Pode ter sido o caso do Ulisses C..., , senhor embaixador, já falecido. Diziam na terra que ele nascera de um parto distócico. De costas, de barriga para baixo, de cu para o ar. E para mais em noite de luar de janeiro. E sobrevivera. Contra todos os temores. O que a velha parteira interpretou como um sinal de que vinha ao mundo já abençoado. − Há gajos que nascem com o cu virado para a lua… Como o teu cunhado, por exemplo…
− Quem, o Ulisses?
− Sim, Jorge, só tens um, que eu saiba.
− Já agora retifica: ex-cunhado, senão te importas... E, se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.
O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril…
Mal saiu a amnistia, da Junta de Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.
Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso, Ulisses C...
Foi um "puto mimado", confirmavam os dois interlocutores. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. Ou rica e importante, como se queira .
Na escola, o Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (que eram à compita, para ver quem dava menos erros)... Mas também no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.
− Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola – acrescentou o Jorge.
− Foi um sortudo, o Ulisses!..,
− Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha pobre mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!... Eu nasci de cu para o ar."
− A dona Natércia?!... – exclamou o Nando. − A parteira que nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso velho mestre-escola, ou o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.
− Há, sim. Nasceu, de facto, de cu para o ar. Podia não ter-se safado. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...− atalhou o Jorge.
A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara, a ela e ao seu menino…
− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!
− A minha ex e as suas duas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele − confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando.
Nascera prematuro, e numa posição difícil... Mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto, um sortudo...
− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).
Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Alfredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital. Estamos em plena II Guerra Mundial, em 1943, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa, como o Jorge, o Nando e todos os demais da sua geração...
− Lembrava o pai que foi em plena batalha de Leninegrado, quando o Exército Vermelho conseguiu, pela primeira vez, abrir um corredor que levou a esperença aos sitiados − acrescentou o Jorge.
− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.
De facto, o doente (sobretudo quem tinha algo de seu) ficava acamado em casa, era tratado pelo João Semana ou por alguma "curiosa" e, se era caso para morrer, morria em casa, rodeado de filhos e netos... , depois de receber a extrema-unção pelo padre da paróquia.
Em amena cavaqueira com o Jorge, o "historiador da terra", o homem que mais sabia sobre as misérias e as grandezas das famílias tradicionais da vila, o Fernando veio a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…
− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão − comentava o Jorge.− No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado.
− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.
Claro, o paizinho, o senhor Anselmo, visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade, até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas descobriram que o pai tinha arranjado... uma amante!
− Vinte e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho − confidenciou o Jorge.
− A "Anselma", como diziam as más - línguas. Não a conheci...Mas era assim que os "industriais" faziam... para salvar as aparências...
− A "Anselma"!... Cheia de mordomias... A minha ex-mulher, que Deus também já lá tem, tinha lhe um ódio de morte...
− Mas... exilado, o Ulisses, dizes tu?! − interroga-se o Fernando.
− É uma figura de estilo. Não foi por razões políticas. Como sabes, ele fugiu à tropa. Tão simples quanto isso.
Não, não era um desertor, mas um refratário... Não era a mesma coisa: legal e tecnicamente, o Ulisses não foi um "fujão", como se costumava dizer na época em relação aos desertores. Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou desertor era, no entanto, bem mais grave do que faltoso na época, em que o país estava em guerra.
Aqui o Jorge gracejou com o Fernando, dizendo:
− Eras ainda um puto, não te deves lembrar... Mas em 1961, e eu já em Angola, não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:
− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano, vai ocupar e usurpar descaradamente...
− ... a nossa jóia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a frase do seu amigo.
E depois elucidou-o:
− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota do seu sangue contra as tropas do 'Pandita' Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o mais profundo rancor e desprezo…
− Só soube isso muito mais tarde... Mas também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares, na nossa história.
− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais da vila, que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos pelos vizinhos... por não terem morrido pela Pátria...
− Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"...
− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela. E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital das doenças infectocontagiosas, em Belém.
Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.
Das suas origens do senhor Anselmo, sabia-se muito pouco ou nada. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sorte, isto é, sucesso, em termos pessoais, familiares e profissionais.
Tinha a vantagem de não ter passado. Não se lhe conheciam os "podres", como diziam as alcoviteiras da terra. Mas também ninguém sabia se tinha nascido com o cu virado para a lua, como o filho...
A verdade é que aqui casou, aqui teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...
− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte... − observou, com sarcasmo, o Jorge.
Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos palermas dos putos da escola)…
Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e sobretudo promissores, com países da Europa do Norte e Centro. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.
Começara no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias...
O Jorge ainda era do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital, e que parava em todas as terras... E a maior parte das estradas do concelho ainda não eram alcatroadas.
Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado muito mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a crescente abertura da economia, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial.
− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos na Palestina − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.
Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).
Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos, portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. E calou de vez o coro das mulheres que, no lavadouro público, também lavavam a "roupa suja" dos ricos da terra...
Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais, os " caciques", que tinham contribuído com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamos, um conto de réis, no início dos anos 50, não era uma fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de 550 euros, ou um mês de jornas de um "cavador de enxada"...
Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, entre dentes, que era "maçon", coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era; pior só jacobino, mas muito pior ainda ser comunista...
O senhor Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente, acompanhar a digníssima esposa. Claro, nunca o viram comungar, diziam as "cuscas" das beatas.
O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até por ter andado na marinha mercante inglesa e ter uma bomba da Shell). Terá sido dos primeiros a ter rádio e luz elétrica em casa. E constava que ouvia a BBC. E mais: dizia-se que era espião dos ingleses.
− Mas finório como ele sempre foi, nunca falou de política comigo: sabia que eu era do "contra" e até simpatizava comigo. Nunca o ouvi falar de política com os filhos.
