domingo, 4 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25134: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte II: A carestia do arroz em fins de 1973, e a intervenção do Governo, regulando o mercado e fixando o preço que passa de 5$50 para 7$00/kg

Gen de três estrelas, Bethencourt Rodrigues 

(Funchal, 1918 - Lisboa, 2011) (*)




Excerto de uma relação de artigos de víveres existentes à data de 17/6/1974 na CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1972/74), destaque para o caso do arroz, que tem dois preços: um, seguramente importado, a 14$50/Kg, e outro de produção local, a 87$00/Kg. (**)

Fonte: cortesia de José Saúde (2016). [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Uma "batata quente" que estalou nas mãos do novo Governador-geral e Com-chefe da Guiné, o Gen Bettencourt Rodrigues, foi a carestia de vida, provocada pelo aumento da generalidade dos bens essenciais para o abastecimento tanto da tropa como da população civil, na sequência do choque petrolífero e da crise económica de finais de 1973. Teve  consequências na economia, no aumento dos preços, na inflação que disparou, no aumemto das despesas  militares e da administração civil, nas acrescidas dificuldades de  transporte de tropas e material, no fornecimento de combustíveis, enfim, na logística, na alimentação e no moral da tropa, na ação psicossocial, etc. 1974 foi o "anus horribilis" de Marcello Caetano mas também o do governador-geral e com-chefe da Guiné.


Sobre a crise petrolífera de 1973, recorde-se que foi desencadeada por um protesto dos países árabes, com destaque para a Arábia Saudita, pelo apoio prestado pelos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur (de 6 a 23 de outubro de 1973), um conflito particularmente sangrento com milhares de baixas de um lado e do outro.

Como represália, os países árabes organizados na OPEP (criada em 1960 pela Arábia Saudita, Kuwait, Irão, Iraque e Venezuela) o preço do petróleo aumemntou em mais de 400%. Em março de 1974, os preços nominais tinham subido de 3 para 12 dólares por barril (a preços atuais, de 14 para 58).

O Canadá, o Japão, a Holanda, o Reino Unido e os Estados Unidos foram os principais alvos do embargo inicial que se estendeu depois a Portugal, a Rodésia e a África do Sul.  Os efeitos económicos e financeiros, a nível internacional, fizeram-se sentir de imediato. Por exemplo, em Portugal, o litro de gasolina super passa de 7,5 escudos para 11 escudos (o equivalente, a preços atuais, a 2,32 €). Esta crise, de 1973, ficou conhecida como o "primeiro choque petrolífero". Outro se seguiu em 1979. (Fonte: Wikipédia > Crise petrolífera de 1973).

No caso de Portugal, tiveram tremendas consequências económicas, financeiras e político-militares, que já não cabe aqui analisar, mas que vão desembocar, indiretamente, no golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 e no fim da guerra colonial, numa altura em que a situação militar, no terreno (incluindo na Guiné) estava longe de ser desfavorável para o exército português.(**)

Anos depois, em 1977, o gen Bettencourt Rodrigues reduz esta crise apenas ao aumento do preço de arroz (que o Governo teve de contingentar e tabelar, passando de 5$50 para 7$00/Kg)... Limita-se a re4conhecer que a medida foi "impopular"... Claro que o general nunca foi ao mato ver os preços que se praticavam nas lojas dos Fernando Rendeiro e dos Jamil Heneni,,, nem nunca deve ter falado  com os vagomestres das subunidades. Seis meses depois, em junho de 1974 havia arroz, na CCS do batalhão de Nova Lamego a 14$50 / Kg...

Vejamos então como Bettencourt Rodrigues via o "problema do arroz" no tempo em que era o "homem grande de Bissau":

(...) "Problema que afetava toda a população da Guiné, era o do abastecimento de arroz base, primeira da sua alimentação.

"Reduzida a produção local a cerca de 50% das necessidades, por aumento do consumo e diminuição da produção, como consequência da guerra e dum certo afastamento do trabalho na terra por parte da população, em especial da mais jovem, desde fins de 71,  princípios de 72, a importação passou a encontrar dificuldades crescentes,  por forças da escassez de cereais dos mercados mundiais e da elevação de preços  quer do produto,  quer dos transportes.

"Assim, em fins de 1973 houve  necessidade de contingentar a distribuição e de elevar o preço tabeladom  de 5$50 para 7$00 escudos,  suportando, embora o Governo um encargo não inferior a 2$50 / kg.

