sábado, 18 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20570: Os nossos seres, saberes e lazeres (373): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Há mais de quarenta anos que por razões pessoais ou puramente afetivas desembarco em Bruxelas, aqui permaneço ou irradio para paragens limítrofes. Pertenço ao grupo restrito de portugueses que tiveram que trabalhar ali e que confessam um amor ilimitado ao burgo e ao país. É verdade que o burgo, desde que se fundou a CEE, foi sujeito a arremetidas brutais que descaraterizaram partes importantes da cidade. No entanto, ela possui o fascínio das praças e ruelas, dos opulentos museus, da enormidade de livrarias de segunda mão, de uma impressionante feira da ladra, da possibilidade de se ouvir música de Bach numa igreja barroca ao meio-dia, a preço zero. E há a gastronomia, as cervejas conventuais, os comboios de preço módico que nos põem no Mar do Norte ou em sítios maravilhosos. Décadas de convívio deixam marcas.
O que se segue é puramente um balanço do que se viveu e jamais se esquecerá, até ao findar dos dias.

Um abraço do
Mário


A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (1)

Beja Santos

Portugal bateu à porta da CEE em 1977. Com charme e simpatia, a CEE convida a Administração a conhecer o funcionamento das instituições europeias. Nos respetivos ministérios, selecionam-se funcionários por pelouros. O viandante é escolhido para visitar as ditas instituições em Bruxelas, algo como dez dias úteis. Vem antecipadamente um programa detalhado, todas as manhãs e todas as tardes há encontros com quem trabalha no política dos consumidores, as associações europeias de consumidores, as associações belgas de consumidores, o Comité Económico e Social, um conjunto de departamentos que entrelaçam missões com as dos consumidores. O dinheiro para esses dez dias úteis é parcimonioso, não era propriamente uma ajuda de custo. O viandante procura um hotel económico e encontra o Hotel George V em Anneessens, numa rua um tanto escusa, simples mas limpinho, ali dormirá muitas outras vezes, e por muitos anos. Nunca foi à Bélgica, toca de fazer perguntas, vai ao Comissariado do Turismo na Bélgica, na Rua do Alecrim, fala com a escritora Fernanda Botelho, recebe brochuras e sugestões para estar bem ocupado num fim de semana e passear-se fora das horas de expediente. Desembarca em Zaventem, por curiosidade no Brabante flamengo, apanha um comboio, pareceu-lhe um itinerário muito taciturno, gostou imenso da gare central, desenho de um notável arquiteto, Victor Horta, já anoiteceu, percorre o centro da cidade e chega à Rue T’Kint 23, a dormida está garantida, a pretexto de jantar, inicia-se a descoberta. Começou o enamoramento.

Hotel Georges V, Bruxelas

Em muitíssimas outras circunstâncias, e no mínimo com um olhar de relance, sempre com embevecimento, haverá contemplação do Hôtel de Ville que deve a sua construção a Jan van Ruysbroeck, responsável por aquela agulha de 96 metros e três andares, com estatuetas, tem lá em cima o arcanjo São Miguel, patrono de Bruxelas. Pergunta-se como é que resistiu aos bombardeamentos da Grand-Place, ao tempo de Luís XIV, enquanto os edifícios das guildas (corporações) foram severamente danificados. A fachada merece um visionamento com tempo e horas, possui um grande equilíbrio de linhas, tem imensa estatuária, há detalhes espantosos nas mísulas, as arcaturas ao nível do solo são de extrema elegância. É um gosto parar aqui e ver o que nunca se viu, sempre iludido de que o olho apanha tudo.



Todos os guias turísticos recomendam o início da viagem por Bruxelas nesta praça com dimensões elegantes, onde as guildas investiram a fundo para terem edifícios de nos deixar de boca aberta. Para além do Hôtel de Ville, ao visitante é recomendado que vá à Maison du Roi, hoje um esplêndido museu. E passear pela praça com um documento que refira o que ali ou acolá aconteceu torna o passeio ainda mais excitante: aqui estiveram Rimbaud e Verlaine, mais acolá sentou-se Karl Marx a escrever o seu Manifesto do Partido Comunista, reis, duques, arquiduques, celebridades da cultura aqui comeram ou dormiram. Há quem discuta que a praça é mais bonita em certa hora, há quem goste da coreografia noturna, mesmo com som e luz. O viandante tem a sua preferência pelos alvores da manhã, há gente apressada que vem ou vai para o trabalho, sente-se que a praça nos é mais familiar, o importante é que disponhamos de tempo para nos focar neste ou naquele edifício e ter gosto em certas panorâmicas.


