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domingo, 14 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27529: Manuscrito(s) (Luís Graça) (278): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte IV: O Ester, o "menino Zeca" que era mecânico de aviões na base de São Jacinto

ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor
(Ábio de Lápara era o pseudónimo literário)

Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor, José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor
 

1. Por cortesia de autor, ainda em vida, pela grande amizade que ele nutria por mim e eu por ele (tratávamo-nos por "manos"), e pela paixão que o nosso blogue dedicava à  epopeia da pesca do bacalhau (que chegou a ser alternativa à guerra colonial), transcrevemos, em tempos em três postes, o capítulo 7 (A viagem “O Mar por Tradição”, pp. 83-107), do livro "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (edição de autor, Aveiro, 2015).

O autor, ilhavense, filho e neto de marinheiros, evoca e descreve com enorme ternura e talento a rua onde nasceu e cresceu, e onde conheceu algumas das figuras humanas da sua terra, que marcaram a sua memória e o seu imaginário ...

Como já escrevemos em poste anterior, "um simples olhar de relance pelo índice do livro, de 164 pp., permitia logo adivinhar quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na Rua Suspensa dos Olhos, afinal a rua da nossa infância, a rua onde nascemos e crescemos. Falo da nossa geração, que ainda nasceu em casa, e brincou na rua. 

Nesses três postes, e com a devida autorização do autor, publicámos o relato da sua viagem de seis meses na safra do bacalhau, nas costas da Terra Nova e da Groenlândia, quando ainda adolescente, aos 17 anos, em 1954, e como estágio final do curso da Escola Profissional de Pesca, em Pedrouços, Lisboa, é chamado para embarcar e fazer "A Viagem", por antonomásia.

Foi  uma experiência que o marcou para o resto da vida, não só pela dureza das condições de vida a bordo e a capacidade de resiliência como pela descoberta e reforço da camaradagem, solidariedade e amizade entre a tripulação (marinheiros e pescadores). Tal como a a tropa e guerra, no nosso caso. (O Zé António, também como bom ilhavense, fez depois o serviço militar na Marinha, numa altura em que a Marinha não precisava de muitos marinheiros.)

A vida deu, entretanto, outras voltas e o autor não seguiu o destino dos seus antepassados... Aluno brilhante, acabou por ganhar uma bolsa de estudo, ficar em Lisboa e poder aceder à universidade, tornando-se depois  um nome de referência da arquitetura e urbanismo em Portugal. (Entraria para o curso de arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, no ano letivo de 1960/1961; fundou e geriu a empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, com sede em Lisboa;  deixou obra por todo o país, e em especial na Região Autónoma da Madeira).

Conheci-o depois do 25 de Abril. E começámos a conviver quando os nossos filhos eram pequenos.  Em 18 de fevereiro de 2023 foi à sua terra despedir-me dele.

Em sua homenagem, recomecassámos recomeçámos a publicar mais excertos do seu livro "A Rua Suspensa dos Olhos" (*)


Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte IV:   O Ester, o "menino Zeca", que era mecânico de aviões na base de São Jacinto

por Ábio de Lápara / José António Paradela
(1937-2023)


Cada um está só sobre o coração da terra
Trespassado por um raio de sol:
E de repente é noite


Salvatore Quasimodo


O ESTER

(...)  A propósito de plásticos, começo por contar hoje a estória de um homem que, para alguns dos que ainda são vivos cá pela rua, parece constituir um ícone típico da terra.

A minha casa, confinava num dos seus lados com um beco de largura apenas suficiente para deixar passar uma carroça de bois para os aidos e as agras que existiam a norte.

Ao fundo do beco, um afastamento maior entre as casas dava forma a um pequeno largo que permitia à garotada organizar algumas brincadeiras. Ali se jogava a macaca, o botão, o salta-carneiro, o uma na muna… e o pião, claro!

Quando começa a estória que vou contar, eu era muito pequeno. Devia ter uns quatro ou cinco anos.

Franzino como o Polegarzinho, a senhora Ester, dona da casa ao fundo do beco e conhecida a contragosto como Ester Manca por ter sido atingida num pé por uma cana de foguete, tinha por hábito pegar em mim quando passava à nossa porta, e colocar-me dentro do cesto de verga em que costumava transportar os frutos do seu quintal. Indescritível é o prazer que isso me dava, provocando-me arrepios!

Era amiga da minha mãe e aproveitava para dar dois dedos de conversa antes de reentrar em sua casa.

Falava do filho único que tinha e que estudava mecânica na aviação, em São Jacinto, lá para os lados da Barra. Tratava-o por Zeca.

 —  O meu menino Zeca —  dizia ela.

E, após a cavaqueira, lá seguia comigo dentro do cesto que colocava sobre a cabeça, até ao quintal onde quase sempre havia fruta para me oferecer.

Era o tempo da segunda guerra na Europa. Os biplanos de treino de cor amarela, vindos da Base Aérea, sobrevoavam constantemente os céus da vila, executando cabriolas admiráveis.

