segunda-feira, 13 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24141: Notas de leitura (1563): Cadernos Militares - Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Interrogava-me em Mafra que livros os nossos instrutores utilizavam para justificar a legitimidade da guerra para onde íamos e o contexto em que estava a decorrer a descolonização e os múltiplos desastres que acarretara. Dizia-se com a maior das displicências que estávamos em África há cinco séculos e que não vieramos só para fazer negócios, aqui tínhamos arribado como um farol da civilização ocidental, para desenvolver e cristianizar. Mal desembarcados em Bissau, logo se perguntava qual o grau de civilização e cultura aqui aportada, mal líamos umas brochuras e ficava-se a saber que a administração a sério, a tentativa cultural a sério, o plano de infraestruturas gizado para toda a colónia era uma obra recente, encetada pelo Governador Sarmento Rodrigues que pusera a Guiné no mapa, a tal colónia que quase representava um lugar modestíssimo de praças e presídios. Há que reconhecer que os instrutores dos oficiais e sargentos milicianos fizeram um esforço homérico que vamos tentar convencer que não havia para ali qualquer tipo de conversa da treta.

Um abraço do
Mário



Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização

Mário Beja Santos

O Estado-Maior do Exército deu à estampa durante a guerra colonial um conjunto de Cadernos Militares, seguramente destinados a apoiar a ação dos formadores, com responsabilidades em preparar oficiais e sargentos milicianos para questões prementes envolvendo o campo ideológico. A seu tempo aqui se falou do Caderno Militar consagrado à Guiné, recorda-se que o então Tenente-Coronel Hélio Felgas publicou o livro Guiné 65, vamos ver hoje o Caderno Militar n.º 4 assinado pelo Major de Infantaria Nuno Sebastião B. S. Valdez Tomás dos Santos, publicado em 1969 e intitulado "O Problema da África Atual".

Contextualizando o que aconteceu em África depois da II Guerra Mundial, elenca as mudanças ocorridas em França, na Grã-Bretanha, na Bélgica, Itália e Espanha, potências detentoras, de protetorados, colónias e até de um império, como era o caso da Itália. Escreve o autor: 

“Nessa época, a vida dos povos africanos era tranquila e sem outras preocupações além das de ganhar o seu sustento diário. As potências coloniais asseguravam, gratuitamente, o ensino e a justiça, defendiam os africanos das suas mais terríveis doenças e impediam as guerras tribais. Os povos africanos estavam atrasados em muitas centenas de anos em relação à civilização dos europeus. Mas, de uma maneira geral, o progresso ia-se firmando, pouco a pouco, em todo o continente”.

O autor tenta explicar as dificuldades da colonização africana, logo o clima insalubre, a descoberta dos medicamentos para tratar as principais doenças tropicais é bastante recente, as biliosas e as febres palustres enfraqueciam e envelheciam precocemente os brancos. E o autor, sem pestanejar, faz uma afirmação de arromba: “Tudo o que existe construído em África é obra do homem branco”

Fica-se a pensar o que é que o senhor major sabia das minas de África do Sul e de outras riquezas extraídas exclusivamente por africanos em toda a África Austral. Mas o autor dá outra explicação para os grandes obstáculos da colonização efetiva: 

“O continente africano só aparentemente é rico. Em regra, os solos são pouco profundos e, salvo nas regiões equatoriais, ou nas de montanha, não produzem mais do que capim e árvores de pequeno porte”

Lê-se e não dá para acreditar. O autor faz questão de não ignorar um dos mais graves motivos de atraso, a educação. Mas dá-se outra explicação:

“Em consequência do desfasamento de civilizações, para os africanos menos evoluídos, como é óbvio, é difícil aprender aquilo que não tem caráter prático e aplicação imediata na sua vida. Em contrapartida, são completamente abertos a novos processos de caça, de luta e à melhor maneira de utilização dos recursos da selva. Não são grandes trabalhadores. Mas não é exato dizer que são preguiçosos e mandriões. Em meados deste século, pretos e brancos estavam a trabalhar em perfeita colaboração no aproveitamento de todos os recursos do continente africano. Quando a semente desse trabalho imenso estava a caminho de germinar surgiu a descolonização”.