Também é verdade, declinou em 1958, depois das eleições do Humberto Delgado, o convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe (em boa verdade, tinha um curso técnico na área da mecânica fina, era autodidata e poliglota).
Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.
Recusou igualmente um convite (esse menos lisonjeiro) para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra.
Todavia, a razão nem era essa: ele já movimentava mais dinheiro e empregava mais gente que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra" e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público, abrir um estradão ou calcetar uma rua...
Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo inegável talento para os negócios e as relações públicas, deixou bem claro, à tacanha elite local, de agrários, comerciantes e "mangas de alpaca", que não precisava da política para subir na vida...
Restaurou o melhor palacete da vila ( doado â esposa por morte da tia e madrinha), para inveja de alguns senhores da terra. Acabou, todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".
Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.
− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história da Marinha Grande).
− Sim, mas ele recusava-se terminantemente falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a casa da família, depois de casado.
O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que parecia mais verossímil, aos olhos do dr. Fernando ...
A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Estava na mesa do escritório onde ninguém entrava a não ser a criada para a limpeza semanal do pó...
Sabe-se que o Anselmo só conheceu a futura terra dos seus filhos depois do casamento, na véspera da II Guerra Mundial. Conheceram-se, ele e a futura esposa, ao que parece, num cruzeiro da Cunard-White Star. Ele fazia parte da tripulação do navio. E ela acompanhava a tia e madrinha que, além de viúva e sem filhos, era rica e tinha o bom gosto de viajar. O Anselmo era um sedutor e um "gentleman": depressa caiu nas boas graças da tia e da sobrinha. O copo de água foi na Figueira da Foz. A madrinha morreria no pós-guerra e deixaria o palacete à sobrinha e afilhada.
Lá em casa, garantia o Jorge, também nunca se falava do passado, não havendo por isso grande curiosidade em saber mais sobre a vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados do papá Anselmo. Afinal, todo a gente de bem tinha um ramo pobretana na família.
Das poucas vezes que ele, a mulher e os filhos foram a Vieira de Leiria, em passeio, aproveitando para "revisitar o passado", deu para perceber melhor a sua origem: os seus "parentes afastados" ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.
− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, quanto mais fosse, alegadamente, só para assistir ao espetáculo da arte xávega ( com "os bois a lavrar o mar")... No fundo, um pretexto para passar uns dias na "terra da sua querida mãe"...
Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos, o Ulisses e as manas, detestavam, que horror!, preferindo de longe São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as poucas famílias burguesas, abastadas, da região...
Estamos, entretanto, a falar de uma época em que o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público. O Salazar era um "rural". O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.
Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores, reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional...
A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França e a Alemanha, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.
Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamente as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público (quando começaram a aparecer os planos de urbanização), ou vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores que os roubavam "à grande e à francesa"...
Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. As máquinas jão vieram a tempo de suprir a falta de braços, Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".
Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra, assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.
O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, "antes que fossem ocupadas".
Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. Os democratas do 26 de Abril, nascidos como cogumelos.
Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República. E "morreu republicano", garantiu o Ulisses, num "in memoriam" que escreveu sobre o pai, e publicado no jornal da terra.
O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...
− Três anos nos separavam (o que era muito naquele tempo!)...Eu sou da colheita de 1946. Além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico", o primeiro a ter uma "vespa".
Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila. De bibe, impecável, engomado e passado a ferro pela criada. Na altura juntavam-se os putos das várias classes. E ninguém entrava descalço.
Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro).
Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai, por ocasião da Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras.
− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge.− Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 15 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.
Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas (seguramente por conselho ou imposição do pai)... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, pondo-o a salvo, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Nunca apanhou o "vírus" das greves estudantis...
Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1943. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear.
Vinha munido de uma valente cunha e de um extenso relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar, que por sinal era de Leiria e seu conhecido.
O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. Ficou na lista de espera, tendo de voltar à inspeção militar no ano seguinte. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos papás.
Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa, mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios.
− Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato. − adiantou o Jorge. − Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios.
Mas a vida (ou a guerra de África) trocou-lhe as voltas. De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de hereges, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores, mesmo sabendo que ia para o céu".
− A mãe, a minha ex-sogra, era uma boa senhora, esbelta, viajada, culta, mas conservadora, beata, benfeitora e amiga dos pobres. Fundou uma creche que o Anselmo doaria mais tarde â santa casa da misericórdia local e que hoje tem o nome da esposa.
E o Anselmo não autorizava que se falasse de política à hora das refeições. De resto, não era hábito falar-se da "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.
A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, logo em 1961. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o senhor Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Doze contos de réis era muito dinheiro naquele tempo de incerteza. Ele já tinha interesses no ultramar.
A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.
− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado.
Segundo ele, passou a ter uma reforma dourada e um vasto capital de relações sociais... Era agora livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vivia entre o Algarve e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não se falavam desde que o Jorge se divorciara da irmã. Nem nunca mais aparecera pela santa terrinha.
− Nunca morremos de amores um pelo outro...Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...
− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim, mas esse nem nome de beco tem...
− De qualquer modo, ele é mais holandês do que português! − arrematou o Jorge. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.
E concluiu:
− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.
− Neerlandês, como se diz agora... Mas eu diria antes: melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um bom paizinho − comentou, irónico, o Fernando.
− Foi tudo junto... Cumpriu-se, afinal, a profecia da parteira, quem nasce de cu virado para a lua tem sempre sorte na puta da vida...
PS - O Ulisses C... morreu uns tempos depois desta conversa. De qualquer modo, o nome é fictício, mas a sua história de vida é real.
© Luís Graça (2022). Última revisão: 14 de julho de 2025.
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Nota do editor LG: