sábado, 11 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20548: Os nossos seres, saberes e lazeres (372): Luz inextinguível, lembranças tropicais, sob a vida inexaurível (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Em três momentos inopinados, dá-se o confronto entre o dia e a noite, não passa pela cabeça fazer apreciações sobre os movimentos de rotação e translação da Terra, o que se impõe são os nexos associativos, os acordes da imaginação. E assim nasceu esta epifania que se iniciou numa ida à Feira da Ladra, percorrendo o paredão entre Cascais e o Estoril e, por fim, na apoteose das ruas decoradas de Tomar, quando a Festa dos Tabuleiros está no auge e uma poderosa massa humana vem reverenciar a genial arte decorativa do papel recortado.
Luz inextinguível na nossa vida inexaurível, este dom maravilhoso da luz vencer, até ao fim dos tempos, a escuridão.

Um abraço do
Mário


Luz inextinguível, lembranças tropicais, sob a vida inexaurível

Beja Santos

Está na moda falar-se nos mistérios do cérebro, nas associações neuronais labirínticas, que ultrapassam o computador mais genial. Tudo começa neste amanhecer, é a Rua do Vale de Santo António, pouco passa das sete da manhã, é sábado, a Feira da Ladra está a escassos minutos, enfiando pela rua à direita. O viandante vai feliz e contente, com a sua sacola, pode ser que seja uma manhã de prodígios, se não for tanto faz, o que interessa é o farejo da caça. Nisto, olha-se para aquele céu que podia ser pintado por Turner, vislumbram-se umas manchas ígneas, e o viandante lembra-se de um amanhecer na orla do Geba, mais precisamente em Mato de Cão, uma bola de fogo irrompia na massa florestal, acima de Samba Silate, outrora a maior tabanca do Leste da Guiné. Um tanto aturdido com a lembrança tropical, puxa do telemóvel, e zás, aqui fica uma epifania para a luz da saudade, por natureza inextinguível.


O bom Deus privilegiou o viandante dando-lhe a conhecer todos os milésimos de segundo das 24 horas do dia, das quatro estações do ano, nas temperaturas moderadas em que vive neste ponto ocidental europeu e na fulgência daquela Guiné cheia de ruídos noturnos, um fim de dia a pique, sem um quase compasso de espera entre a luz e a escuridão, e os alvores sanguíneos que tornam o coberto vegetal e a torrente das águas barrentas com um sombreado de prata. Num fim de tarde, o viandante põe-se a passear entre Cascais e o Estoril, no chamado paredão, é para dizer que a sorte favorece os audazes, é um fim de dia irisado, a luz desfaz-se em joia de ourivesaria, expele contrastes, matiza-se, e o que há de mais espetacular é aquele esplendor genesíaco que apanha a orla da costa, e nas duas imagens seguintes parece que um cometa foi disparado sobre o oceano, que nasce ali ao pé.



É dia ou noite? Já se falou desse bizarro e genial pintor inglês, Turner, era homem para estar postado aqui, nesta mesma hora, e retirar da paleta todos os cromatismos do dia em despedida. É uma vista esmagadora, puxe-se pela imaginação e até se é levado a supor que há uma formidável batalha naval ao fundo, incendeiam-se naves de todos os tamanhos… Mas não, é o esplendor da criação, e retomamos o que diz o Génesis bíblico, Fiat Lux! Até amanhã, regressa na tua imensa glória!



Anoiteceu, é o sábado que precede o ponto culminante da Festa dos Tabuleiros de 2019, um dos rituais do coletivo tomarense é o adorno das ruas no casco histórico. Várias coisas acontecem ao mesmo tempo, em tropel acorrem multidões murmurantes, percorrem-se ruas, soltam-se exclamativas, esta rua está melhor que a anterior, os mirones disparam em todas as direções. É o feitiço da luz que engrandece todo este laborioso trabalho de papel recortado, esta competição sem inveja, rua a rua se procura o inolvidável, a luz esfusiante, camaleónica, pois ela tem um poder mutante de tornar as cores translúcidas, todo aquele papel recortado só lhe falta falar. Impossível imaginar a Festa dos Tabuleiros sem este espetáculo cromático, chuva de luz, não é noite nem dia, é a luz inextinguível de uma festa exigente, é um momento único de grandeza estética, repete-se de quatro em quatro anos como uma liturgia, luz de festa urbana, arte efémera, mas um dos motores de uma existência coletiva que entrelaça na cultura popular luz com cores, ruas com vida. Pois é assim a vida inexaurível!





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Nota do editor

Último poste da série de 4 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20524: Os nossos seres, saberes e lazeres (371): Do alto de Ourém, de onde se avista Sicó, Alvaiázere, Lousã e a Serra da Estrela (Mário Beja Santos)

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