segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 – P20556: Memórias de Gabú (José Saúde) (90): Noites em que os estridentes sons da velha Daimler acordava o pessoal. (José Saúde)


Guiné > Região de Gabu > Carta de Nova Lamego (Escala 1/50 mil) (1961) > Posição relativa de Nova Lamego (hoje, Gabu), e as saídas para Bafatá (a sudoeste), Pirada (a nordeste) e Piche (a leste)...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Memórias de Gabu

Noites em que os estridentes sons da velha Daimler acordava o pessoal


O vigiar noturno de secções de camaradas que garantiam a segurança 


As entradas, ou saídas, das estradas que ligavam Nova Lamego a Bafatá, a Pirada e a Piche, eram diariamente vigiadas por secções de camaradas que ao longo da noite asseguravam a segurança dos companheiros que no seu santo leito descansavam as suas almas, não obstante a certeza de que ao longo da noitada estes serem de quando em vez acordados pelos estridentes sons que a velha Daimler lançava para o infinito.

Esta missão diária, obviamente estendível à competência taciturna de um breu que escondia quase sempre incertezas, competia ao sargento-dia que utilizava amiúde essa tal obsoleta Daimler para se deslocar às frentes operacionais que entretanto haviam sido destinadas para o cumprimento do dever militar.

E se a entrada de Pirada era da competência de uma secção de milícias guineenses, o mesmo não sucedia com as vigílias das estradas de Bafatá e Piche. Estas eram da competência de uma secção de camaradas pertencentes ao grupo que normalmente eu e o Rui, ambos rangers, comandávamos.

Certo, porém, é que a maior parte da noite a vigia concentrava-se maioritariamente na estrada que tinha como rumo Bafatá. No lado oposto, ou seja, na saída para Piche, precisamente onde se localizava a Fonte da Várzea do Cabo, local de abastecimento de água ao nosso quartel, as vigilâncias eram mais espaçadas.

Mas as prevenções noturnas do sargento-dia estendiam-se, também, pelos limites da povoação. Ora era para precaver alguma incursão à pista velha de aviação por parte de um qualquer endiabrado prevaricador, local onde o pessoal das antiaéreas se instalavam, ora com uma visita surpresa ao âmago do burgo civil tendo em vista o assegurar uma maior segurança à população, .

A vigilância da estrada que se dirigia a Pirada era da competência dos milícias. Aliás, a este corpo militar pertencia o Jaló, o tal soldado dúbio, pachorrento e pedinchão de que em tempos vos falei e que após a tomada do poder territorial pelo PAIGC logo gritou bem alto “aqui d’el rei” e lá se safou a uma presumível chacina de que foram vítimas muitos dos seus anteriores camaradas.

Aconteceu que uma bela noite pedi ao condutor da Damler que deixasse a antiquada máquina de guerra longe do lugar onde a secção de milícias estava de vigia, e lá fomos a pé ao encontro dos soldados guineenses que, em princípio, estariam alerta para um qualquer movimento estranho que porventura ocorresse.

Alertei para a delicada aventura, pois o breu da madrugada escondia eventuais percalços, logo impunha-se uma aproximação cuidadosa. Passos e mais passos em frente e de reação dos milícias nada. A imprevisibilidade do silêncio dava obviamente um rol de cuidados redobrados.

O certo é que chegámos ao local e qual não foi o nosso espanto quando todo o pessoal ressonava, sonhando quiçá com a paz dos anjos e nada se apercebendo da nossa aproximação. De facto tinham as armas ao seu lado, é certo, mas estas, tal como os seus “patronos”, descansavam mas ao abandono. Tive para sacar uma e pirar-me de imediato, todavia receei que o atrevimento desse presumível disparate resvalasse para o torto. Receei e “travei” a intenção que entretanto me ia na alma.

Falando baixinho com o camarada que me acompanhou eis que num repente o Jaló acordou mas assustando-se com a nossa inesperada presença logo disse: “furrié mi disculpe”! Entretanto os outros camaradas deram uma volta ao corpo e continuaram a navegar no mundo da utopia.

Claro que não houve estrilhos, apenas alertei que a situação por mim observada jamais voltaria a acontecer, pois aquela entrada da estrada que vinha de Pirada apresentava-se perigosa. Com a voz embargada o Jaló penitenciou-se e o perdão foi aceite.

Neste contexto, o assunto "morreu" ali, mas a camarata onde o pessoal da milícia dormitava apresentava-se, naquela noite, como um sublime palco onde os “anjinhos descansavam numa profunda paz”.

O Jaló atrapalhado, acordou os camaradas e botando palavra em fula, lá fez a sua palestra aos camaradas que entrementes abriram as pestanas e depararam-se com a inesperada visita do furriel numa noite em que o luar iluminava e o imprevisto merecia um cuidado literalmente redobrado.

Coisas da guerra numa Guiné onde a imprevisibilidade do instante seguinte se apresentava sempre como uma incógnita!... 

 

Um abraço, camaradas

José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. também os postes: 

30 DE OUTUBRO DE 2019 > Guiné 61/74 – P20293: Memórias de Gabú (José Saúde) (89): Recuperando as “traquinices” do meu camarada Dias. A sua astúcia para contornar as “armadilhas” da guerra. (José Saúde) 

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Caro Zé Saúde
Não consigo perceber '...alguma incursão..pista...por parte de um qualquer endiabrado prevaricador...' se esta situação foi antes ou já depois do 25 de Abril.
No meu tempo, Quartel de Baixo 1969-70, também fazíamos estas mesmas seguranças e também havia uma Daimler do Batalhão a fazer a 'inspeção' com quem tínhamos alguns desaguisados.

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé Saúde, uma história bem lembrada... Não se brinca com armas, nem muito menos com tropa a passar pelas brasas... Havia gajos (e acho que ainda há...) com "mau despertar"...

Invejo a tua "memória fotográfica"... Bom ano, e dá notícias, com antecedência, da sessão de lançamento do teu livro, no dia 8 de fevereiro, na Casa do Alentejo. Luís