quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20223: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (2): prevalência do HIV/SIDA; comportamento de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST



Guiné-Bissau > Bissau > HIV / SIDA > Dístico colocado sobre a estátua Maria da Fonte, na rotunda do Império, praça dos Heróis Nacionais, em Bissau. Foto de DW - Deutsche Welle / B. Darame. Com a devida vénia...



1. Mais alguns dados sobre a Guiné-Bissau, relativamente às "doenças sexualmente transmissíveis" (*), com destaque para o HIV / SIDA.


A fonte consultado é o relatório da CPLP sobre a Guiné-Bissau, e que corresponde ao capítulo 4 (da pag. 272 à pag. 337) do relatório final. A autora é a consultora brasileira Helena Lima.

Fonte: Helena M. M. Lima - Diagnóstico Situacional sobre a Implementação da Recomendação da Opção B+, da Transmissão Vertical do VIH e da Sífilis Congênita, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa- CPLP: Relatório final, volume único, dezembro de 2016, revisto em abril de 2018. CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 2018 [documento em formato pdf, 643 pp. Disponível em: https://www.cplp.org/id-4879.aspx]


(iii) Doenças sexualmente transmissíveis (DST)(Continuação

HIV / SIDA

Prevalência de HIV entre mulheres grávidas: 5%

Prevalência de HIV entre grávidas 15-24 anos: 3,4%

Prevalência nacional geral: 3,3% | Meio rural: 2,3% | Urbano: 3%


Prevalência por género: Homens: 1,5% | Mulheres: 5%


% de recém-nascidos filhos de mães HIV + que nascem infectados pelo HIV: 26%


Número de pessoas vivendo com HIV (2013): 41 mil


Crianças < 15 anos vivendo com HIV: 6.100


Órfãos por causa da doença: 10.614




(iv) Comportamentos de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST:




Tráfico de mulheres e violência de género



Alguns problemas estruturais vulnerabilizam a população de Guiné Bissau para os agravos diversos relacionados  com a sexualidade, como tráfico de mulheres e as diversas modalidades de violência baseada em género. 

O modelo patriarcal legitima as práticas socioculturais e tradicionais sobre grupos étnicos que compõem o país.



Circuncisão feminina e masculina



A Mutilação Genital Feminina (MGF), embora proibida por lei, é praticada em ambiente doméstico. 

Estima-se que as mutilações genitais tenham atingido 44,9% das mulheres entre 15-49 anos e cerca de 49,7% das crianças 
entre 0 – 14 anos.

A circuncisão masculina é socialmente incentivada e tem apoio no serviço público de saúde. 

Em inquérito de 2014, alguns dados apresentados sobre a situação dos inquiridos perante a circuncisão / MGF, por sexo:  
64,1% dos homens confirma a circuncisão, contra 35,9% que ainda não foi circuncisada. 

Para o sexo feminino 37,2% respondeu 
que sim foi submetida a MGF,
contra 62,8% que responde que Não.


Casamento precoce



Em relação ao casamento precoce, 7,1% referem-se a crianças com menos de 15 anos e 37,1% entre menores de 18 anos.



Contracepção


Em relação à taxa de contracepção, 
dados de 2014 apontam que 84% da população não usa método algum contraceptivo.


Os homens nunca são responsabilizados por eventual esterilidade, esta é uma questão meramente feminina e de mulheres, em alguns casos são sancionadas pelo divórcio. 

Essa verdade não é diferenciada por zonas ou espaços rurais/urbanos, 
é uma realidade cultural. 



A religião, a cultura e a tradição obrigam as mulheres a procurarem formas de conseguir despistar os maridos para poderem usufruir dos métodos contracetivos, porque,  segundo estes, elas são casadas para se procriar. 



Para se livrarem dos maridos, muitas das vezes, elas inventam desculpas em levar as crianças para as vacinas e/ou consultas e aproveitam para fazer controlo 
do implante dos métodos.




Planeamento familiar, gravidez e aborto 
entre os manjacos e os papéis



Segundo inquérito de 2014,  entre os manjacos, as mães não deixam os filhos fazer o planeamento e, quando aparecem grávidas, não as deixam fazer o aborto, porque é uma prática tradicionalmente interdita ("mandjidu") (...) 



Similaridade em Quinhamel, entre os papéis, onde se testemunhou um grau de liberdade das raparigas em ambientes noturnos e, quando aparecem grávidas, as mães não as exigem, temendo represálias de defuntos e/ou "kansaré". 



Segundo a crença dos papéis, se uma mãe se zangar com a filha grávida, ela não poderá tocar na criança após a nascença, porque representa uma rejeição a priori, o que faz com que as mães tenham que se consentir com a gravidez das filhas. 



