segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24574: Notas de leitura (1608): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira foi bastante ousado neste seu ensaio, não lhe faltou ambição, alerta o leitor, procura pôr à sua disposição informações sobre as principais causas da escassa presença portuguesa na região da chamada Senegâmbia Meridional, disseca as incúrias que incorreram para este fracasso, e desmonta a teoria da conquista da região cuja posse efetiva não ultrapassou cerca de 60 anos. Não foge à polémica e dá mesmo as suas razões para dizer que o crioulo que se fala na Guiné é visceralmente herdeiro do crioulo cabo-verdiano, é língua veicular recente, começou a titubear na década de 1920 e confirmou-se como língua franca na década de 1960. Benjamim Pinto Bull não concordaria com esta opinião e talvez outros estudiosos da génese do crioulo guineense. Estamos perante um ensaio que remexe nas entranhas da ocupação portuguesa, das relações comerciais, mantém-se atento àqueles grupos de judeus que se fixaram à volta do rio Senegal, estuda o comércio em torno do Casamansa, do Cacheu, do estuário do Geba, do Rio Grande de Buba; mostra o esforço desenvolvido na Restauração para se conseguir fixação no território. Enquanto tudo isto se passa, os guineenses vivem fora da economia de mercado, tudo se alterará com o cultivo em larga escala da mancarra e do arroz. Obra incontornável, não se percebe como se ficou numa edição modesta, é mais do que credora de uma nova edição para quem estuda a Guiné com bases no rigor dos dados e na desmontagem de mitos e falácias.

Um abraço do
Mário



Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900) – 2:
Leitura indispensável


Mário Beja Santos

António Carreira (1905-1988) foi um administrador colonial que deixou um impressionante legado historiográfico, a Guiné foi o centro dos seus trabalhos. Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900), edição de autor, Lisboa, 1984, é uma obra de leitura obrigatória, insere uma síntese admirável sobre diferentes incursões do autor nos campos da etnografia, da economia, do tráfico negreiro e o histórico da presença portuguesa na Senegâmbia meridional. Inevitavelmente, disserta sobre a questão do tráfico negreiro, fazia parte da permuta de mercadorias e bens por escravos, chamava-se resgate. A moeda surge mais tarde, no último quartel do século XVII, ganha então importância a pataca espanhola, em prata. Carreira observa que a difusão da prata amoedada deve-se quase exclusivamente aos espanhóis, a pataca impôs-se a todas as outras moedas no mercado do setor.

E refere os itinerários da escravatura:
“As carregações de escravos eram encaminhadas (pelo menos de 1468 a 1645/47) em regra para a ilha de Santiago e dali com destino a Portugal, Cádis, Sanlúcar de Barrameda, Canárias, Índias de Castela, Antilhas, Santo Domingo, Cartagena, Nova Espanha (México), Barbados, norte do Brasil. E o autor também elenca os géneros de origem africana movimentados em exclusivo na costa, caso do algodão e respetivos panos, âmbar, anil vegetal, nozes de cola".

De 1700 a meados de 1800, observa o autor, iremos assistir à desorganização das trocas comerciais, era grande a pressão dos régulos para fazer transações fora das alfândegas, a desorganização abriu as portas à desagregação – ruínas das fortificações, insuficiência das guarnições militares, recessão comercial, ausência de navios de longo curso, falta de rendimentos para as mais elementares despesas, assistiu-se a um apagamento de Cacheu, Farim e Ziguinchor. E tudo foi agravado pelas constantes lutas intestinas entre etnias e fações de uma mesma etnia, passaram a ser endémicas.

Tenta-se uma resposta, é criada a Companhia de Grão-Pará e Maranhão, entidade que teve no encargo, em exclusivo, a governação e a exploração económica das ilhas de Cabo Verde e dos presídios da Guiné, de 1755 a janeiro de 1758 – a empresa administrou os presídios, cobrou receitas públicas e pagou despesas com a manutenção desses organismos, adquiriu géneros de produção africana e, acima de tudo, escravos. Carreira dá-nos o contexto para a panaria cabo-verdiana e depois a guineense, os chamados “panos da terra”.

