Texto de Marques Lopes (ex-Alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968). Enviado, em 30 de Junho de 2005, na véspera da sua partida para banhos, para a Nazaré:
Caros amigos, amanhã vou partir: de 1 a 15 de Julho vou estar pela Nazaré. Se algum de vós por lá passar ligue para o meu telemóvel (938013725). Ou, então, vá até à minha morança, sita na Rua 25 de Abril (sempre!!), n.º 18, no Sítio da Nazaré. Terei imenso gosto em comer umas ameijoas convosco no Manel ao pé do elevador... ou outros bons manjares que por lá há..
(...) Mas, antes de me ir embora, não vos quero deixar sem mais uma recordação minha da Guiné.
Já em Março de 1968, não me recordo em que dia, estava eu à espera de embarque para o regresso, conheci lá um camarada, o alferes Almeida Santos (não, não é o Presidente do PS!), que estivera numa companhia do sul, também não me recordo qual nem o sítio dela.
Andávamos em Bissau dentro da normalidade, isto é, bebendo muita cerveja e whisky e comendo muito camarão. Nesse tal dia, o Almeida Santos desafiou-me para fazermos uma viagem para fora de Bissau. Ele requisitou um jipe ao QG [Quartel-General], metemo-nos os dois nele e fomos até Nhacra, onde bebemos mais uma cervejas e comemos mais uns camarões numa baiúca que lá havia.
Depois de bem bebidos, decidimos que queríamos andar mais e continuámos pela estrada fora até... Mansoa. Aí, assistimos a um jogo de futebol dos elementos da companhia que lá estava, e comemorámos com mais cerveja no final do jogo.
Depois disso, o sol já estava a desaparecer e lá decidimos que era melhor voltar a Bissau. Estava lá um fuzileiro, não sei porquê (nem deu para essas perguntas, é claro...), que nos pediu boleia. Muito bem, lá fomos os três até Bissau.
O Almeida Santos ia a conduzir, eu ia ao lado dele em pé... a cantar (que besana!), o fuzileiro ia no banco de trás. Tudo na maior até perto da base aérea [em Bissalanca, nos arredores de Bissau]. Mas aí, o Almeida Santos, que estava pior que eu, saíu a toda a velocidade para fora da estrada (à volta estava tudo capinado e as árvores serradas) e foi chocar contra um tronco de árvore. Eu, que ia em pé, fui projectado e aterrei bastante mais à frente do local do embate. Quando dei por mim, tinha-me passado a bebedeira, olhei para o lado e vi o jipe a arder, com clarões que iluminavam a escuridão já existente, apalpei-me e não tinha nada partido.
Fui ao pé do jipe e ouvi o fuzileiro a gemer, o Almeida Santos estava desmaiado e não dizia nada. Peguei-lhe na cabeça e fiquei com as mãos cheias de sangue, ouvi-lhe o coração e vi que não estava morto. Fiquei à rasca, como calculam. Ali fiquei uns minutos a pensar o que fazer. Às tantas, vejo uma luzes avançarem do lado da base: era um grupo em viaturas que vira as chamas e queria ver o que se passava. E foram eles que nos levaram para o hospital.
Resultado: o fuzileiro tinha costelas partidas porque batera no banco da frente; o Almeida Santos tinha um lanho na cabeça porque batera com ela não sei aonde, e ficara sem um bocado da barriga da perna esquerda, também não sei porquê. E eu fui mandado embora, porque não tinha nada, a não ser a cara e a roupa tisnadas de preto.
Fui até ao QG, onde estava de Oficial de Dia o alferes Moreira, da CART 1690, que também esperava embarque de regresso. Ficou de boca aberta. No dia seguinte fui responder a um major que ficou encarregue do auto de averiguações. O Almeida Santos era o arguido, porque requisitara o jipe, porque ia a conduzir e porque... era mais antigo do que eu. Eu era testemunha! Claro que eu disse que íamos devagar, que tinha havido uma avaria no volante...
- Está bem, está bem, disse o major a sorrir.- Mas o Almeida Campos levou dez dias de prisão e teve de pagar o jipe, cerca de 300 contos, na altura. Poucos dias depois, antes de embarcar, fui vê-lo ao hospital e lá estava ela de perna engessada e cabeça ligada, todo sorridente a sorver uma cerveja.
Eu nunca fui santo, mas de louco sempre tive um pouco. E creio que mais fiquei depois de tudo o que vi e passei naquela terra da Guiné.
...E com esta me despeço.
Um abraço.
Marques Lopes
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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