Ainda neste mundo animista, segundo um técnico entrevistado em Caió, uma localidade de elevada taxa de prevalência do VIH, os homens desta localidade contraem matrimónio com mais de cinco mulheres, o que se associa a um elevado índice de promiscuidade, sobretudo nas deslocações de mulheres ao Senegal e das oportunidades sexuais que se lhes assistem.



Curandeiros tradicionais, muros, djambacus e balobeiros





Outras experiências demonstram que 
as mulheres casadas em dificuldade de gravidez recorrem sempre aos "murus" ou "djambacus" para receberem tratamentos tradicionais ou ainda as "balobas" de "ferradias",  fazendo pedidos e consequente promessas, em detrimento de aconselhamento e/ou tratamento médico.



Relativamente ao HIV/SIDA, segundo as perceções de alguns técnicos de saúde 
e ativistas de organizações 
que lidam diariamente com esta pandemia, 
uma larga percentagem de pessoas infetadas recusa a existência, considerando-a "tarbeçado", doença de "badjudeça".

De acordo com certas tradições animistas,  a doença é igualmente interpretada como falta de cumprimento de alguns rituais, 
caso de se tornar "djambakus" 
e/ou cerimónia de "rônia iran".


Fonte: Excertos do supracitado relatório. 
Com a devida vénia...

(Continua)

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Vamos precisar do nosso assessor para as questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé... Há termos em crioulo ou noutros idiomas, que ele tem de nos explicar...

"mandjidu" (em manjaco), prática interdita;

"kansaré" (papel), entidade sobrentaural que pode castigar ou fazer mal (?);

"muros, djambacus e balobeiros" (crioulo), curandeiros tradicionais;

"balobas" de "ferradias" (crioulo), práticas (?);

"tarbeçado", doença de "badjudeça" (crioula);

cerimónia de "rônia iran" (criouli), (?)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É bom sempre lembrar porque... "esquece muito a quem não sabe" (, dizia a gente na Guiné, na laracha, nos idos anos de 1969/71)...

Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge >
HIV/SIDA: Perguntas mais frequentes
01-12-2015

http://www.insa.min-saude.pt/hivsida-perguntas-mais-frequentes/



Qual a diferença entre estar infetado pelo VIH e ter SIDA?


Tal como no caso de outras infeções, o sistema imunitário de uma pessoa infetada pelo VIH produz anticorpos contra este vírus, os quais são detetáveis no sangue através da realização de um teste simples. Quando estes anticorpos são detetados diz-se que uma pessoa é seropositiva.

Uma pessoa seropositiva pode não ter quaisquer sinais ou sintomas da doença, aparentando um estado saudável durante um período que pode atingir vários anos. No entanto, essa pessoa está infetada e, porque o vírus está presente no seu organismo, pode, durante todo esse tempo, transmiti-lo a uma outra pessoa.

A SIDA só aparece muito mais tarde e relaciona-se com a degradação progressiva do sistema imunitário e a concomitante baixa das defesas contra outras doenças que usualmente não afetam uma pessoa saudável. Assim, a doença SIDA – fase última de uma infeção que pode ter vários anos de evolução – só é diagnosticada quando aparecem doenças oportunistas ou quando determinadas análises clínicas têm valores alterados.

A duração do período que medeia entre a entrada do vírus no organismo e o diagnóstico de SIDA, depende dos cuidados/apoios que a pessoa tiver: evitar reinfetar-se, cuidados e higiene pessoais, acompanhamento e tratamento médicos adequados e apoio da família e amigos. Com a utilização correta dos novos medicamentos que retardam a multiplicação do vírus e de medicamentos que previnem as doenças oportunistas, pode retardar-se o aparecimento da SIDA por mais anos. (...)

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Em resposta ao pedido do Luis Graça, aqui vai um pequeno resumo sobre o significado das expressoes em Crioulo da Guiné no texto.

1. “Mandjidu” – Refere-se aquilo que está interdito e a interdiçao vem sempre de forças ocultas, do desconhecido, por isso, de evitar a todo o custo, pois nao se sabe o que pode acontecer em caso de violaçao dessa interdiçao. Uma forma muito pratica de proteger a propriedade privada dos individuos, da familia e/ou da aldeia em relaçao ao comportamento indesejado de terceiros sejam eles pessoas ou animais domesticos. Um simples pau enfeitado com um pedaço de tecido vermelho e colocado em lugar visivel é suficiente para interditar um campo de amendoim ou plantaçao de cajueiros. Uma nota interessante é que esta interdiçao, também, se aplica as pessoas (mulheres) e propriedades (terrenos e casas).