Todo o seu notável ensaio sobre quatro séculos de presença portuguesa nos rios de Guiné tem um cunho profundamente didático. Veja-se um exemplo:
“Capitania e suas dependências é a designação usada para definir o governo de Cabo Verde, sob cuja jurisdição estava a parte continental conhecida por ‘Rios de Guiné’. O esquema que podemos chamar divisão territorial baseou-se nas praças, presídios, pontos ou postos e feitorias. O número de praças, de presídios e postos manteve-se quase sempre o mesmo e nos mesmos locais até 1831, quando por razões ligadas à penetração francesa no rio Casamansa, se criaram dois postos militares, o de Bolor, na margem direita do Cacheu, e o de Gonzo, na margem esquerda do Casamansa".

Um outro dado importante que Carreira põe em destaque é o fim da supremacia Mandinga e a invasão dos Fulas. Tudo começa com a invasão do Cabu. Em 1850/1851 teve lugar o recontro mais violento conhecido por batalha de Bérécolom e cerca de 1853/1854 cresceu a intervenção dos Futa-Fulas. E dá-se a batalha de Turuban em que foram derrotados e submetidos os Mandingas, assim como os outros povos das regiões periféricas. O mesmo aconteceu com os Manjacos da Costa de Baixo que se sublevaram e se independentizaram do poder central. A presença portuguesa entrara num vespeiro. Com um novo poder do Cabu, com os Fulas-Pretos a libertarem-se dos Fulas-Forros e a encaminharem-se para o Sul, deu-se o confronto entre estes Fulas e os Beafadas. Todo o território do Cabu foi invadido por uma expedição procedente do Casamansa, dirigida por Mussá Mõló que se declarou porta-bandeira da libertação dos Fulas cativos ou Fulas-Pretos do domínio de outras etnias. Eclodiu um tipo de guerra de libertação acompanhado de pilhagens e escravização.

Foi uma guerra que se prolongou até cerca de 1899 e que teve aspetos desastrosos para a presença portuguesa, impotente para intervir numa autêntica Guerra Santa do Islão, o suserano do Cabu decretara em 1874 a anexação do território de Bolola, os derrotados eram escravizados pelos grupos islamizados dominantes, Fulas-Forros e Futa-Fulas. Todos os regulados à volta viviam em estado de terror. Quando acabaram as guerras, o Islamismo vingou, quase todo o Forreá aceitou o Islão, embora o povo tenha permanecido animista. Com toda a dificuldade da falta de recursos, foi nos presídios de Geba e Buba que se reagiu recorrendo a tratados de paz. Em 1881, assinou-se em Bolama, com certo aparato, o tratado de paz com os régulos Fulas, Futa-Fulas do Forreá e do Futa-Djalon. O tratado nunca foi cumprido, representou para Portugal um processo dilatório, um compasso de espera para permitir o rearmamento.

Chegada a hora de proceder às conclusões, Carreira é muito frontal quanto a tudo o que apreciou no seu trabalho:
“Parece lícito afirmar que até à segunda metade do século XIX a evolução do processo histórico da Guiné mostra que o território viveu quase fechado a culturas estranhas, com a sua economia de subsistência, esta auxiliada um tanto pela comercialização, em modesta escala, de couros, cera, algum marfim, panos e bandas de algodão. E escravos.
O comércio das praças cingia-se à troca de mercadorias importadas por géneros de cultivo ou de realização africanos. A moeda praticamente não funcionava.

A mancarra será cultivada em apreciável escala em 1919-1920. Os couros que se exportavam não provinham do território da Guiné. Pode dizer-se que só a partir daí as populações guineenses entraram na economia de mercado. As praças e presídios serviam de pontos de apoio para fins meramente mercantis – a europeus, mestiços e cristãos da terra. A convivência dos ocupantes das praças e presídios com as populações em derredor dependia da vontade das autoridades tradicionais.

Em nossa opinião, não se criou nenhum crioulo na área conhecida por Guiné. O que se deu foi a difusão dos rios da Guiné do crioulo nado em Cabo Verde. Havia elementos de ligação (os Línguas) que falavam o proto crioulo, o Pidgin. O crioulo cabo-verdiano só se transformou com intensidade em língua franca acessível a todas as etnias nos anos 1920 e seguintes e de forma rápida nos anos de 1960”
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A historiografia possui poucas sínteses deste valor, é deplorável que este trabalho não tenha vindo a ser reeditado, atendendo ao papel incontornável que ocupa nos estudos portugueses e guineenses.

Mapa de África (1689), de Van Schagen
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24565: Notas de leitura (1607): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (1) (Mário Beja Santos)

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