Excertos do Diário de um tuga (Luís Graça)
Contuboel. 20/6/69
Algures
No lugar mais frio
Da memória
(Carlos de Oliveira: Micropaisagens, 1968).
... Ou no lugar mais desconfortável da terra!
A paisagem barroca dos trópicos não é menos desoladora do que as ilhas caligráficas do poeta: sob a tela luxuriante da natureza, os homens recortam-se, quais sombras chinesas, numa fundo aridamente linear. Eu diria: pateticamente, de pé, no limiar da História.
Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros.
O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…
Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI).
E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…
O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias!
Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros...
Luís Graça
© Luís Graça (2005)
Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:
Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Monteiro (CART 2479 / CART 11).
Os quadros metropolitanos (menos de 60) da futura CCAÇ 12 tinham chegado a Contuboel a 2 de Junho de 1969 para dar a instrução de especialidade aos seus soldados africanos (menos de 100) (1). A companhia do Monteiro (CART 2479, futura CART 11) já lhes tinha dado a instrução básica, de 12 a 24 de Maio.
Estive em Contuboel até 18 de Julho. Tive tempo para ler, escrever, passear, ir à pontas [hortas] dos caboverdianos comprar bananas e abacaxis, escrever e falar de coisas de que gostava: a poesia, a literatura, a filosofia, a política... Tinha muitas afinidades com o Monteiro e com ele era capaz de ter uma conversa franca sobre a guerra colonial, a política, etc.
Nesse dia do passeio de piroga, em Junho de 1969 (não posso precisar o dia da semana, já que na Guiné vivíamos sem calendário, sem distinção de dias úteis da semana, sábados, domingos ou feriados), apanhei o meu primeiro grande susto por aquelas paragens africanas.
O Monteiro quis refrescar-se e deu um mergulho no Rio Geba, junto à represa, debaixo da ponte de madeira. De repente, apercebi-me que ele nunca mais aparecia à superfície... Quase gelei de terror!... Passou-se uma eternidade até que vi um pedaço de cabeça e uns olhos esbugalhados a emergir à superfície...
Depois de Contuboel, o Monteiro foi para o Gabu (Nova Lamego), segundo creio, e perdi-lhe completamente o rasto.
De facto, nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, segundo creio, é o co-autor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1998. 307 pp). Foi aí que reconheci a sua fotografia e alguns dados biográficos. Ele esteve na Guiné entre 1968 e 1970, se não me engano. E julgo que vive no Norte, onde foi professor do ensino secundário e esteve ligado ao movimento dos rádios livres. Gostaria, muito sinceramente, de o voltar a ver e abraçar.
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(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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