A Catedral de São Miguel e Gudula é imponentíssima, das primeiras visitas sentia-se que havia respeito pelo desafogo envolvente, o dinheiro fala mais alto, hoje a catedral está atabafada por edifícios do género fachadismo, não é nada de arrepiante mas sufoca, esta imensa mole de pedra que vem do século XIII, estilo ogival de transição, um tanto francesa (não esquecer que esta Bruxelas medieval é da Borgonha), tem muita finesse nas linhas e o seu interior tem um belíssimo transepto que recapitula as fases sucessivas do chamado gótico brabanção. As duas torres não têm agulhas e têm o nome dos santos a quem a catedral é dedicada, São Miguel e Santa Gudula.


Sente-se que esta praça deve ter sido muito bela no século XIX, Place Brouckere, bifurca para duas avenidas, do seu lado direito tem um dos hotéis mais luxuosos, o Metropole, o viandante, sempre que pode, entra e pede licença para percorrer todo aquele vestíbulo um tanto pomposo. Os tempos mudaram, a praça não passa hoje de um eixo viário, mantém uma boa escala, mas é um tanto soturna, provavelmente não tem grandes admiradores e quem vem mais recentemente a Bruxelas seguramente desconhece que foi um eixo fundamental da Bruxelas do século XIX.


Aqui se deixa uma recordação desse primeiro fim de semana, alguém dissera que era visita obrigatória, os Museus Reais de Arte e de História, naquele tempo o pintor Magritte ainda vivia cá, muito mais tarde, ali ao lado, tem museu próprio, muitíssimo visitado, o que se compreende, René Magritte é o expoente máximo do surrealismo belga. Essa primeira visita foi inesquecível, houve tempo para saborear a grande escola flamenga do século XV, mas também do século XVI, conheceram-se algumas das melhores obras de Bruegel, O Velho, foi um fartote de grande pintura e escultura. O museu é detentor de uma coleção de tapeçarias impressionante, caso da Lenda de Nossa Senhora do Sablon, obra de Bernard van Orley; as aparições da Virgem a uma velhinha de Antuérpia, mas há lá outros motivos, como o rapto de uma estátua, um desembarque no porto de Bruxelas e outros. Eram quatro grandes tapeçarias, só subsistem duas, as outras duas foram cortadas em vários fragmentos. O viandante sentiu-se muito atraído por um dos detalhes desta tapeçaria em que o artista fez representar o doador, o Correio-Mor Imperial, François de Tassis, pesadão, tem na mão esquerda um pergaminho, ajoelha-se diante de Filipe, O Belo. É impressionante a penetração psicológica, o viandante nunca vira nada parecido numa tapeçaria.



Pouco antes de regressar, já com o seu programa institucional repleto, quis dar-se ao luxo de pôr o pé fora de Bruxelas, havia várias propostas sedutoras, por exemplo Antuérpia, a cerca de 50 minutos de comboio. Mas deu-lhe em escolher outro itinerário, Nivelles, recordava-se de numa aula de História de Arte se ter falado numa colegial românica, com o nome de Santa Gertrudes, que tinha sido consagrada em 1046 na presença do Imperador Henrique III. A colegial fora edificada nos fundamentos de uma basílica carolíngia. Valeu a pena vir a Nivelles contemplar este magnífico edifício, foi restaurado depois de um terrível incêndio em 1940, por aqui andou Carlos, O Temerário, o senhor da Borgonha.


As imagens que se seguem têm a ver com um castelo e uma abadia, foram bilhetes-postais adquiridos pelo viandante, disse a si próprio que se voltasse ao país, logo que se proporcionasse, os visitaria, o que aconteceu mais tarde, quando conheceu Gand e o levaram à Abadia de Grimbergen. Pois bem, está dado o mote para um grande amor facilitado por viagens de profissionais que mais tarde se travestiram em circuitos de lazer, com boas amizades, não se esconde que há por vezes muita melancolia quando se remexe programas de óperas e concertos, se vêem fotografias da Valónia ou da Flandres, datadas de há décadas em que se aprofundou a relação com o país que os eurocratas detestam, pois confinam-se a Bruxelas, quanto muito visitam Bruges ou Antuérpia ou Gand e dizem que o país é monótono… Esquecem-se de dizer que Bruxelas tem por metro quadrado mais vida cultural que qualquer outra capital europeia pois beneficia de uma multiculturalidade espantosa, é bem possível que não haja povo que não esteja representado na cidade que dá pelo nome de capital da Europa. É sobre essa magnífica relação nascida numa viagem em 1977 que mais adiante vos darei outros pormenores.



(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20548: Os nossos seres, saberes e lazeres (372): Luz inextinguível, lembranças tropicais, sob a vida inexaurível (Mário Beja Santos)

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