Os aviões nesse tempo davam pelo nome de aeroplanos. No meu linguajar de então, eram os "ráplanos", e era aquilo que eu queria fazer quando fosse grande!

Nos fins de semana o “menino Zeca” vinha a casa. Era a alegria da mãe, orgulhosa do seu menino que dizia ser bastante inteligente e bom aluno, mas também do pai, o senhor Gaivota, homem possante e mais reservado, cuja memória está mais esbatida no meu nevoeiro.

Para mim eram momentos de deleite. O “menino Zeca” tinha um pouco por todo o lado, molhos de revistas sobre aviões, paraquedas, bombas enormes e outros artefactos de guerra que me ia mostrando folha a folha. Explicava-me tudo aquilo tim tim por tim tim, como se eu pudesse entender, tal era a atenção que me via dedicar ao assunto.

Em manhãs de bom tempo pedia à minha mãe para me levar a passear com ele, ora pelo jardim da vila, ora pelas agras onde ia conversando sobre ventos e marés, parando de vez em quando para observar as evoluções dos biplanos de treino, voltejando sobre as nossas cabeças.

Um dia fez para mim um papagaio de papel, talvez o meu primeiro papagaio de papel, maravilha voadora!

E, como papagaio de papel sem fio não voa, foi buscar um cordão grosso que desfiou sabiamente em fios mais finos explicando-me:

—   É um cordão daqueles que viste nos paraquedas das revistas. Por dentro tem estes fios tão finos mas tão resistentes que não consegues parti-los!

Experimentei. Era de facto impossível. Pelo menos com a força que eu utilizava para partir a linha número cinquenta da máquina de costura da minha avó, quando ela me pedia que lhe enfiasse a linha na agulha por ter a vista já cansada.

—  É fio de nylon, uma invenção dos americanos  — disse-me.

Nunca mais esqueci o nome. Esta terá sido a minha primeira incursão no mundo dos plásticos!

Um dia, que não consigo localizar com precisão, por tantos os anos que já passaram, a conversa da senhora Ester com a minha mãe rodeou-se de tons velados e suspiros profundos. A partir daí a minha mãe aconselhou-me a não passear pela agra com o "menino Zeca", porque existiam muitos poços de rega desprotegidos e eu poderia cair nalgum deles.

Não entendi muito bem aquela conversa porque os poços já lá estavam antes, mas percebi que algo de estranho se passava.

Embora continuasse a encontrar-me com o “menino Zeca” e a gostar muito da sua companhia, não voltei mais à agra e fui reparando que, com o passar do tempo, ele assumia um ar cada vez mais indiferente, ensimesmado. Tinha dias melhores e outros nem tanto. Passou a estar mais tempo em casa e menos na aviação.

Passado algum tempo foi internado num hospital psiquiátrico e perdi definitivamente os seus pacientes e minuciosos ensinamentos.

Anos depois voltou ao jardim. Lembro-me então de uma hierática figura de fala-só, envergando um sobretudo azul, discursando sobre aviões, talvez a única paixão da sua vida.

Mais tarde os pais morreram e o menino Zeca continuou sozinho tratando de si.

Eu deixara Ílhavo há muito tempo e só esporadicamente o encontrava nas raras férias que por ali passava. Ali estava ele sempre de pé, falando só, no meio do jardim, junto do obelisco onde figuram os nomes dos mortos ilhavenses na Grande Guerra.

Muitos anos depois, tive de deslocar-me de Lisboa a Sesimbra por motivos profissionais já esquecidos. No regresso, no meio de uma rua estreita do antigo burgo, uma silhueta que me pareceu familiar, falava sozinha.

Parei o carro e aproximei-me. Em poucos segundos um corrupio de imagens desfilou por mim adentro, perplexo por aquele encontro fora do contexto habitual, a trezentos quilómetros da nossa vila natal.

Lá estava o “menino Zeca”, agora mais idoso, mas falando sempre de aviões. Olhou um segundo para mim e continuou o seu discurso que dispensava interlocutor.

Nó na garganta, recuei uns passos acautelando a fronteira. Vivíamos em planetas diferentes, em mundos aparentemente paralelos cujas órbitas se tinham cruzado apenas nas imagens sépia, das revistas amarelecidas dos anos quarenta. Tinham passado cinquenta anos desde que ele me fizera a minha primeira estrela, lançada aos ventos da agra, no meio dos “ráplanos”. Uma pequena eternidade!

O último familiar que tinha, para lá o levara. Restos da diáspora ilhavense ainda presentes naquela terra de pescadores. Desde aí, nunca mais ouvi falar dele. Esta foi a última imagem que me restou.

Mas há dias, no Facebook, alguém relembrava essa pacífica figura do jardim de ílhavo, ironicamente falando de aviões e de guerra: o Ester, nome pelo qual ficou conhecido o menino de sua mãe, o meu "menino Zeca".

Costa Nova, 31/10/2011

(Seleção, revisão/ fixação de texto,  título: LG)
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Nota do editor LG:

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