1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur
Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos
a seguinte mensagem.
Memórias de Gabu
Recuperando
as “traquinices” do meu camarada Dias
A
sua astúcia para contornar as “armadilhas” da guerra
Ouso
trazer novamente ao nosso blogue nacos de recordações das memórias de Gabu
então ali vividas, agora recuperando as “traquinices” do meu camarada Dias. O
rapaz, franzino e com um ar lunático, era uma pessoa que escondia no seu íntimo
inadiáveis princípios de um homem culto e politicamente informado.
O
antigo furriel miliciano exponha saber e a sua astúcia para contornar as
“armadilhas” da guerra eram simplesmente inigualáveis. Raramente pronunciava
palavra e a sua postura pessoal restringia-se à sublevação de meias locuções,
ou a um profundo silêncio. Tal era a revolta que lhe ia na alma, pensava-se.
Entrava
no Bar calado e saía mudo. Aliás, o mesmo acontecia nos momentos das refeições.
Nós, aparentemente mais expeditos, puxávamos por ele e… nada. Trazia, sim,
consigo uma folha A4 com pequenas frases escritas sendo o teor das mensagens
expostas redigidas em código. Por vezes lá ficávamos com a pulga no ouvido
acerca do conteúdo do recado. Aliás, a sua intenção seria alertar mentes
adormecidas sobre o contexto da guerra e tudo aquilo que a rodeava.
A
filosofia quotidiana do Dias causava-nos, de certo modo, apreensão. Falava-se,
em surdina, que o fulano, além de eventualmente “cacimbado” era um homem de
esquerda, politicamente falando. A sua ironia, ou seja, o escárnio que colocava
em cada palavra inscrita no papel que normalmente trazia debaixo do braço,
deixava antever que o camarada sabia utilizar os meios para atingir os fins.
Perito
no jogo de pingue-pongue o camarada Dias dava grandes cabazadas a um qualquer
destemido adversário que porventura lhe fizesse frente. Aí o Dias mostrava
supremacia. Era o maior. A curiosidade, porém, é que mesmo durante o jogo de
pingue-pongue, que ele adorava, a sua voz pouco ou nada se fazia ouvir.
Convidado
para as peladinhas da bola, o Dias desengonçado e com jeito zero para dar
chutos na pelota, o bom do camarada guerreava com a redondinha e por vezes
delirava a malta com uma finta ancestral que deixava o opositor completamente
de rastos. Uma finta de corpo, uma outra em que “trocava os pés e as pernas” e
a bola ia parar desconcertadamente ao adversário, resvalava, por norma, para
uma gargalhada geral.
Aliás,
a malta ria que se fartava com o desengonçado estilo do homem oriundo de
Setúbal, mas ele lá mantinha a sua vertical postura. E eram tão giras aquelas
tardes em que o futebol proporcionava momentos de lazer.
Acontecia
que o furriel miliciano Dias nem no jogo da bola dava abébias aos camaradas.
Falava pouco, não discutia uma jogada nem mesmo o resultado final, quer este
lhe fosse positivo ou negativo. Para ele estava tudo bem. O banho seguinte, e
com água barrenta vinda de um enferrujado chuveiro, limpava-lhe as ideias. O
idealismo proporcionava-lhe outros desafios. E o Dias obviamente agradecia aos
deuses da sorte.
Depois
do 25 de Abril e com o fim da guerrilha no terreno consumada, surgiram os
primeiros contactos com elementos do PAIGC. Nessa altura tivemos a oportunidade
em observar, e constatar, que o bom do nosso camarada Dias, juntamente com o
furriel miliciano enfermeiro Navas, já se tinham envolvido com visitas a bases
dos guerrilheiros da PAIGC.
Dizia-se
que tanto o Dias como o Navas partiam clandestinamente para esses contactos.
Confesso que fui leigo nessa matéria, por isso não vou afirmar convictamente se
porventura tudo o que se falava era absolutamente certo. Todavia, ficou a
certeza que o camarada Dias era, já nesse tempo, militante ou simpatizante de
um partido político que desafiava os bárbaros poderes do Estado Novo.
As
suas “bocas”, sempre oportunas e enquadradas com a situação que se vivia na
guerra colonial e onde se concentrava a chamada “carne para canhão”, teriam uma
força bem maior se elas não fossem proferidas em instalações de sargentos, ou
seja, em aposentações em que arraia miúda abundava.
Ah
grande camarada Dias, revejo-te na tua luta titânica e o quanto das tuas
“dicas” eram estilhaçadas pela força da razão. Lutavas a uma só voz e o teu
grito de revolta esfumava-se num ténue horizonte onde os “revoltosos” não
tinham cabimento. Outros tempos, outras realidades.
Setúbal,
a tua cidade, aqui tão perto da minha Beja, poderia ser palco de um reencontro
entre estes dois velhos camaradas onde as memórias de Gabu proliferam e num
abraço fraterno esmiuçarmos esses antigos tempos em que tu secretamente
espalhavas, em surdina, doutrina política.
Dias, antigo furriel miliciano
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da
CCS do BART 6523
Mini-guião de
colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
Sem comentários:
Enviar um comentário