terça-feira, 22 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24577: In Memoriam (483): Senhora Enfermeira Maria Manuela Gonçalves Beja dos Santos (08/03/1937-22/08/2023), irmã do nosso camarada Mário Beja Santos

IN MEMORIAM

Maria Manuela Gonçalves Beja dos Santos (08/03/1937-22/08/2023)


A mana Manuela e a sua devoção semanal na visita aos meus militares sinistrados

Mário Beja Santos

Mantivemos sempre uma relação extremosa, toda a vida, admiração com muito afeto recíproco. Adorava a sua profissão, começou numa instituição de saúde no Bairro Alto apoiando filhos de prostitutas e confessava que uma das suas maiores alegrias acontecera, muitos anos mais tarde, descia a rua do Alecrim, ouviu alguém aos gritos “enfermeira Manuela, enfermeira Manuela!”, uma mulher um tanto espaventosamente vestida atravessou a rua acompanhada de um adolescente, “Não se lembra de mim? Sou a mãe do Bruno que a senhora tratou sempre com grande carinho, deu-lhe as vacinas, fazia-lhe muitas festas, ainda hoje o Bruno fala de si”. E o Bruno ali ao lado da mãe sorria, dulcificado, nunca esquecera aquela profissional que o ajudara na infância. O seu principal mistério foi nos Serviços Clínicos da GNR, nas Janelas Verdes, fundamentalmente na pediatria. Mas não fugia a outras colaborações, como apoiar a colónia de férias da GNR, ali para os lados da Caparica, onde a fui visitar algumas vezes.

Mal chego à Guiné, e começaram as doenças e os sinistros. Entrado no Cuor, impõe-se imediatamente levar um soldado ao médico, Jolá Indjai, está prostrado e tosse constantemente. O médico adverte: tuberculizou, tem que ir para a metrópole, aqui não temos tratamento para ele. O Jolá leva algum pecúlio e uma folha com endereços. Dois meses depois chega o seu primeiro aerograma: “Alfero, veio cá no sábado a sua irmã, trouxe-me doces, deixou dinheiro e promete vir cá todos os sábados.” Anos mais tarde, os meus sobrinhos confirmavam: “Enquanto almoçávamos, a minha mãe ia preparando as coisas que ia entregar no anexo do Hospital Militar, na rua Artilharia 1, era sempre assim que começávamos o passeio de sábado.” A mana mandava cartas: “Ao princípio custou-me muito, mesmo sendo enfermeira custa ver tanto jovem mutilado e pela primeira vez na vida vi um ser humano sem braços e pernas. O Jolá partiu para o Norte, chegou o Paulo, tem o rosto todo despedaçado, perdeu um olho e tem um braço tolhido, penso que tu já sabes que vai ficar muito deficiente. Pediu-me roupa, se tu lhe podias mandar cola, perguntei-lhe se queria líquida ou em tubo, ele disse-me que é um fruto que não há cá, tu fazes a compra e mandas-me, eu levo-lhe.”

Os acidentados e doentes sucederam-se uns aos outros. Logo a seguir ao Paulo Ribeiro Semedo foi o Fodé Dahaba, brutalmente atingido por um fornilho, a lista não diminuiu, e os sábados à tarde não pararam quando regressei da Guiné. Mamadu Camará, que ingressara na 2.ª Companhia de Comandos Africana foi ferido num calcanhar numa operação em Salancaur, no Sul. Tudo se tentou, o pé engrenou, houve que o amputar. “Se foi teu soldado, volto ao anexo do Hospital Militar Principal, há que lhe dar companhia e apoio.”

Guardo uma nota curiosa que era o facto de haver uma dependência da Manutenção Militar ali bem perto onde se compravam bolachas de nome Tarata e Capitão, massas e outros géneros alimentícios a preços bem abordáveis, ia lá abastecer-me depois de visitar o Mamadu.

A mana Manuela faleceu ao início do dia de hoje, tivera um AVC em 30 de dezembro de 2016, ficou a viver num lar junto à escola em que se diplomou, a Escola de Enfermagem de S. Vicente Paulo, aqui faleceu. Todos aqueles doentes e sinistrados que ela visitou oriundos da Guiné, outros oriundos da metrópole, sofrendo de perturbações psiquiátricas ou com fraturas no calcâneo, nunca a esqueceram. Para meu pesar, a maior parte deles são hoje estrelas que nos alumiam. Mal sabia esta jovem enfermeira, a pousar no jardim da sua escola, que aqui iria fazer muito mais tarde voluntariado e aqui adormeceria para sempre.

Nos seus 75 anos houve festa, irrecusavelmente tomei a palavra para lembrar o que todos os presentes sabiam, a sua bondade para ajudar, lembrei que era uma mulher permanentemente ajoujada de sacos, recolhia e distribuía, isto em permanência. Gostava do seu petisco e era uma mulher bem divertida. Um dia estávamos a almoçar na Cooperativa Militar, na rua de S. José, entrou o antigo ministro das Finanças, Joaquim Pina Moura, com quem eu convivi num órgão constitucional, já ele estava muitíssimo doente, arrastando-se, levantei-me e fui cumprimentá-lo, e nisto a mana exclamou em voz alta: “Ai senhor doutor, como eu gostava de ver o meu irmão tão bem vestido como o senhor!” O Pina Moura fez um sorriso amarelo e marchou para a sua mesa. “Sim, Mário, devias andar vestido como estes senhores, essa mania da roupa comprada na Feira da Ladra tem que acabar.”

