terça-feira, 29 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20285: (Ex)citações (361): Do meu amigo Zé Saúde, com quem estive estes anos todos sem falar da guerra, até ao segredo dos 'Asas Brancas' de Contuboel (Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547, 1972-74)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece, que foi mais tarde integrar a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...

Contuboel chegou a funcionar como importante centro de instrução militar (CIM=, no início da política da africanização do Exército Português, no 1º semestre de 1969. Em data que não posso precisar, esse centro acabou por ser transferido para a ilha de Bolama, aparentemente mais segura. Em Junho de 1969, Contuboel era descrita como um "oásis de paz" (*) N e nela dava-se formação às futuras CCAÇ 11 e 12 e a um grupo de combate da futura CCAÇ 14.


Foto: © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Manuel Pereira
1. Comentários, ao poste P20267, do Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547 / BCAÇ 3884, 1972/74) (**)


(i) Na verdade Contuboel foi sempre (?) um Centro de Instrução de Milícias. Pelo menos com a minha Companhia (CCaç 3547) e com outras duas - tenho a certeza porque tenho amigos dessas Unidades - que a antecederam;

(ii) No período destas três (3) comissões não houve registos de qualquer "incidente";

(iii) Razoes, não sei. Sei todavia, que a "acção psicológica" mantida pela minha Companhia junto das populações nativas eram a "nossa" primeira prioridade, tendo por cabeça o Cmd Companhia, o Cap Mil Carlos Rabaçal Martins;

(iv) Poderei acrescentar ao ponto anterior e, até porque já lá vão 45 anos sobre o retorno, algumas inconfidências que podereis confirmar - já foi escrito e ainda estamos todos vivos - que mantivemos contacto com "intermediários" do PAIGC, fizemos permutas de bens essenciais à nossa sobrevivência e por último (?) e depois de muitas diligências, uma "reunião", bem no interior da mata e DESARMADOS (eu, na altura como Cmd do Destacamento de Sonaco e o Cmd Comp Cap Martins), condição que nos foi imposta pelo "IN" e por nós aceite, com um alto dirigente e comitiva do PAIGC.

Eles bem armados, à excepção do alto dirigente e comitiva do PAIGC. Desse encontro, enre outras coisas, resultou um "pacto de não agressão". Este encontro teve eco na Rádio "Maria Turra", pois fomos apelidados dos "Asas Brancas" (símbolo da paz) de Contuboel;

(v) Esta reunião mostrou-se profícua, quer na "quadricula" afecta à Companhia e Destacamento (Contuboel e Sonaco), como também nas nossas permanências em reforço de outras Unidades e muito em especial na "Reocupação"" - tinha sido abandonado pelo Batalhão de Galomaro - do Aquartelamento do Dulombo, ali nas margens do Rio Corubal, por mim e pelo "Pelotão" que tive a honra de comandar e que resultou em "nenhum" ataque por parte do "IN";

(vi) As Fotografias são viagens diferentes no tempo e reportam-se à minha "missão" enquanto delegado de batalhão. Sim, porque para além de "operacional",  também tive, entre outras, funções de ambito administrativo que me proporcionou, correndo perigos evidentes, "viajar . por mar, rio e pelo ar. Nesta última missão permitiu-me conhecer quase "toda (?)" a Guiné, desde Bissau, Bafatá, Xime, Porto Gole, Farim, Mansoa, Bambadinca, Nova Lamego, Aldeia Formosa e Cacine;

(vii) As fotografias são a bordo dos barcos que faziam o "reabastecimento" para os Batalhões / Companhias Independentes, no caso, presumo serem todas no Rio Geba;

(viii) Para melhor compreensão vejam, aqui no "Blogue" algumas postagens minhas, nomeadamente o poste P3264.

Zé Saúde e Nanel Pereira, em Monte Real
(ix) Respondendo ao Luís Graça...

 È verdade nunca falei com o Zé Saúde (José Saúde) sobre a Guiné. Em momento algum, desde dia em que nos conhecemos, nunca o assunto “tropa” foi aflorado.

As minhas, nossas preocupações era gozar a vida. Éramos novos, vindos da guerra (mas não abordada) e precisamos de “viver”. Foram no meu caso 28 meses de Guiné (só passei à disponibilidade em Agosto) e mais um mês “adido” ao RAL1 (RALIS), já que tinha por missão – todos já estavam em casa desde de Junho – levantar do “Niassa”, ancorado na Rocha Conde d’Óbidos, as bagagens (caixotes) da malta do Batalhão, trazer para o RAL1, organizar (agrupar) por regiões/distrito/concelho e transportá-los até à estação da CP de Sacavém, fazer o seu carregamento nos vagões, selar e dar ordem de marcha para as estações mais próximas dos destinatários.

 Obviamente, a minha missão era meramente administrativa. A minha farda velhinha era respeitada quase como se de um “herói” se tratasse. Voltando ao Zé Saúde.

