sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20567: Notas de leitura (1256): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (41) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Depois da tempestade veio a bonança para o BCAV 490, atividades em Bissau, o bardo descreve-as álacre, até se faziam ações policiais com a detestada PM, imagine-se. Com o caminhar para o fim desta épica, não se pode descurar o que de um lado e de outro se dizia sobre aquela luta armada que tinha largos antecedentes para os acontecimentos de 1963. Por isso entrou em cena Basil Davidson, reputado jornalista britânico que durante a II Guerra calcorreara a Jugoslávia em guerrilha e que não esconde a profunda admiração pelo pensamento e ação do líder do PAIGC.
Vários repórteres portugueses foram à Guiné em tempo de guerra, recorde-se Amândio César, Horácio Caio e mais tarde José Manuel Pintassilgo. Mas não se pode esquecer que o primeiro de todos se chamou Dutra Faria, ele irá publicar no início de 1964 um conjunto de textos que serão publicados no inequívoco jornal do regime, o "Diário da Manhã". E, como o leitor constatará, dirá coisas do arco da velha, sem tirar nem pôr, a reportagem será intitulada "Na Guiné Portuguesa, junto da Cortina-de-Ferro". Dutra Faria ainda nos irá fazer companhia, a par de outro importante admirador de Cabral, Gérard Chaliand.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (41)

Beja Santos

“Como irmãos todos se dão,
na Polícia Militar
os doentes do Batalhão
estão sempre a alinhar.

Os cozinheiros a dividir o comer
não fazem de nós excepção.
O nosso capitão
nisso tem muito prazer.
Pelo Natal e Ano Novo nos quis ver
juntos no mesmo serão.
Houve uma reunião
onde o Entretela tudo orienta,
pois a PM e o quatro noventa
como irmãos todos se dão.

Na rua somos encontrados
mas não nos podem ralhar,
porque gostamos sempre de andar
com os botões apertados.
Andamos sempre asseados
vendo as raparigas passear
elas só querem namorar
oficiais e não soldados.
Mas há algumas praças desenrascados
na Polícia Militar.

O Borba e o 1.º Fortunato
em Bissau vão continuando
e para o Dakota vão mandando
para quem está capaz de mato.
O Primeiro torna-se chato
mas é essa a sua missão.
Faz muita opinião
em os cabelos mandar cortar
e está sempre a engatar
os doentes do Batalhão.

Albino e Joaquim, condutores,
Mário e Andrade, barbeiros,
Paulo e Vidinhas, enfermeiros,
são muito trabalhadores.
Nos quartos dos superiores
temos o Gomes a labutar.
O Mendes farta-se de trabalhar
e Artur guiando todos os dias
e os inutilizados das companhias
estão sempre a alinhar.”


********************

A Comissão do BCAV 490 aproxima-se do seu termo, o bardo aqui fala de rotinas e ocorre-nos trazer para a liça documentação a servir a causa do PAIGC e mais outra, bem nacionalista, uma reportagem publicada no Diário da Manhã, alguém que aterrou em Bissalanca em janeiro de 1964, o Governador era Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa.

Basil Davidson conheceu Amílcar Cabral e apoiou-o em Londres quando o líder do PAIGC visitou a capital do Reino Unido pela primeira vez. Sentir-se-á companheiro da causa de Amílcar Cabral, não esconde a admiração que por ele tem, visita a guerrilha e publicará em 1969 “A Libertação da Guiné, aspectos de uma revolução africana”, a edição portuguesa aparecerá em 1975. Como é evidente, narra a luta armada de forma encomiástica, é uma escrita com bastantes testemunhos e elogios rasgados. E traz elementos que podem abrir luz para o contexto histórico que precede e acompanha a vivência do bardo. Davidson ouve António Bana, um combatente com responsabilidades, e dá-nos o seu testemunho por escrito: “Éramos então sete, em 1961, Chico Mendes, Osvaldo Vieira, Nino, Domingos Ramos, Constantino Teixeira. Tínhamos acabado de regressar de um ano de instrução militar na Academia Militar de Nanquim, onde fomos muito bem treinados. Cabral fez-nos um curso intenso de política, depois explicou as tarefas que cabem a cada um de nós e como nos havíamos de desempenhar”. Um outro guerrilheiro, de nome Armando Ramos diz ao jornalista britânico: “Chamamos zona libertada a uma área em que temos controlo quotidiano, em que apenas excepcionalmente temos de usar o nosso exército para neutralizar uma possível surtida portuguesa a partir de uma dessas guarnições e em que a população está mobilizada para o nosso lado tanto no sentido político como no sentido militar da palavra”. É neste quadro de considerações que Davidson definirá o PAIGC como um movimento revolucionário que se baseia numa análise marxista da realidade social: “O ponto importante é que o PAIGC é um movimento baseado na análise da realidade social na Guiné”.

Basil Davidson
Acrescente-se que toda esta laude não invoca minimamente o contraditório. Se é verdade que foi capturado em 22 de maio de 1963 o então Sargento António Lobato, é descarada mentira dizer que os guerrilheiros deitaram dois aviões abaixo, o que acontecera foi que tinham tocado nas asas, um despenhou-se e o piloto morreu, o Sargento Lobato conseguiu manobrar e aterrar numa bolanha onde foi capturado. Alguém diz ao jornalista que as tropas portuguesas tinham sido desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá, em 1 de junho de 1963, na ilha do Como, as forças portuguesas tinham sido forçadas a retirar-se e a refugiar-se em Bolama, uma outra mentira descarada. Falando mais adiante da batalha do Como, que durou mais de 70 dias, em 1964, o jornalista, sem titubear, informa que as forças portuguesas tinham sofrido pesadas baixas, fora a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Alguém diz e ele escreve, sem qualquer hesitação: “Calculamos as baixas do inimigo em 650 homens”.

O jornalista Dutra Faria, diretor da ANI – Agência de Notícias de Informação vai à Guiné e publica no Diário da Manhã entre janeiro e fevereiro de 1964 um conjunto de crónicas intituladas “Na Guiné Portuguesa, junto da ‘Cortina de Ferro’”. Descreve o território, a sua complexidade, os heróis portugueses que por ali passaram, dirá que Amílcar Cabral, em Bissau, quando estudante, era um rapazinho que ia à missa todos os Domingos. Cabral deixou-se empolgar pelo marxismo no Instituto Superior de Agronomia onde conheceu a jovem com quem viria a casar-se. E escreve: “Pela fotografia que alguém nos mostra, é uma linda rapariga de olhos claros e cabelos talvez aloirados. Branquíssima. Ambos, concluído o curso, viveram e trabalharam em Bissau, onde, afirma-nos alguém – um chefe de Serviço, pelas suas gafes monumentais e por um estúpido racismo de última hora, completou no jovem agrónomo de cor a obra iniciada em Lisboa, no Instituto, pelos seus colegas comunistas e continuada, depois, pela esposa – revolucionária exaltada”. Dutra sabia pouco da história do PAIGC, mas adianta que tinha andado em digressão com outros revolucionários numa longa viagem entre a Cortina de Ferro e a Cortina de Bambu, alguns dos seus companheiros tinham frequentado escolas de agitação política e sabotagem, os quadros da guerrilha guineense estavam longe da improvisação dos ministros e generais de Holden Roberto, “criaturas que eram, ontem ainda, alfaiates e barbeiros; quando é Moscovo que organiza o terrorismo, tudo se faz a tempo e horas, sem pressas, sem precipitações, meticulosamente”.

Assombra tal elogio mas logo a seguir percebe-se porquê, Dutra está a picar nos EUA, a política norte-americana confiara declaradamente em Holden Roberto: “O lamentável é que sejamos nós a pagar as custas da aprendizagem. Nós, portugueses, que na batalha dos dois imperialismos pela posse de África nos encontramos entre dois fogos”. Dirá noutro texto que o PAIGC estava a ter relativo sucesso junto dos Balantas, pudera, era uma etnia onde o roubo se assumia como instituição…

O que se passava na atividade do PAIGC era infiltração, “os terroristas de Amílcar Cabral nunca conseguiram desalojar os nossos soldados de qualquer ponto por estes ocupado”. Dutra escreve muito com base no diz-se e consta, como adianta: “Ao que parece, cada grupo de terroristas – e, segundo me afirmam, não haverá, em toda a Guiné, mais do que uns oito – é constituído por um número de homens variável entre os trezentos e os quinhentos”. E ainda neste clima do diz-se e do consta, adianta que os guerrilheiros faziam patrulhas de dois e três homens, que tinham oficiais e comandantes, que o camarada oficial estava encarregado das operações de guerra, que havia um encarregado da distribuição das munições e conservação das armas. Eram mulheres afetas que vinham fazer compras às povoações e que tinham por missão espiar os movimentos das Forças Armadas Portuguesas e conclui drasticamente: “Não será de admirar que em Bissau e noutros centros algumas delas expressamente se prostituam… por amor ao partido”. Logo a seguir, informa que há duas grandes florestas na Guiné, a do Cantanhez, entre os rios Cacine e Cumbijã, e na parte central a Mata do Oio. Amílcar Cabral, proclama o jornalista, alimentava-se do exagero, a Rádio Conacri emitia os seus comunicados, no final do ano de 1963 afirmava que a guerrilha tinha abatido quinze aviões militares portugueses, Cabral chegara mesmo a proclamar que antes do fim de 1963 os nacionalistas entrariam em Bissau.


