
Queridos amigos,
Creio que recordam o que o historiador Vitorino Magalhães Godinho referiu no prefácio desta edição de 1943, o rigor histórico exige que se inventariem as fontes para o estudo da história da expansão nos séculos XIV a XVII: fontes narrativas, diplomáticas, documentos diversos, obras técnicas e fontes cartográficas. Fontes para entender o início da presença portuguesa da Senegâmbia são, portanto, a Crónica dos Feitos da Guiné, de Zurara, Ásia, década I, livros I e II, por João de Barros; quanto às fontes narrativas, são de crucial importância as Navegações de Cadamosto, o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira e esta Relação dos descobrimentos, redigida por Martinho da Boémia sobre a narrativa oral de Diogo Gomes (ou Diogo Gomes de Sintra) que fora navegador do Infante D. Henrique. É certamente posterior a 1482, observa Magalhães Godinho. Diogo Gomes fez o seu relato quando já atingira os 80 anos, devia ter a memória enfraquecida, não parecendo de confiança nas datas. E ignora-se o que Martinho da Boémia teria incluído da sua lavra ou que tinha esquecido. No entanto, esta fonte é primacial e para certos casos única.
Um abraço do
Mário
Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4
Mário Beja Santos
Recordo ao leitor que a recolha documental de Vitorino Magalhães Godinho sobre documentos da expansão portuguesa, e no caso particular da Guiné, revela-se como obra de referência. Veja-se, a título de exemplo, A Relação dos Descobrimentos da Guiné e das Ilhas, de Diogo Gomes, autor largamente versado aqui no blogue, o que se publica é uma versão traduzida do latim e que foi publicada no Boletim da Sociedade de Geografia em 1900, é um extenso documento que aqui se dará a estampa em sucessivos trechos:
“De que modo foi achada a Etiópia Austral a qual se chama Líbia inferior, além da que Ptolomeu descreveu, a qual se chamava Agizimba, agora, porém, chamada Guiné pelos descobridores portugueses até ao dia de hoje, a qual descoberta referiu Diogo Gomes, almoxarife do Paço de Sintra, a Martinho da Boémia.
Em 1416, mandou o Senhor Infante D. Henrique um cavaleiro nobre, de nome Gonçalo Velho, para além das ilhas Canárias, ao longo da beira-mar, desejando saber a causa de tão grande corrente. O qual navegou além e achou mar tranquilo e sereno junto da costa de África ou da Líbia, e chegou a um lugar que se chama agora Terra Alta. Na praia daquela terra havia apenas areia, não se achavam aí árvores nem ervas; a qual terra arenosa passa ao pé dos Montes Claros e vai até ao Monte Sinai, dividindo os homens brancos e pretos uns dos outros. Este mar arenoso, os cartagineses, agora chamados tunísios, em caravanas, levando às vezes até 700 camelos, atravessaram até ao lugar chamado Tambucatu, e a outro país, Cantor, em demanda do oiro arábico que aí se encontra em grande cópia, dos quais homens e animais muitas vezes apenas voltou a décima parte.
O que ouvido pelo Infante D. Henrique o moveu a inquirir daquelas terras pela água do mar, para ter comércio com elas e para sustentar os seus nobres. Este cavaleiro, chegando à presença do Senhor Infante lhe anunciou que achara o mar sereno, e sempre vento fresco do lado do norte, e grande cópia de pescaria em toda aquela costa. O Infante então mandou preparar um navio e dele fez capitão o vedor da sua Casa chamado Afonso Gonçalves Baldaia. E com ele mandou dois mancebos nobres com dois cavalos, os quais, como chegassem além da Terra Alta, foram enviados terra dentro, no lugar agora chamado Angra dos Cavalos.
E cavalgaram levando cada um consigo mantimentos para alguns dias; e o navio continuando a seguir aquela costa os esperava em lugar marcado. Os cavaleiros marcharam por nove dias, acharam 22 homens sarracenos, de cor avermelhada, usando azagaias e gomias, que pelejaram com estes dois. Os cavaleiros, porém, desejavam apanhar um para que deles soubessem o sítio onde estavam. Um destes nobres chama-se Heitor Homem, e o outro, Lopo de Almeida. E um dos sarracenos feriu o dito Lopo de Almeida em um pé, e Heitor Homem, furioso, matou o sarraceno.
Naquele dia, pela primeira vez, correu o sangue dos cristãos na terra da Guiné. Estes dois cavaleiros eram de 20 anos de idade. Por causa do escurecer da noite deixaram de lutar. No outro dia, porém, nenhum sarraceno apareceu.
Os dois cavaleiros, seguindo os vestígios da sua passagem na areia, voltaram para a costa chamada Rio do Ouro, onde acharam muitas redes feitas de cascas de árvores, porque naquele lugar há grande pescaria. Estes nobres, procurando o seu navio, percorreram doze léguas até encontrá-lo; os do navio já queriam voltar a Portugal, julgando que eles tivessem morrido.