Como dizia, o tempo disponível era para fazer a desforra de tantas privações. Na altura (75), as movimentações políticas ocupavam-me grande parte do tempo. Na faculdade eram as RGE e as RGA. No trabalho as Comissões de Trabalhadores e actividade sindical. No exterior, havia que apoiar o “povo em luta”. Fazer algo pelas cooperativas. Ajudando de borla, inclusive pagando do meu bolso o transporte para ir apanhar azeitona e outros produtos. Havia que dar corpo e voz à ADFA e no aspecto mais pessoal – aqui entra o Zé – o querer conquistar todas as mulheres bonitas. Não havia tempo, queríamos, talvez, esquecer. As “boîtes” e bailinhos em casas particulares completavam-nos. Foi assim que numa noite “bem bebida” quem sofreu as consequências foi o carter do “Morris Mini”,  do Zé Saúde.

È verdade! Só em Monte Real, falamos da Guiné. Fiquei curioso quando vi o nome dele na lista para o “Encontro [Nacional da Tabanca Grande" c e por isso não poderia deixar de estar presente. Foi muito bom!

A minha afirmação de Contuboel nunca ter sido atacada ou flagelada, tem duas fontes. A primeira, a minha (Companhia), porque durante toda a “comissão” (Março de 1972 a Junho de 1974) passamos incólumes. A segunda porque tenho amigos ( 1968/70 e 1970/72 ), um até sogro do meu filho, de seu nome Plácido Lamas, esteve em Contuboel – foi ele e mais alguns que construiu a “moradia” no exterior do arame farpado, quase colada ao parque da “ferrugem”, entrada lado direito da “porta de armas”.

Relativamente ao “centro de instrução de milícias – no meu tempo – foi um facto. Antes de nós, a informação chegou-me pelos os amigos referidos acima. Talvez não percebido a diferença entre Tropas nativas e Milícias.

Nota: Gostaria de incluir algumas fotografias. Como se faz?


Como tenho, ainda, boa memória, estou ao dispor para qualquer dúvida que possa suscitar.
Um Abraço a todos.

Manuel Oliveira Pereira

Fur Mil do BCAÇ 3884 / CCAÇ 3547,
Guiné, março de 72 / julho de 1974. (***)

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Notas do editor


(...) O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola. (...)

(**) Vd. poste de 22 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20267: Controvérsias (140): é verdade que Contuboel, na zona leste, região de Bafatá, nunca foi atacado ou flagelado ? ( Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547 / BCAÇ 3884, 1972/74)

(***) Último poste da série > 9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20219: (Ex)citações (360): O sucesso do posto de controlo sanitário de Nhacra, ao tempo em que por lá passavam as "trabalhadoras do sexo" de Bissau, em missão patriótica... (José Ferreira da Silva, autor do bestseller "Memórias boas da minha guerra", 3 volumes, Chiado Books, 2016-2018)

4 comentários:

José Saúde disse...

Manel, meu grande amigo e camarada de armas!

É verdade que esses velhos tempos fazem, hoje, parte de um baú que contém imensas recordações. Certo foi que ao longo da nossa vivência quotidiana jamais abordámos a temática da guerra. A Guiné, para nós, fora apenas um tabu. Talvez que as nossas almas estivessem cheias de fúteis recordações.

O nosso foco, como jovens em plena idade de novas conquistas, passava por "curtir" o momento e sempre acompanhado por esbeltas raparigas. Nesses tempos áureos, pós Revolução de Abril, vivemos de perto as emoções de uma Lisboa que soltava as suas "asas ao vento".

Lembro o dia 11 de novembro de 1975, dia de São Martinho, em que as nossas gargantas se regalaram com água pé e vinho novo. Fomos parar à tua casa em Odivelas e eu, já entradote com a bebida ingerida, recusei ficar lá a dormir e resolvi, espontaneamente, regressar a Algés.

Depois lá veio o acidente com o meu Morris numa Avenida de Odivelas e onde resultou a quebra do cárter do meu carro. Foi uma noite horrível. Seguiu-se o reboque e a gentileza dos Bombeiros Voluntários de Odivelas que me facultaram um espaço onde o meu Mini pernoitou. Eu, afinal, acabei por dormir no teu apartamento.

A Guiné e a tua presença em Madina Mandinga, local onde estava instalada uma Companhia do meu Batalhão, ficava, apenas e tão só, nas memórias de antigos combatentes que cruzaram destinos idênticos na guerra guineense.

Abraço,

Zé Saúde

Valdemar Silva disse...