Mas havia mais vida para além do PAIGC, como ele escreve na edição do “Diário da Manhã” de 31 de janeiro de 1964. Em meados do ano anterior reunira-se em Dar-es-Salam a chamada “Comissão Coordenadora dos Movimentos de Libertação da África” que decidira enviar a Conacri e a Dacar uma missão para verificar qual era o mais representativo dos vários partidos que proclamavam os seus propósitos de emancipar a Guiné e o Arquipélago de Cabo Verde. Tudo correra a favor do PAIGC, o representante da FLING enterrara-se e desacreditara-se, ao chegar a Dacar já estava demitido. Fala-se em François Mendy e Henri Labéry, Dutra não chega a nenhuma conclusão sobre a importância dos movimentos de que eles fazem parte. Num outro texto vem dizer que há muita gente em fuga da Guiné Conacri, a ditadura de Sékou Touré é verdadeiramente insuportável. E no texto seguinte vai surpreender o leitor (atenda-se que o “Diário da Manhã” era o jornal dos indefetíveis do Estado Novo): “Portugal está em guerra: em Lisboa ainda talvez seja possível a alguns esquecer essa realidade que nos foi imposta – a que não podíamos fugir sem devolver à anarquia esta África que descobrimos um dia e que pacificámos ao longo dos séculos”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 10 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20555: Notas de leitura (1255): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

O Diário da Manhã não era só o «jornal dos indefetíveis do Estado Novo». Era mesmo "o" órgão oficial do partido único de Salazar, União Nacional. De resto, não existia só um «jornal dos indefetíveis do Estado Novo» na Metrópole, existiam vários. Os mais lidos eram o Diário de Notícias, em Lisboa, e o Jornal de Notícias, no Porto, ambos abertamente apoiantes do regime. Curiosamente, estes jornais ainda existem (o Diário de Notícias só se publica em papel uma vez por semana), enquanto os jornais que se diziam da oposição democrática desapareceram (O Século, Diário de Lisboa, O Comércio do Porto, O Primeiro de Janeiro, etc.).

Valdemar Silva disse...

Fernando Ribeiro, da 'oposição democrática' não seriam assim designados, até pela razão de serem vistos/visados pela censura prévia e não poderem expressar a mais simples noticia de oposição ao regime salazarista.
Quanto muito davam as notícias menos escondidas/conhecidas, no caso do República, Noticias da Amadora ou o Jornal do Fundão, mas nada sobre a guerra no ultramar.
As notícias da tragédia das cheias de Dezembro/1967 e o grande movimento de solidariedade dos estudantes do Ensino Superior foi a muito custo que foram publicadas nos jornais.

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Valdemar Queirós, os jornais que citei é que se diziam da oposição democrática ou republicanos. Diziam-se e, pelo menos até certo ponto, eram-no. Na verdade, eles não se estendiam em encomiásticos elogios a Salazar e à sua política, como faziam o Jornal de Notícias, o Diário de Notícias, o Diário Popular e também outros que ninguém lia, como o Novidades, que era o jornal do Patriarcado de Lisboa, isto é, do cardeal Cerejeira.

Os jornais que se diziam da oposição estavam submetidos à censura, evidentemente, mas procuravam iludi-la, tentando "escrever nas entrelinhas" o que não podiam dizer às claras. Havia uns mais à direita (O Comércio do Porto, por exemplo) e outros mais à esquerda (nomeadamente o Diário de Lisboa).

Aos semanários Jornal do Fundão e Notícias da Amadora, que refere, eu acrescentarei o Comércio do Funchal, que era impresso em papel cor de rosa, e um mensário chamado Jornal do Centro, que teoricamente era da Pampilhosa, mas na prática se publicava em Coimbra. De resto, a imprensa regional era ferozmente salazarista, "mais papista que o Papa", porque estava nas mãos dos caciques locais ou dos párocos.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.Caç. 3535, B.Caç. 3880, Angola 1972-74


P.S. - Já que falei em Coimbra, lembrei-me do diário local, o Diário de Coimbra, que também se assumia como da oposição e ainda existe. O Diário de Coimbra tomou o partido dos estudantes durante a crise académica de 1969, publicando crónicas cheias de segundos sentidos para fintar a censura.