quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20220: Historiografia da presença portuguesa em África (180): “Duas descrições seiscentistas da Guiné”, de Francisco Lemos Coelho, introdução a anotações históricas por Damião Peres, Academia Portuguesa de História, 1953 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Estas duas descrições seiscentistas podem ter muito interesse para quem pretenda conhecer a presença portuguesa nesta região da costa ocidental africana no século XVII. Ainda se pensava que aquela terra chamada Guiné era a Etiópia Menor ou a Etiópia Inferior. Francisco de Lemos Coelho possibilita-nos um excelente registo do que atrai os portugueses à região: fundamentalmente o comércio e algumas preocupações religiosas. Daí o detalhe e os comentários sobre os reinos, o acolhimento, os poderes instalados, a facilidade com que se trocavam metais e cavalos por seres humanos. Do que vou conhecendo, depois de André Álvares de Almada nenhuma outra narrativa sobre a Guiné é tão completa e viva como esta.

Um abraço do
Mário


Francisco de Lemos Coelho, aventureiro seiscentista na Guiné (3)

Beja Santos

Francisco de Lemos Coelho é autor de duas impressivas descrições que avivam e complementam os conhecimentos e relatos de outros viajantes anteriores e contemporâneos.

Em 1953, a Academia Portuguesa de História deu à estampa, com introdução e anotações históricas de Damião Peres, as "Duas Descrições Seiscentistas da Guiné". A primeira é datada de 1669 e intitula-se “Descrição da Costa da Guiné desde Cabo Verde até à Serra Leoa com todas ilhas e rios que os brancos navegam”; e em 1684 há outro manuscrito intitulado “Descrição da costa da Guiné, e situação de todos os portos, e rios dela, e roteiro para se poderem navegar todos os seus rios", feita pelo Capitão Francisco de Lemos, em São Tiago. Damião Peres encontra nestes textos afinidades clamorosas e para ele não subsistem dúvidas que o Capitão Francisco de Lemos e Francisco de Lemos Coelho são a mesmíssima pessoa.

Concluída a breve apreciação do manuscrito de 1669, vamos agora para a "Descrição da costa da Guiné e situação de todos os portos e rios dela", documento de 1684.

Dirigindo-se ao “leitor amigo”, justifica a obra:  
“Sabe que me obrigou a força do amor de um irmão e amizade de muitos parentes e amigos a pôr este epítome em estilo que pudessem ter conhecimento da dita costa, portos e rios, levando alguns deles dos desejos de os irem ver e navegar (…) Obrigou-me também para me ajustar as suas vontades o considerar que por aqui se vivia em conhecimento dos muitos reinos e nações que estão aptos e capazes de receber a religião católica (…) Move-me também a fazer este breve epítome, deixando com ele a porta aberta aos doutos, para que saibam os que se deliberarem a virem morar em alguns dos portos de tantos reinos, venham prevenidos de que se não levarem cabedal lhes será necessário que para o tirar há que passar alguns trabalhos”. E por fim justifica-se: “Em este breve tratado resumirei com a brevidade possível a diversidade de reinos, rios, portos que há desde o Cabo Verde até à Serra Leoa, que é o que os Portugueses moradores daquela costa e os que vão desta ilha de Cabo Verde navegam”.

Como é evidente, deste documento, que não é epítome, mas uma descrição bem detalhada, far-se-á resumo de tudo quanto o capitão observa, demorando mais no que é hoje a Guiné atual. Começa por fazer a descrição de Cabo Verde até ao Rio de Barçallo. Não nos esqueçamos que a cartografia da época era rudimentaríssima, e daí ele poder escrever: “A costa de Guiné que descrevo é aquela parte da região da Etiópia… Compreende o Cabo Verde e vai correndo até à Serra Leoa. Deste Cabo Verde ou rio de Sanagá (Senegal) até ao rio de Gâmbia há de costa 33 léguas e neste distrito todo está a região do Grão Jalofo”.