2. “Kansaré” - é um ritual animista consagrado aos mortos, baseado na compreensao de que nao ha mortes naturais, mas sim mortes provocadas por forças do mal. O Kansaré é o elemento movel da Baloba, feita de paus e coberta de tecidos vermelhos, é carregado por quatro jovens possantes e que caminham, supostamente, dirigidos pelo espirito do morto com o objectivo de desmascarar o(s) autor(res) da morte. Os membros da comunidade assim descobertos e acusados de feitiçaria perdem todos os seus direitos inclusive o direito a vida e os seus bens e haveres confiscados em beneficio da comunidade como forma de vingar a morte do defunto e fazer o seu choro, aplacando assim a dor da familia que perdeu um dos seus. Muitos antropologos, africanistas e investigadores viram nessas praticas animistas uma forma subtil de regulaçao economica e social dentro das sociedades « primitivas » e/ou praticas escamoteadas de ajustes de contas e de eliminaçao de rivais e elementos nao desejados, muitas vezes bem sucedidos e cujas riquezas provocam inveja aos restantes elementos da comunidade e que necessita ser redistribuida colectivamente a fim de nivelar (por baixo) os membros dessas comunidades.


Cont.

Cherno Baldé disse...


Continuaçao:

3. «Muro» - O mesmo que mouro (árabo-berbere do norte d’africa), utilizada para referir-se aos Marabus -chefes religiosos - de confissao muçulmana. No meio urbano da Guiné tem o mesmo significado que « Djambacus », provavelmente de origem mandinga e « Baloba » do grupo do Brames (Papel/Manjaco/Mancanha).

4. «Balobas» - Sao os locais, entre alguns povos da Guiné-Bissau, chamados animistas do grupo dos Brames (Papel-Manjaco-Mancanha), reservados as cerimonias dedicadas aos Irãs e que são feitas, normalmente, mediante o uso de aguardente e sangue de animais imolados em sua intenção. A referência feita as « ferradias », nos remete para as oficinas tradicionais onde se trabalha(va) o ferro. Na Africa profunda e multisecular, de uma forma geral, o ferreiro assim como o caçador sao facilmente assimilados aqueles que praticam artes secretas e/ou mágicas e logo possuidores do dom imanado do espirito dos Irãs. Em muitas comunidades animistas, o ferreiro e o balobeiro são a mesma pessoa ou ambos possuem o dom da cura e do poder de contacto e intermediação com forças ocultas como os Irãs ou espiritos do mato/floresta. Nesses casos um simples metal (o ferro), por eles confeccionado, pode servir de guarda a fim de proteger-se dos espiritos maus. Uma pratica muito frequente dentre os habitantes originarios dessas etnias do litoral guineense.

5. "Tarbeçado" - Parto anormal quando a criança vem numa posiçao invertida com os pés primeiro em lugar da cabeça, uma expressao, provavelmente, de origem balanta.

6. "Doença de badjudeça" quer dizer periodo menstrual ou quando aparecem, nas meninas, os sintomas das primeiras mentruaçoes. De origens diversas.

7. «Rônia Irã» - Segundo alguns investigadores, tem origem na palavra em português arcaico “erronear”, ou seja deambular de um lado para outro. Durante o periodo em que estas cerimonias sao feitas, sobretudo entre os Papeis, ha grupos de mulheres que viajam de aldeia em aldeia, de sitio em sitio, carregados de objectos diversos, para cumprir determinados rituais e cerimonias tradicionais, de acordo com um calendario e trajecto pré-definido. Ao que parece, as Balobas (ou nao seriam os balobeiros?) e os seus Irãs estão, de certa forma, hierarquizados ou, para usar uma expressao moderna, especializados em determinadas matérias do mundo espiritual ou dos mortos e cada aldeia ou familia teria o seu proprio percurso em funçao da tradicao e/ou das suas necessidades espirituais ao serviços das almas dos seus mortos em diferentes épocas.

Todas estas expressões ou conceitos antropologicos acima apresentados, sendo de origem etnica ou tribal, ja fazem parte do lexico corrente em crioulo.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé



Anónimo disse...

Cont.

Uma Nota sobre o ponto 5:

Quando disse que é uma expressao, provavelmente, de origem balanta, queria referir-me ao conceito intrinseco pois que, entre eles o fenomeno é seguido de algumas cerimonias feitas para exconjurar as forças maléficas do fenomeno anormal e nao a origem da palavra que é claramente crioula cuja origem resulta da corruptela da palavra portuguesa "atravessado".

Cherno AB

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, foste fantástico, deste uma resposta rápida e compreensiva... Nota 20!... Tenho que te aumentar a avença... Preferes euros ou CFA ?

Mantenhas. Um abraço, meu amigo, meu irmãozinho. Luís

Anónimo disse...

Ok Luis,

Não vou pedir muito, se tanto mereci a tua sublime admiração, manda para cá a tua esmolinha de €86,45 por serviços prestados a pátria em terras da Guiné durante 23 meses.

Cherno AB