Quem está fotografado, junto da placa rodoviária em Contuboel, é o 'Cimba', julgo que se chamava Samba Baldé e era mais uns dos putos que se apresentaram no CIM para serem soldados.
Ele também aparece numa fotografia a meu lado esq. P12773 e noutra de António Mateus P10826, foto nº. 1, 3º. à esq.
Por incrível que pareça, estas fotografias foram tiradas num acampamento da 'semana de campo', na região de Contuboel, como estivesse-mos na Carregueira ou Santa Margarida, na metrópole, inclusive foram apenas distribuídas balas de instruçao.
Realmente, na região de Contuboel nao havia guerra.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Manel, vocês era, segundo a Maria Turra, as "Asas Brancas" ou as "Almas Brancas" ?

Leio na vossa página do Facebook:

https://www.facebook.com/companhiadecacadores3547/

(...) O Batalhão partiu para a Guiné no fim de Março de 72. Aí chegado, foi aquartelado no Cumeré para fazer o “ IAO” que durou cerca de um mês. Terminada a formação as unidades partiram para os “seus perímetros de acção” , o Leste da Guiné, a saber: CCS e Comando Operacional do BCaç3884 em Bafatá; CCaç 3547 em Contuboel; CCaç3548 em Geba e CCaç 3549 em Fajonquito.

A CCaç 3547, logo rebatisada pelos seus membros de “Os Répteis de Contuboel” e pela rádio do PAIGC – Partido Africano para Independência da Guné e Cabo Verde, como “AS ALMAS BRANCAS".

Para além da sua sede – Contuboel, tinha na vila de Sonaco um “Destacamento” , composto por um Grupo de Combate e outro de Milícias.

Por força (?) da sua boa localização (sem guerra) a Companhia ficou, logo no início e, até ao fim da comissão, mutilada nos seus efectivos, por ausência quase permanente, de dois dos seus "grupos de combate", em destacamento/reforço, de outras Companhias, nomeadamente Bafatá, Bambadinca Tabanca, Sare Bacar, Nova Lamego, Medina Mandinga, Galomaro e Dulombi.

Cedeu igualmente alguns dos seus graduados para as CCaç. Africanas e Delegado/Agente de ligação para representação de todo o Batalhão junto das Direcções de Serviços e Quartel Mestre General providenciar toda a logística necessária à actividade do Batalhão.

A Companhia, na sua sede, funcionou como Centro de Instrução de Milícias (forças paramilitares), cujos formandos tinham por missão dar apoio e defesa local às populações nativas.

Ao longo da sua Missão e, apesar de teoricamente a área de actuação ser um paraíso, a Companhia, não conseguiu sair incólume aos efeitos da Guerra. Logo no início, num estúpido acidente de viação um dos seus “homens” ficou gravemente ferido, que resultou numa paraplegia. Outras mazelas surgiram mas sem consequências de maior, porém, se a "missão" começou mal, terminou ainda da pior maneira; Mesmo na recta final e a escassos dias de completarmos 24 meses, uma traiçoeira mina, “rouba”, na plenitude da juventude, a vida, a um dos nossos melhores entre nós.

A Companhia regressa em fins de Junho de 1974 e termina a sua “missão”. A desmobilização vem a acontecer no dia 30 de Julho de 1974. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Manel, o segredo estava bem "guardado"... Ou se calhar era apenas partilhado pelos teus homens, do teu pelotão, e pelo teu ex-capitão, Martins, outro dos protagonistas desta aventura que, felizmente vocês, não acabou mal como a dos "3 majores no chão manjaco"...

Para que o relato vossa história tenha "mais força", diz-me por favor em que altura (mais ou menos) se realizou esre insólito "encontro de cavalheiros" entre tu e o teu capitão e o os homens do PAIGC ? Se souberes datas mais precisas, melhor... Foi antes do 25 de Abril, suponho, o que torna a "aventura" mais inédita e arrojada...E foi feita à revelia da hierarquia militar... O papel do "patriarca" libanês de Sonaco terá sido crucial... Era simpatisante ou mesmo militante do PAIGC ? Como é que ele se chamava ? Ficou por Contuboel depois da independência ? E o homem das vacas, de Sonaco,o comerciante, dono também de um café,o Orlando Gomes, jogava com um "pau de dois bicos", como muitos comerciantes da Guiné (. pelo menos era essa nossa suspeição...) ?

E já agora o local, outro dado importante...Onde terá sido exatamente ? És capaz de lembrar, através do mapa de Sonaco, considerando o tempo que levou a chegar ao local, de Unimo e depois a pé ?

Escreves tu:

[Depois de Sonaco...] "A dado momento o Capitão dá ordem de paragem – estamos no interior de uma mata densa, no triângulo Sonaco/Contuboel/Nova Lamego – manda a secção fazer segurança em círculo e para estar atenta"...

O teu ex-capitão Martins já alguma vez partilhou este segredo, oralmente ou por escrito, com os seus antigos subordinados, nos convívios anuais, ou nas redes sociais ?

Estou-te grato pela revelação feita. Não me compete dizer se agiste bem ou mal, tu ou o teu capitão... Segundo as nossas regras editoriais, não posso nem devo fazer um "juizo de valor"...

Um alfabravo,Luís