Aí deixaram os cavalos, que estavam quase mortos, subiram para o navio, e vieram a Portugal, ao Senhor Infante, que ficou em extremo alegre, porque agora já sabia que a terra era habitada. Ele admirava as redes que trouxeram feitas pelos homens daquele país. Também eles contaram de como na barca entraram no rio agora chamado Rio do Ouro, e no meio deste rio acharam uma ilha de areia onde estava multidão de lobos marinhos. E à ilha tinham chamado Ilha de Lobos; e destes lobos marinhos trouxeram muitos a Portugal ao Senhor Infante, que muito se admirava.
Depois disto o Senhor Infante foi ocupado com outros negócios, durante alguns anos, nos quais não tratou de Guiné, porque o rei de Portugal, D. Duarte, seu irmão, com grande exército e armada passou a Tanja, cidade fortíssima; e na verdade nada fizeram de importância militar.
E depois de não pouco tempo o Senhor Infante mandou um navio pequeno ao Rio do Ouro, para ver se poderiam apanhar um destes habitantes locais que tinham encontrado, e mandou ao piloto ou capitão do navio que permanecesse aí na Ilha dos Lobos. E assim ficaram aí por uns três meses e mataram muitos lobos marinhos que trouxeram consigo.
Vendo que nada aproveitavam, voltaram a Portugal e de tudo deram nova ao Senhor Infante, que ficou contente porque tinham achado rasto de homens. Logo o Senhor Infante fez armar duas caravelas e mandou por capitão-mor um certo cavaleiro já idoso chamado Nuno Tristão, e na outra caravela foi por capitão António Gonçalves, muito moço, que depois teve castelo em Tomar, com outros moços da câmara do Senhor Infante, e mandou que fossem ao Rio do Ouro; de noite foram em batéis até perto da praia, e pela manhãzinha viram uns homens que vinham a um poço para tirar água. Alegres entraram em terra com as suas armas, e tomaram treze homens e mulheres; os outros, porém fugiram. Entre eles tomaram o homem velho e respeitável chamado Adavu, e alguns eram avermelhados e outros pretos. E assim contente o capitão-mor armou cavaleiro menor chamado Antão Gonçalves, que era parente do capitão da ilha da Madeira.
E voltaram a Portugal ao Senhor Infante que se alegrou com eles. E por estes teve começo o conhecimento daquele país, de como era povoado; e diziam que todos os habitantes próximos da costa marítima comiam peixe quase cru. E os que habitam na terra têm tendas ou barracas e se chamam Árabes, e vivem vida bestial, e comem carnes quase cruas e leite, porque naquela terra não há árvore alguma nem erva, e comem as carnes, quando as podem ter, aquecidas ao sol.
Ali têm muitas avestruzes e gazelas, são animais vulgarmente chamados gatos da Algalia.
E o Senhor Infante por estes soube do caminho para ir a Tambucotu, e disseram-lhe muitas falsidades. E disseram que os árabes indo de Adem para Tambucotu levam às vezes 400 a 500 cavalos, e acham no caminho um grande monte e disseram que aquela serra era povoada de gente admirável, como que os homens têm cabeça de cão e grande cauda, e são muito cabeludos, e as mulheres são lindas e de grande vergonha, etc. e muitas outras coisas que pareciam falsidade. E disseram que frequentemente 300 camelos voltavam de Tambucotu carregados de ouro.
E esta foi a primeira notícia que houve do ouro e de onde se encontraria a sua origem. Depois o Senhor Infante mandou caravelas, em uma delas foi um seu familiar chamado Gonçalo de Sintra e na outra um certo Dinis Dias, e que fossem além do lugar chamado Pedra da Galé mais longe, a ver se podiam apanhar ou achar mais habitantes. E navegando além acharam um lugar agora chamado Cabo Branco, e acharam gente naquele lugar que agora chamam Arguim. Arguim é uma ilha próxima de terra e muito povoada de árabes, que estavam avisados daquelas caravelas, de modo que muitos fugiram; muitos deles, porém, foram cativos e mortos.
E por isto o Senhor Infante depois mandou construir ali um castelo, e pôs aí gente sua cristã e um sacerdote da vila de Lagos, e este foi o primeiro que celebrou o ofício divino na Guiné. E a este castelo vinham os árabes da terra trazendo ouro puro em pó, e recebiam em troca trigo e mantas brancas e berneses e outras mercadorias que para ali mandou o Infante. E assim sempre até agora se fez o comércio, trazendo os negros o ouro da terra de Tambucotu. Este castelo foi construído no ano de 1445. E assim os sobreditos voltaram para o Infante.”
(continua)
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Notas do editor:
Vd. post de 25 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27053: Notas de leitura (1823): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3 (Mário Beja Santos)
Último post da série de 28 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27062: Notas de leitura (1824): Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (2) (Mário Beja Santos)
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