E trata os ventos de mudança, atribuindo a expressão a um político inglês “de quem já hoje ninguém recorda o nome” (Harold Macmillan, então Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha), fala da origem das independências africanas, sentencia que houve abdicação dos países europeus colonizadores, uns verdadeiros desastrados, e que de um modo geral, as populações dos países independentes, estão dececionadas com o resultado. Falando especificamente da Bélgica: 

“No que era há dez anos a colónia mais rica e mais bem administrada de toda a África hoje, a autoridade do governo só se faz sentir regularmente nas cidades. Fora das aglomerações urbanas reina a lei do mais forte. Latrocínios, pilhagens, assassinatos – são meros acidentes um dia-a-dia de desordem constante”

O senhor Major Nuno Tomás dos Santos devia ser perito em estratégia e influente conhecedor em geopolítica, afirma categoricamente: 

“Grande parte dos novos países africanos não têm população suficiente para constituir uma nação. Um ou dois milhões de habitantes, ignorantes, pobres, vivendo de uma agricultura itinerante, sem nenhuma noção de como se administra e que fins procede um Estado, não são suficientes para formar um País. E como essa escassa população se divide em tribos que falam línguas diferentes, têm costumes muito diversos e, acima de tudo na vida, se odeiam entre si, é evidente que não poderão nunca constituir uma verdadeira nação”.

E o leitor destes Cadernos Militares informa os seus subordinados sobre a instabilidade política, económica e financeira destes Estados, o resultado destas independências estavam à vista: recrudesceram as lutas tribais, agravaram-se as doenças, espalhou-se o espetro da fome. O anexo do documento informa os interessados sobre a atitude dos países limítrofes em relação aos elementos subversivos.

 Veja-se o que o senhor major diz do Senegal e da República da Guiné. No Senegal, o presidente Senghor tem apoiado tanto o PAIGC como a FLING, o auxílio manifesta-se essencialmente na permissão de trânsito de elementos e material do PAIGC; procura-se evitar a permanência demorada de grupos terroristas no seu território, pois Senghor tem tido a preocupação de controlar o armamento do PAIGC em trânsito, mandando escoltar as colunas terroristas do Exército ou da Guarda Republicana, não quer desvios de armamento para a região do Casamansa. Na República da Guiné, Sékou Touré tornou o território um paraíso para os terroristas, cede-lhes bases, campos de treino, meios de transportes. Pelo seu efetivo e organização, crê-se que o PAIGC é presentemente uma força dentro da República da Guiné, com a qual terão de contar os elementos adversos ao regime de Sékou Touré.

E não há mais comentários a fazer. "A Expansão Portuguesa em Culinária", por Fernando Castelo-Branco, edição da Petrogal, 1989, é um belíssimo álbum com instantâneos alusivos ao reflexo dos Descobrimentos e da Expansão na alimentação e na culinária dos portugueses, bem como na dos povos que sofreram influência desse processo histórico. 

O historiador Fernando-Castelo Branco discreteia sobre a influência portuguesa em culinárias ultramarinas e sobre influências ultramarinas na culinária portuguesa. Vamo-nos cingir à Guiné, refere um comentário do sociólogo brasileiro Gilberto Freire que refere a cozinha luso-africana da Guiné. Estranhamente, o autor não nos dá quaisquer informações sobre esta culinária luso-africana. Nada ficamos a saber sobre esta culinária, felizmente que já se fez aqui recensão à gastronomia guineense, ao seu chabéu, à sua galinha à cafreal e à sua canja de ostra, mas apanhamos com uma citação dos Lusíadas:

“Por aqui rodeando a larga parte
De África, que ficava a Oriente:
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente;
A mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos o metal rico e luzente,
Que do curvo Gambeia as águas bebe,
As quais o largo Atlântico recebe;

As Dórcadas passámos, povoadas
Das Imãs que outro tempo ali viviam.”


A Guiné dos tempos atuais
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24135: Notas de leitura (1562): "Livro de Vozes e Sombras", de João de Melo; Publicações D. Quixote, 2020 (Mário Beja Santos)

7 comentários:

antónio graça de abreu disse...

Ainda hoje estou para entender por que é que o camarada alf. mil. Mário Beja Santos, cumpridos os seus duros dois anos de comissão militar na Guiné, decidiu "meter o chico" e continuar ao serviço do que alguns consideram o "exército colonial fascista". Será que na altura ele acreditava nos "benefícios da colonização" de tão distinto exército?

