segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Guiné 61/74 – P20212: Guiné, da escravatura à carne para canhão - Os escravos e os combatentes, (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 
  
Os escravos e os combatentes

Li, recentemente, o livro, cujo autor é o meu camarada ranger, 1º Curso de 1973, António Chaínho, ex-alferes miliciano e antigo combatente em Angola, onde descreve literalmente o mundo negro da escravatura.


“A escrava Domingas”, uma negra trazida de uma sanzala na foz do rio Zaire, Angola, é uma das personagens principais, senão a principal, da narrativa que sinteticamente espelha o soberbo poder exercido pelo homem sobre pessoas indefesas que eram simplesmente utilizados pelo poder da sua força física e as mulheres obsequiosas duplamente usadas para os prazeres sexuais dos mais poderosos. 


Domingas foi comprada num lote de escravos, ao todo nove, sendo o seu destino o morgado de São Mamede, Vale do Sado, quando decorria o século XVIII. Claro que, tal como os seus outros camaradas da inferida caminhada, sofreu as amarguras da crueldade de uma atroz escravidão por parte de donos sem escrúpulos, maliciosos, miseravelmente déspotas e que usufruíam da sua condição senhorial para atingir infinitos objetivos.

Investiguei o tema escravos na Guiné. Andei por trilhos, agora desarmadilhados, e deparei-me com a fundação de uma tal Companhia do Cacheu que no século XVII terá sido determinante para a comercialização de escravos. Naquele local controlava-se, olho por olho, o negócio. As caravelas portuguesas levavam tecidos, barras de ferro, muitas bugigangas, álcool, de entre outras mordomias, e aí executavam a troca direta, recebendo escravos, pimenta de entre outros objetos de valor. 

Para se efetuar o respetivo comércio havia os intermediários que eram, naturalmente, os armadores e os régulos. Havia, também, os lançados, homens brancos, sendo que alguns deles tinham a origem judia que interferiam, à socapa, no tráfico e que atuavam no negócio à revelia das autoridades ali existentes.

A curiosidade desta demanda remete-nos para as queixas que tanto os capitães-mores como os comerciantes mais fortes, que partilhavam os dividendos do comércio de escravos, lançavam àqueles que, para eles, atuavam à margem das regras legais impostas pelas próprias autoridades oficiais.

Este pequeno introito sobre o comércio inicial de escravos no Cacheu, transporta-nos para séculos posteriores, ou seja, para a guerra na Guiné, século XX, na qual fomos atores forçados. A 23 de janeiro de 1963, na região de Tite, iniciaram-se as ações da guerrilha, estendendo-se depois a todo o território, sendo que a luta armada só terminou em 1974, mercê da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.

E se o PAIGC revelou-se como o partido da revolução no solo guineense, na Metrópole, em Lisboa, a capital do Império, os senhores da guerra enviavam um outro tipo de escravos para o cenário da peleja, os chamados carne para canhão.

Creio, conscientemente, que o termo carne para canhão não é um ímpeto deselegante, e nem tão-pouco o deverá ser. Pelo contrário, ele reflete uma realidade conhecida por todos os camaradas. Isto porque enviar jovens para as frentes de combate com uma arma na mão cujo estatuto era matar para não morrer, significava que os nossos soldados, muitas das vezes, davam o corpo às balas numa pura e simples veracidade que eles, meninos e moços, se apresentavam para os teores da ferocidade da guerra como “miúdos” indomáveis que literalmente resvalavam para a meteórica expressão denominada como carne para canhão.


Se os escravos, vendidos aos lotes para patrões de outros continentes, o europeu nomeadamente, sendo o lote das mulheres melhor taxado, a condição física dos homens passava por monotonizar minuciosas visualizações, isto é, o conhecer da força, a doutrina da composição de toda a massa muscular, as doenças africanas, a saúde dos dentes, vistorias às partes íntimas, de entre outras malazengas, nós, eternos camaradas e antigos combatentes, éramos a tal carne para canhão, onde os aspetos físicos que cada um apresentava pouca ou nenhuma importância teria para uma missão deveras agressiva.

Falamos, e é verdade, de sistemas e de conteúdos completamente diferentes, melhor, de sistemas sob uma ancestral matéria humana conhecida nos séculos XVII e XX, contudo, os elos que unem os antigos combatentes resvalam para restos de uma escravatura que se propagou no tempo num agreste terreno de batalha chamado Guiné.

Este entrosar de realidades observadas, em séculos diametralmente diferentes, volto a referir, é somente o reavivar de histórias passadas, sendo o conflito da Guiné um dado real por todos nós conhecido.

Escravos para além de combatentes? Admitamos um pouco que sim! Não fomos “vendidos” em lotes, nem tão-pouco sujeitos a humilhações humanas, ou motivo para notórias vistorias corporais, mas sim atirados sem dó nem piedade para Batalhões, Companhias ou Pelotões onde o fator da morte estava sempre iminente.

Factualidades de um tempo sem tempo, camaradas!


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

1 DE OUTUBRO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Oprotuna a tua reflexão... O esclavagismo e o tráfico de escravos não honram a humanidade...E estão longe de terem sido abolidos, "de facto"... E nomeadamente o "trabalho forçado"... Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), "21 milhões de pessoas são atualmente vítimas de trabalho forçado e as crianças representam um quarto dessas vítimas. Os setores do trabalho doméstico, agricultura, construção, manufatura e diversão são os mais preocupantes. O trabalho forçado gera, pelo menos, 150 mil milhões de dólares por ano em lucros ilícitos em todo o mundo."

https://www.ilo.org/lisbon/temas/WCMS_650869/lang--pt/index.htm


O "esclavagismo e o tráfico de escravos já não foram, felizmente, realidades a que tivessemos assistido no nosso tempo na Guiné... Mas terá havido situações , mais ou menos pontuais, de trabalho forçado, até ao fianl do consulado do gen Schulz e ainda no início do consulado do Spínola... MIlhares de guineenses utilizados em trabalhos como a capinagem das estradas e picadas... Isto mesmo depois da abolição do estatuto do indígena, em 1961, por Adriano Moreira...

Isto tem que ser melhor documentado no nosso blogue... LG