"Estas medidas não foram naturalmente recebidas com grande pela população, apesar do arroz ser vendido nos territórios vizinhos a preços muito superiores ao praticado na Guiné (Senegal, 14$00, e República da Guiné. 22 a 26$00) e de ter havido um aumento do preço de aquisição ao produtor local de cerca de 25%.

"Para atenuar uma situação de abastecimento com tendência para se agravar, dada a progressiva retração do mercado mundial, independentemente de custos, várias ações foram empreendidas, como a diversificação da dieta alimentar tradicional, para o que se recorreu à importação de milho e feijão, a recuperação de bolanhas e uma intensificação do esforço para aumento da produção, pelo apoio à cooperativização dos agricultores, distribuição de sementes de arroz seleccionadas e de adubso e apoio técnico dos Serviços Provinciais de Agricultura, além do aumento dos preços de aquisição ao produtor." (...)

Fonte: excertos de Gen. Bethencourt Rodrigues, "Guiné", in Joaquim da Luz Cunha et al. "África: a vitória traída" (Lisboa, Editorial Intervenção, 1977), pp. 111/112.

 

2. Comentário de Cherno Baldé ao poste P25130 (*):

(...) Ainda antes do 25A74, o tal arroz de abastecimento do mercado local chegou, mas por algum motivo ligado a sua qualidade, a população dos centros urbanos que já estavam dependentes do arroz importado, deram-lhe o nome de "arroz Bettencourt",  talvez em forma de protesto pela qualidade inferior relativamente ao que estavam habituados durante o consulado do gen Spínola.

Este deve ser o primeiro sinal das mudanças ocasionadas pela partida do gen Spínola e o fim não anunciado da sua política "por uma Guiné melhor".

De salientar que, na altura, a dieta das populações do interior, especialmente do Leste, Norte e Nordeste, era a base do milho e folhas de vegetais (milheto, milho Brasil, cavalo, sorgo, entre outros) e um pouco do arroz de sequeiro e o produzido nas bolanhas. 

Hoje em dia o milho quase que desapareceu da dieta alimentar dos guineenses devido as más influências dos centros urbanos iniciadas na época do gen Spínola, pela facilidade de aquisição do arroz importado com a expansão da produção e venda do caju, transformado no principal produto de exportação e, também, pela diminuição global da produção do milho, devido a influência das mudanças climáticas que afectam, sobremaneira, as regiões dos trópicos. (...).

 
3 de fevereiro de 2024 às 10:24

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Notas do editor:


(***) Vd. poste de 16 de março de  2022 > Guiné 61/74 - P23083: Recortes de imprensa (121): Debate sobre a Guiné-Bissau na Assembleia Geral da ONU em plena crise petrolífera (Diário de Lisboa, 23 de outubro de 1973)

3 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Gostava de saber os fundamentos do Gen. Betencourt Rodrigues para escrever o 4º parágrafo. Mas o que ele diz é a confissão da impossibilidade da continuação da guerra. Ora leiam com atenção...
Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Bethencourt Rodrigues, que foi um aluno brilhante no seu curso, ainda na Escola do Exército (julgo até que foi o número 1), sofria do mesmo problema de todos os homens e mulheres formatados pelo "pensamento único" ( como acontece nos estados autoritários e totalitários)...

A vantagem do Spinola, para além do "carisma" dos lideres ( que obviamente o Bettencourt não tinha), é que estava rodeado de uma equipa brilhante, gente pelo menos capaz de perceber as profundas mudanças que se estavam a operar no mundo... E em Portugal!...

Anónimo disse...

Caros amigos,

Definitivamente, o Gen. Bethencourt Rodrigues teve muitos azares na sua última missão em terras da Guiné. Primeiro, chegou quase em plena crise do petróleo (primeiro choque petrolífero), como governador teve que tomar medidas muito impopulares como o aumento do preço do arroz (arroz Bethencourt) num território com população muito pobre, para no fim cair nas malhas da revolução dos seus próprios homens.

Pior não podia acontecer a um governante e, entre a população da Guiné, sobretudo dos centros urbanos, a imagem que ficou foi de um Governador mau, fraco e incapaz, isto porque ninguém estava em medida de fazer uma leitura correcta do contexto internacional e da crise que assolava o mundo.

E como ficam os portugueses que pensavam ou pensam que o Spínola não era mais que um fanfarrão !?...

Cordialmente,

Cherno Baldé