Fonte: in Manel Mesquita, "Os Resistentes de Nhala", ed. autor. s/l, 2005, pp. 130/132.
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)

 ______________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 26 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25308: O Spínola que eu conheci (36): A história do Mário, da CART 2478, contada pelo Manuel Mesquita, da CCAÇ 2614 ("Os Resistentes de Nhala: 1969/71", ed. autor, 2005)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Lerpar nem sequer é um termo do calão...Era muito usado por nós na Guiné... Na aceção de "morrer" e "perder" (à lerpa) já está grafado nos nossos dicion+arios, e ainda bem. O povo équem faz a língua.


lerpar
(ler·par)
Conjugar
Conjugação:regular.
Particípio:regular.

verbo transitivo
1. [Portugal, Informal] Ir embora. = FUGIR, PISGAR-SE

2. [Portugal, Informal] Morrer.

3. [Portugal, Informal] Perder.

etimologia Origem etimológica:origem obscura.

"lerpar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/lerpar.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Simplesmente delicioso, genial, este artigo do João Pedro George (1972, Moçambique), sociólogo, crítico literário, escritor, tradutor e professor universitário. Licenciado em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa. É cronista na revista Sábado e colaborou no semanário O Independente e na revista Livros como crítico literário. Autor, entre de diversos livros (...)

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/morrer/3823 [consultado em 16-04-2024]


https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/morrer/3823

Morrer
Na expressividade, única, da língua portuguesa
Por João Pedro George 24 mar. 2019
 
(Excertos, com a devida vénia...)     

Morrer é uma dificuldade impossível de contornar. (...)

Ao contrário do que acontece na maioria dos idiomas, em que a morte é uma coisa incomodativa, no calão de Camões «patinar», «quinar», «pifar» ou mesmo  «lerpar» têm aspectos positivos: do indivíduo que «finou» ou que «expirou» diz-se que «foi desta para melhor» (o que significa que morrer é livrar-se das consequências negativas de estar vivo), que se lhe «acabaram os trabalhos» (o que constitui uma expressão de encorajamento para quem arrasta por este mundo a sua preguiça) ou que foi «para a terra da verdade» (o que revela uma confiança épica no além-túmulo). 

Não há dúvida de que a língua portuguesa tem um talento especial para troçar com a ideia de falecer. Expressões como «abotoar o sobretudo de madeira» ou «vestir o pijama de madeira» são a demonstração viva de que os portugueses nada vêem no mundo mais digno de ser gozado do que a morte.

De facto, os portugueses perceberam que a condição de mortal é muito mais cómica e divertida que a de imortal. Sem morte, por exemplo, não poderíamos saborear o prazer de ir «para o andar de cima» ou «para o beleléu», que deve ser um sítio animado ou engraçado. Tal-qualmente, «tirar o passaporte para o outro mundo» metaforiza a morte como uma viagem ao estrangeiro ou um passeio emocionante de Verão, afastando-nos assim da ideia de morte a sério, de morte indubitável.

Existem muitas vias para chegar ao fim, mas só aqui, em Portugal, é que se pode «morrer de morte matada» ou de «morte macaca». Morrer de «morte macaca”»– expressão que junta a circunstância de se morrer de forma desastrada, desgraçada ou inglória com a ideia de óbito inesperado, repentino ou fulminante – é diferente de «estar com os pés para a cova» ou de «só ter uma sapatilha de fora», que significam que ainda não se «bateu a bota», mas que não vale a pena fazer planos e ter esperanças, pois o «Fernando não tarda» («não tardar», já vocês vêem, consiste na iminência de ir para a sepultura). De igual modo, quando um indivíduo diz «daqui não passo» é porque está a «bater a canastra» ou «a caçoleta», ou seja, está quase a «desviver» (que é como quem diz «a viver outra vida»).

Neste compasso, é interessante verificar que «abandonar esta vida» pode ter uma influência pedagógica, pois do indivíduo que foi «para o jardim das tabuletas» se diz que «foi estudar botânica por baixo». Dentro da mesma ordem de curiosidades (isto é, a forma como a terra interage connosco depois de morrermos), encontramos imagens que têm o mérito de provocar um movimento de piedade pelo recém-falecido, como «morder o pó», «dar de comer às minhocas» ou «pôr as tripas ao sol».

(Continua)

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/morrer/3823 [consultado em 16-04-2024]

Tabanca Grande Luís Graça disse...

https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/morrer/3823

Morrer
Na expressividade, única, da língua portuguesa
Por João Pedro George 24 mar. 2019

(Continuação)

Uma outra maneira de conceber a morte é pressupor que ela produz efeitos fertilizantes, como parece ser evidente na expressão «ir adubar a horta». Porém, quando se trata de descrever a condição de estar morto, não há nada que se assemelhe a «ir comer alfaces pela raiz». Também gosto bastante da expressão «ir para a quinta dos pés juntos», mas não resisto mesmo é à possibilidade de «ir ver a relva nascer por baixo». Variantes como «esticar o pernil», «transformar-se em presunto», «parecer um fiambre», «bater a alcatra na terra ingrata» ou «amassar barro com as costas» mostram que os portugueses sabem extrair da morte o que ela tem de singular.  

Por outro lado, dizer que o Abílio «já lá está» ou o Vasco «foi-se» faz parecer simples a morte, como um estalar dos dedos, e vem confirmar que nenhuma outra língua atingiu tamanho poder de síntese na definição exacta do que representa morrer neste «quintal do tio Lopes», vulgarmente denominado Portugal. Enquanto as outras línguas têm dificuldade em imaginar que futuro nos aguarda depois de se «dar o berro», o português tem como certo que morrer significa «tomar o chá da meia da noite» (...) ou «ir conversar com Deus».

Sabendo-se, como se sabe, que Portugal é um país de pequenos comércios (pastelarias, restaurantes), não há nada mais português que converter a morte num exercício de contabilidade geral – estar em vias de deixar de existir é o mesmo, deste ponto de vista, que «estar em últimas contas com a existência» e defunto é aquele que «já tem a conta feita» – ou num desses processos de cedência ou transferência da propriedade de uma loja, já que «trespasse» ou «hora do trespasse» são expressões sinónimas de passamento e decesso. 

Há frases que hoje são pouco utilizadas, como «estar nas vascas extremas da resistência», que denotam um manejo impecável da língua portuguesa e provam, uma vez mais, que nada consegue ser mais típico de Portugal que a língua portuguesa. Finalmente, é salutar não esquecer, também, que expressões como «o fulano de tal deu o bafo» ou «o figurão de tal deu o peido-mestre» deviam ser ditas mais vezes.

Uma das grandes fontes do humor português é a burlesca sensação de «bater a asa», de empreender «a viagem de que se não regressa». E morrer, como se vê, constitui uma manifestação essencial da especificidade e da criatividade da nossa língua.'

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/morrer/3823 [consultado em 16-04-2024]

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não sei se o Manel Pedro ainda é vivo. Oxalá que sim. Ele não me leva a mal, nem ninguém, se eu disser aqui que o trocadilho com o "lerpar" é de partir o coco a rir...

Coitada daquela pobre mãe... Ah!, os equívocos da comunicação humana...

Parabéns ao Manel Mesquita, estas pequenos factos "anedóticos" do "Fugitivo" são joias do humor de caserna... LG