Carta náutica de Fernão Vaz Dourado de 1571
Encontramos nos dois manuscritos, como é óbvio, repetições e aproveitamentos de descrições do primeiro para o segundo. É o caso quando o autor diz “em passando Cabo Verde está a ilha de Bersiginche, desviada de terra firme uma légua, a qual os holandeses, que eram no meu tempo senhores dela, chamam Goreia, nela tinham duas fortalezas. Um general era superintendente assim da guerra como da paz, e para o negócio tinha sempre ferro e fazendas do norte com muita abundância. Também aqui vinham os navios de Cacheu ou ele mandava lá os seus a comerciar”.

Francisco de Lemos Coelho é primoroso em certos detalhes, como se exemplifica: “Os negros da beira-mar são todos pescadores e têm muitas canoas não grandes, mas trazem-nas com duas velas de galope ambas em um mastro, e são grandes marinheiros. A principal fazenda para estes protos de Jalofos é coral fino comprido e quanto mais grosso melhor, o qual se vende em pedras, e há coral que dão por uma pedra um coro; e a mim me deram um formoso negro por um ramal de coral”.

Comerciar em terra de Jalofos tinha requisitos obrigatórios, e o autor explica:  
“São os portugueses que aqui moram obrigados, a não ser que impedidos por doença, a irem visitar o rei da terra todos os anos uma vez e levarem-lhe muito bom presente conforme suas possibilidades, que às vezes custa mais de cem mil reis, isto em muito boas peças de prata, aguardente em barris ou frasqueiras, coral fino, escarlatas e outras coisas; o rei lho gratifica e lhe dá muitas vezes mais do que vale o que lhe leva; o que lhe dá são negros, couros, cavalos, camelos, que nos brancos servem muito para conduzirem os couros”.
Faz uma apreciação muito positiva do acolhimento: “Os negros são muitos amigos dos Portugueses, mais do que qualquer outra nação; os da beira-mar, os mais deles, falam a nossa língua e a flamenga e a francesa”. Confinante com o reino do Grã Jalofo está o reino do Grã Fulo. E afirma: “É este reino dos Fulos tão dilatado que os conhecemos pela terra dentro do rio Sanagá até à Serra Leoa". E faz a descrição do rio de Barçallo para o rio da Gâmbia. Refere que o caminho que se faz por terra desde o porto do reino de Sangedegra é terra de hereges até à praça de Cacheu. Assim chega ao Porto dos Lagartos, que está junto da madre do rio de Casamansa. Segue-se, após esta digressão, a descrição do rio da Gâmbia e depois da barra de Gâmbia até ao rio de Cacheu. Descreve Cacheu, que é praça onde há capitão-mor, a viagem do rio até à povoação de Farim e comenta os seus portos e comércio. Só vejo interesse em detalhar alguns dos comentários avançado por Francisco de Lemos Coelho: “Os Banhuns antigamente eram vassalos do rei de Casamansa (…) Saindo até à madre do rio chega-se a uma aldeia de Cassangas, que na religião, trato e comércio são o mesmo que os Banhuns”. Detalha Farim e aldeia de Tubabodaga e fala no porto de Genicó que está antes de chegar ao porto de Farim, onde se compram negros e marfim. “O gentio todos são bárbaros, sem religião nenhuma, capazes para receber a fé católica”. E adianta: “Desde porto de Farim à aldeia dos brancos é uma maré. Está a povoação da banda do Norte, ao longo da água, na terra de Farimbraço, cujo título é como o do imperador. A sua terra é muito dilatada, repartida em Farinados que são como reis. Estes cognomes de Farim só quatro o têm em toda a Guiné, que são: Farimbraço, que é este de que tratamos; Farim Cabo, que fica mais por cima; Farim-Cocoli e Farim Landima".

Dá-nos uma descrição de Cacheu que é muito semelhante à que escreveu em 1669.
E a viagem prossegue a caminho de Bissau.

(Continua)
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Nota do editor

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