É muito penoso perder uma mana assim. Quando, de madrugada, a minha sobrinha me deu a saber o terrível que já prevíamos, sucederam-se as recordações, o que ela fizera pela minha gente guineense e não só, o primeiro banho à minha filha mais velha, os passeios com as sobrinhas, a permanente crítica ao meu modo de vestir, o seu telefonema às 6 da manhã em 24 de abril de 1974, a prevenir-me que havia uma revolução na rua e que partia as Janelas Verdes.

Perdi uma irmã adorada e a excelsa cuidadora de quem adoeceu e se acidentou na Guiné, um verdadeiro símbolo vivo de que a enfermeira atua em qualquer campo, na paz e na guerra.

O meu único consolo é que Deus já te recebeu no paraíso; e guardo para o meu todo o sempre o teu magnífico exemplo de solicitude e disponibilidade.

O anexo do Hospital Militar Principal convivia praticamente com a Manutenção Militar, na Rua Artilharia 1

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Nota dos editores:

Especialmente ao nosso camarada Mário Beja Santos e à sua sobrinha, deixamos o nosso pesar pela perda da sua irmã, e mãe, assim como o nosso abraço solidário.
A senhora Enfermeira Maria Manuela será, a partir de hoje, mais uma das estrelas que nos alumiam neste espaço temporal que medeia a nossa vida terrestre e a partida para a poeira cósmica.
CV

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24483: In Memoriam (482): Notícia do falecimento de um dos filhos do nosso camarada Eduardo Moutinho Santos, o Jaime, com 56 anos de idade. Cerimónias fúnebres, amanhã, dia 18 de Julho, pelas 15 horas, no Centro Funerário-Crematório da Lapa (Igreja), Rua de São Brás - Porto

10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, infelizmente, estamos todos "de perda em perda"... Vamos ficando só nós, o último reduto, na primeira linha, até um dia destes, mas continuando a cumprir o nosso dever de memória, de amor e de gratidão para com aqueles e aquelas cujos exemplos de vida e referências nos tornaram melhores, mais fortes, mais sábios, mais solidários...

Que a estrelinha da tua mana Maria Manuela continue a iluminar o teu caminho na terra. Fizeste bem em partilhar estas memórias íntimas com todos nós. Luís (e Alice).

antonio graça de abreu disse...

Um abraço de condolências e solidariedade, no falecimento de carne da nossa carne, uma irmã excelente. Que Deus a tenha em paz!

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Os meus sentidos pêsames pela perda da irmã Maria Manuela. Um abraço solidário.
Joaquim Costa

José Botelho Colaço disse...

José Colaço
É a vida por mais que pratiques o bem não há Deus que a salve: Sentidos pêsames à famíia enlutada.

Eduardo Estrela disse...

Para o camarada Mário Beja Santos o meu abraço solidário extensivo ao resto da família.
Eduardo Estrela

Hélder Valério disse...

Mário

Nestas ocasiões todas as palavras parecem excessivas, embora todos saibamos a inevitabilidade que estes desfechos têm "reservado" para cada um de nós.

Então, peço que aceites o meu abraço solidário e que os pêsames sejam extensivos *a família.

Hélder Sousa

joao parreira disse...

Os meus sentidos pêsames. Que descanse em paz e que Deus conforte os corações da família enlutada. Um abraço solidário.
João Parreira

curiosidades Genealógicas do Algarve disse...

Meu caro Beja Santos
Não estive na Guiné mas fui militar e conheci e privei com a sua irmã Maria Manuela alguns anos. Bem disposta e divertida, curiosa e carinhosa, faladora e de convicções firmes.
Convenceu-me a ir ter com ela como dador de sangue que era, e continuar as minhas doações com ela. Sempre numa festa de boa disposição, contando histórias e fazendo perguntas despudoradas. O tempo passava num ás.
Tinha uma capacidade organizadora inata e entusiasmo com que arregimentava as colegas enfermeiras e amigas em cujo grupo me integrou para não perdermos uma única récita oferecendo-se para comprar bilhetes na bilheteira do São Carlos e saber todos satisfeitos.
Lembro quando me visitou nesta ilha Terceira. Cativada pela beleza luxuriante dos cerrados, pela simpatia da população olhando e comentando tudo o que despertava a sua curiosidade nunca protestando as agruras de quem faz turismo.
Muitas recordações. Partilho algumas vividas comigo que mostram a sua multifacetada pessoa. Os meus sentidos pêsames por esta tão grande perda. Abraço sentido. João Luís Esquível

paulo santiago disse...

Mário

Sentidos pêsames,e que a tua irmã descanse em paz.
Abraço solidário

Paulo Santiago

Fernando Ribeiro disse...

A perda de uma irmã deve ser devastadora.

Um abraço de solidariedade ao Mário Beja Santos.