quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Guiné 61/74 – P20293: Memórias de Gabú (José Saúde) (89): Recuperando as “traquinices” do meu camarada Dias. A sua astúcia para contornar as “armadilhas” da guerra. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 


Memórias de Gabu


Recuperando as “traquinices” do meu camarada Dias
A sua astúcia para contornar as “armadilhas” da guerra

Ouso trazer novamente ao nosso blogue nacos de recordações das memórias de Gabu então ali vividas, agora recuperando as “traquinices” do meu camarada Dias. O rapaz, franzino e com um ar lunático, era uma pessoa que escondia no seu íntimo inadiáveis princípios de um homem culto e politicamente informado.

O antigo furriel miliciano exponha saber e a sua astúcia para contornar as “armadilhas” da guerra eram simplesmente inigualáveis. Raramente pronunciava palavra e a sua postura pessoal restringia-se à sublevação de meias locuções, ou a um profundo silêncio. Tal era a revolta que lhe ia na alma, pensava-se.

Entrava no Bar calado e saía mudo. Aliás, o mesmo acontecia nos momentos das refeições. Nós, aparentemente mais expeditos, puxávamos por ele e… nada. Trazia, sim, consigo uma folha A4 com pequenas frases escritas sendo o teor das mensagens expostas redigidas em código. Por vezes lá ficávamos com a pulga no ouvido acerca do conteúdo do recado. Aliás, a sua intenção seria alertar mentes adormecidas sobre o contexto da guerra e tudo aquilo que a rodeava.

A filosofia quotidiana do Dias causava-nos, de certo modo, apreensão. Falava-se, em surdina, que o fulano, além de eventualmente “cacimbado” era um homem de esquerda, politicamente falando. A sua ironia, ou seja, o escárnio que colocava em cada palavra inscrita no papel que normalmente trazia debaixo do braço, deixava antever que o camarada sabia utilizar os meios para atingir os fins.

Perito no jogo de pingue-pongue o camarada Dias dava grandes cabazadas a um qualquer destemido adversário que porventura lhe fizesse frente. Aí o Dias mostrava supremacia. Era o maior. A curiosidade, porém, é que mesmo durante o jogo de pingue-pongue, que ele adorava, a sua voz pouco ou nada se fazia ouvir.

Convidado para as peladinhas da bola, o Dias desengonçado e com jeito zero para dar chutos na pelota, o bom do camarada guerreava com a redondinha e por vezes delirava a malta com uma finta ancestral que deixava o opositor completamente de rastos. Uma finta de corpo, uma outra em que “trocava os pés e as pernas” e a bola ia parar desconcertadamente ao adversário, resvalava, por norma, para uma gargalhada geral.

Aliás, a malta ria que se fartava com o desengonçado estilo do homem oriundo de Setúbal, mas ele lá mantinha a sua vertical postura. E eram tão giras aquelas tardes em que o futebol proporcionava momentos de lazer.

Acontecia que o furriel miliciano Dias nem no jogo da bola dava abébias aos camaradas. Falava pouco, não discutia uma jogada nem mesmo o resultado final, quer este lhe fosse positivo ou negativo. Para ele estava tudo bem. O banho seguinte, e com água barrenta vinda de um enferrujado chuveiro, limpava-lhe as ideias. O idealismo proporcionava-lhe outros desafios. E o Dias obviamente agradecia aos deuses da sorte.

Depois do 25 de Abril e com o fim da guerrilha no terreno consumada, surgiram os primeiros contactos com elementos do PAIGC. Nessa altura tivemos a oportunidade em observar, e constatar, que o bom do nosso camarada Dias, juntamente com o furriel miliciano enfermeiro Navas, já se tinham envolvido com visitas a bases dos guerrilheiros da PAIGC.

Dizia-se que tanto o Dias como o Navas partiam clandestinamente para esses contactos. Confesso que fui leigo nessa matéria, por isso não vou afirmar convictamente se porventura tudo o que se falava era absolutamente certo. Todavia, ficou a certeza que o camarada Dias era, já nesse tempo, militante ou simpatizante de um partido político que desafiava os bárbaros poderes do Estado Novo.

As suas “bocas”, sempre oportunas e enquadradas com a situação que se vivia na guerra colonial e onde se concentrava a chamada “carne para canhão”, teriam uma força bem maior se elas não fossem proferidas em instalações de sargentos, ou seja, em aposentações em que arraia miúda abundava.

Ah grande camarada Dias, revejo-te na tua luta titânica e o quanto das tuas “dicas” eram estilhaçadas pela força da razão. Lutavas a uma só voz e o teu grito de revolta esfumava-se num ténue horizonte onde os “revoltosos” não tinham cabimento. Outros tempos, outras realidades. 

Setúbal, a tua cidade, aqui tão perto da minha Beja, poderia ser palco de um reencontro entre estes dois velhos camaradas onde as memórias de Gabu proliferam e num abraço fraterno esmiuçarmos esses antigos tempos em que tu secretamente espalhavas, em surdina, doutrina política.  


 Dias, antigo furriel miliciano 

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

21 DE OUTUBRO DE 2019 > Guiné 61/74 – P20265: Memórias de Gabú (José Saúde) (88): Manel Pereira, um amigo. (José Saúde)

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