Abraço,

António Graça de Abreu

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Meter o chico" é uma expressão deselegante, que não devíamos usar num blogue de antigos combatentes, camaradas de armas...onde, de resto, toda a gente deve ter direito ao bom nome e á privacidade... As escolhas que cada um de nós fez, antes e depois da tropa e da guerra, devem ser respeitadas por todos...

Estas sãs as regras de bom senso e de bom gosto que nos regem e que nos distinguem de outros blogues e páginas da Web... onde parece que vale tudo, do insulto às ameaças físicas.

Camaradas, não ao ciberbullying!... Temos que dar o exemplo, aqui. Luís Graça

Antº Rosinha disse...

Se não fosse Beja Santos onde iriamos encontrar tantas curiosidades?

Mas o que é ou foi colonizar e descolonizar?

Se colonizar é explorar riquezas na terra dos outros, Portugal pouco explorou.

Se colonizar é cristianizar e assimilar as gentes, só se fez alguma coisa nos últimos 13 anos dos 513 que por lá andámos.

E isto graças ao esforço dos alferes e sargentos milicianos que não quiseram desertar.

Venham mais cadernos militares.

Quem não quis nem quer nada com a colonização são os índios do Brasil, que os brasileiros aprenderam que os portugueses os mataram a todos.

Ao contrário dos indios norte-americanos que ninguem acusa os ingleses da matar os indios, antes pelo contrário foram os americanos a cometer o crime.




antónio graça de abreu disse...

Oh, Luís, "meter o chico" não é uma expressão tão deselegante como possa parecer hoje. Muito boa gente "meteu o chico." No nosso blogue temos um ror de camaradas, gente boa, que meteu o chico, gostaram da guerra e por lá quiseram continuar. Alguns deles estão na génese do necessário 25 de Abril. Eu, que sou tudo menos perfeito, não tenho complexos de direita, nem de esquerda, não gosto é que me lancem poeira para os olhos.

Abraço,

António Graça de Abreu7

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha
"Ao contrário dos indios norte-americanos que ninguem acusa os ingleses da matar os indios, antes pelo contrário foram os americanos a cometer o crime."

A colonização nos EUA e a América do Norte nada tem de semelhante com a de África.
Os colonos que foram para América foram com a ideia de se fixar naquela terra "selvagem" para fugir da Europa por razões miséria económica e religiosa.
Os primeiros colonos ingleses, caçadores e comerciantes de peles não tinham ideia de "fixação", assim como os das plantações de tabaco, que até "importavam" trabalhadores lá da terra para as plantações. E ainda não havia confrontação com os índios donos das terras.
Depois, início séx. XVII, a partir da chegada do "Mayflower", é que foi a chegada em massa de famílias completas de europeus na "conquista" de terras para se fixar, havendo, então, o choque (autentica caça) com os índios por evasão das suas terras, que nunca se deixaram escravizar.
As exportações dos primeiros colonos resumiam-se a peles e tabaco. E por causa das plantações de tabaco foram comprados escravos a quem os vendia em África.
Os trabalhadores ingleses/irlandeses contratados para as plantações morriam nas viagens de barco e depois com doenças doutras paragens e ainda havia alguns que queriam ser patrões.
Com o importação/compra de escravos africanos resolveu-se o negócio, não morriam tão facilmente e seriam sempre escravos.
A colonização da África não tinha o objectivo de fixação, mas sim o da exploração das riquezas, a propagação da fé cristã e do comércio de escravos, apenas com a fixação de comerciantes. Só em finais do séc. XIX começa a haver famílias de europeus a viver nas colónias africanas.

O quase extermínio dos índios da América do Norte deveu-se ao facto de perderem a guerra com a evasão das suas terras e por não se deixar escravizar.

Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha esqueci-me, isto agora quase aos 78 tenho que escrever o quero, senão esqueço-me

Esqueci-me de escrever, que podia ter escrito o que escrevi sem falar dos índios e dos escravos africanos, apenas dos colonos do "Mayflower" e tudo o que estes fizerem para o desenvolvimento daquelas terras "selvagens".
E assim até nem assustava as criancinhas.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

"meter o chico" é nova, e variou por causa do tema.
A mais velha era "o que é que isto tem a ver com a Guiné".

Valdemar Queiroz