sábado, 2 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20301: Os nossos seres, saberes e lazeres (362): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Ter vivido quase seis meses em Ponta Delgada, um lugar onde se criaram raízes, aonde se regressa sempre com o coração aos saltos, tal o peso das lembranças, justificava plenamente que lhe fosse consagrada um dia para rever pessoas e lugares, a lembrança guardou dados essenciais, muito boa gente acolheu o viandante, lhe deu guarida, lhe abriu igualmente outras portas.
É uma cidade pronta para surpresas, súbito se encontra o antigo professor de Cultura Portuguesa, António Machado Pires, há sempre uma lembrança, o velho professor não pára de escrever, ou sobe-se ao Instituto Cultural de Ponta Delgada onde viveu Armando Cortes Rodrigues, que ali amesendou o viandante e lhe deu livros, particularmente a correspondência que com ele trocou Fernando Pessoa.
Foi um dia abençoado, logo a seguir parte-se para um lugar mágico, o Vale das Furnas.

Um abraço do
Mário


A minha ilha é um cofre de Atlântidas (4)

Beja Santos

O viandante confessa que saiu a custo do Museu Carlos Machado, ainda vão aqui imagens deste imenso adeus que mete erupção vulcânica, um belíssimo pormenor do seu exterior, um Cristo crucificado na Cruz de Santo André, ele não conhece uma imagem com este vigor e carga mística que se aparente e há ali um resto de um lintel do passado que fala do tardo-gótico, de que São Miguel beneficiou, não em grandeza nem largueza, quem aqui chegava demorava muito tempo aos benefícios temporais, foi a ilha a desmatar desde a aurora do povoamento, a própria Igreja precisou de bastante tempo para se consolidar, a todos os títulos podemos conhecer um pouco desta epopeia lendo uma obra ímpar intitulada “O Livro das Saudades da Terra”, de Gaspar Frutuoso, o que para o caso importa é o volume IV reportado a São Miguel.





Pergunto ao leitor se esta fachada barroca da Igreja do Colégio dos Jesuítas, onde pregou o Padre António Vieira, não é de estarrecer, pelo equilíbrio das proporções, pelo ajustamento cromático e pela pomposidade contida, quando aqui o viandante chegou, há mais de cinquenta anos, não era visitável, alguém mesmo falou em obras de Santa Engrácia, enfim, hoje dá gosto por aqui deambular no núcleo da Arte Sacra, esplendoroso e até pensar o que teria sido o interior deste templo se tivesse as obras acabadas, o que nunca chegou a acontecer. Se me perguntarem, respondo logo: é visita obrigatória, por dentro e por fora.


Terá sido num dos últimos dias de fevereiro de 1968 que o viandante entrou em casa do poeta do Orpheu Armando Cortes Rodrigues, vinha como convidado e para amesendar, foi recebido por uma voz estentórea, alguém do primeiro andar o saudava, vestido como um gaúcho, o viandante sempre deu voltas à cabeça se aquela indumentária não metia até guizos, algo chocalhava em fatiota tão bizarra. Mas o importante foi o acolhimento, era poeta perguntador e quando a conversa deslizou para o primado da etnografia, meu Deus!, que entusiasmo a falar dos romeiros, do interior das casas agrícolas, e também da história, a explicação do ciclo da laranja, as famílias dos donatários. De uma humildade só própria dos grandes talentos, ao falar de Vitorino Nemésio todo tremia, conhecia praticamente de cor essa obra-prima da literatura portuguesa da primeira metade do século XX, “Mau tempo no canal”. Pois o viandante bateu à porta desta casa sita na Rua do Frias, veio cumprimentar o diretor da instituição cultural, que o recebeu prazenteiro. E fotografou desenhos de Armando Cortes Rodrigues, o tal, que à saída do jantar lhe deu o volume da correspondência que Fernando Pessoa com ele trocara.



O viandante, por uma questão de pudor, não vai contar a conversa havida com os amigos com quem se encontrou, mas para lá chegar passou pela Igreja-Matriz, uma preciosidade do manuelino, como aqui se pode ver, e com algumas novidades, tem exuberância sem cordames, o que se dá ao leitor é a porta principal e a porta lateral da direita do templo com um pormenor retirado da fachada principal. O dia nascera claro na cidade, beneficiou-se da luz que releva o génio dos canteiros que lavraram esta pedra, espera-se que até à eternidade ela perdure, para bem do que há de melhor do estilo manuelino.




O infatigável amigo do viandante, Mário Reis, a pretexto de umas obras que iria ver no Vale das Furnas, deu boleia, foi-se de Ponta Delgada à Ribeira Grande, daqui seguiu-se para as Caldeiras com o mesmo nome, o leitor que procure adivinhar como esta água é fervente, turbilhonante, expelindo vapores de enxofre. É uma visão que a uns intimida, e com uma certa razão, é sempre um sinal que o interior da terra se pode revolver num certo instante e gerar abismos, desgraças, as consequências mais imprevisíveis. Por ora, fique-se com estes tons turquesa de algo de medonho que, na justa medida desta imagem, até pode ser tomado, vamos lá, como uma piscina de água férrea.


O viandante regressa ao Vale das Furnas, vem munido de literatura apropriada, neste caso, “Uma Viagem ao Vale das Furnas em Junho de 1840”, por Bernardino José de Sena Freitas, Fidalgo da Casa Real, Comendador da Ordem de Cristo, que assim começa: “O pitoresco e romântico Vale das Furnas, pequena aldeia assentada no interior da ilha de São Miguel, cercada de altíssimas rochas no circuito talvez de três léguas, demora ao nordeste da cidade de Ponta Delgada, e contém 334 fogos e 1320 habitantes”. Pode ser que a distância seja esta mas muito mudou quanto a fogos e habitantes, como adiante falaremos. E fica-se com a imagem de um hotel onde houve o bom gosto de ao fazer a sua expansão manter as linhas Arte-Deco, da face primitiva, em meados da década de 1930, e convém nunca perder de vista que aqui dentro está um dos mais lindos parques portugueses, com espécies de todo o mundo.


(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20277: Os nossos seres, saberes e lazeres (361): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (3) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: