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segunda-feira, 14 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27016: Notas de leitura (1819): "Guiné Destino Imposto", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Temos aqui uma nova narrativa, por vezes com histórias bem curiosas de um médico que assina com o nome de escritor Rui Sérgio. Andou por Dulombi, Cancolim e Saltinho, fez serviço médico nos Bijagós, assistiu ao fim do Império na Guiné. Em permanência, homenageia quem combateu na aspereza daqueles caminhos, recorda carinhosamente os seus colaboradores, lamenta do fundo do coração a hecatombe que se seguiu. O fio da memória está vivo, tão vivo que iremos ouvir falar dele nas terras da Guiné.

Um abraço do
Mário



Foi alferes médico em Galomaro e tem histórias para contar

Mário Beja Santos

Mais um comprovativo de que a literatura memorial está viva e recomenda-se. O título da obra é "Guiné Destino Imposto", por Rui Sérgio, 5livros.pt, 2020. Rui Sérgio é já um nosso autor conhecido, temos agora um punhado de memórias avulsas, lembra a sua partida para a Guiné, foi o segundo filho a marchar para a guerra, o irmão mais velho, também médico, esteve na 18.ª Companhia de Comandos em Moçambique. Em Bissau comunicam-lhe que irá para Galomaro, viajou do Pidjiquiti até ao Xime numa LDG, e começa por nos apresentar algum do pessoal que estava na sede do BCAÇ 3872, dele guarda recordações memoráveis, tanto do BCAÇ 3872 como do pelotão de reconhecimento e da CCAÇ 3491, vai elencando os nomes, desde os comandantes aos capitães e alferes, não esquecendo o tenente da secretaria e o padre capelão. “Fui substituir o António Pereira Coelho, que transitou para diretor do Hospital de Bafatá, e que é hoje professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde se destacou como o homem da inseminação e procriação in vitro. Nesta guerra fui o alferes miliciano médico, Rui Vieira Coelho, licenciado na Faculdade de Medicina do Porto, com a especialidade hospitalar de Cirurgia Geral. Regressado, fui assistente da Faculdade de Medicina da cadeira de Clínica Cirúrgica.” Confessa que não esqueceu tudo o que por lá passou, as amizades que fez, os seus colaboradores diretos, aqui agradece-lhes muitíssimo, e não esquece o batalhão que substituiu o 3872, o BCAÇ 4518. E dá-nos seguidamente um quadro muito afetivo das suas lembranças.

Logo o Jamba, um encarregado civil pela limpeza do aquartelamento. “Era um homem de porte atlético, de etnia Mandiga, de olhos esbugalhados e com uma face de quase riso permanente, bem musculado e sempre com uma atividade acima do normal. Tinha uma grande liderança em relação à sua equipa de limpeza quer da parada quer dos refeitórios, ajudando em todos os serviços da cozinha, assim como no posto de saúde, a limpeza da enfermaria.” Um dia encontrou-o acabrunhado, ansioso, o médico ofereceu-se para conversar com ele. Jamba contou de sua justiça. “Há cerca de duas semanas, quando ia do quartel para casa, encontrei na porta uma galinha preta, sem cabeça e uma cruz de sangue na soleira, fora feito um grande feitiço, nunca mais fui homem.” Perdera todo o ensejo de fazer amor, perdera vontade de viver, pensava em fugir. O médico procurou descansá-lo, deu-lhe uma mezinha para beber, com a garantia de que passado uma hora ficaria mais homem do que alguma vez teria sido. O médico deu-lhe um comprimido efervescente de vitamina C, em frente dele deitou o comprimido no copo de água, Jamba bebeu e o médico disse-lhe para voltar à tabanca dentro de uma hora. Duas horas depois Jamba voltou alegre, cheio de vitalidade, a mezinha dera efeito.

Segue-se Bacar Djaló, antigo pisteiro, fora ferido em combate e perdera um olho, agora era o tradutor-intérprete do médico. Bacar apresentava-se no Centro de Saúde, organizava a vila nos doentes dentro da seguinte lógica: primeiro os Futa-Fulas, depois os Fula-Forros, mais adiante os Fula-Negros, seguiam-se todos os outros, terminando nos Biafadas. Como o médico considerava que deviam ser atendidos em primeiro lugar aqueles mais graves pediu explicações ao Bacar que respondeu que “Fula é conde! Mauro Dótor tem de entender que Fulas mesmo pequenino já fala e escreve três línguas. De manhã anda na escola portuguesa, sabe português e escreve de cima para baixo e da esquerda para a direita. À tarde, menino vai na escola árabe e lê e escreve de baixo para cima, da direita para a esquerda, Fula tem inteligência na cabeça e, portanto, é conde, portanto fica em primeiro em qualquer fila.” Quando Bacar via o médico a cumprir rigorosamente os horários de trabalho, Bacar interpelava-o: “Calma, Mauro Dótor, não tem pressa no trabalho. Para quê trabalhar depressa se o trabalho nunca mais acaba?”.

O autor recorda as colunas para Dulombi, a 18 km de Galomaro, onde o médico ia com frequência, não esqueceu a picagem dos caminhos, a admiração que tinha por todos, por aquelas árduas caminhadas na época das chuvas, as picadas inundadas. Descreve a vida em Galomaro, os edifícios, os diferentes itinerários, e regressa às lembranças pessoais.

Logo, Binta, uma jovem lavadeira de riso e alegria contagiantes, foi uma heroína, recusou energicamente a mutilação genital. Ocorre-lhe a referência da quadrícula em que se inseria o seu batalhão, o setor L5, as unidades que o compunham, as companhias operacionais em Cancolim, Dulombi e Saltinho, a população predominante era a Fula; não esquece os pelotões de milícias e os pelotões de caçadores nativos e onde cumpriam a sua missão, na zona do batalhão operavam 15 pelotões de milícia, visitas frequentes do posto militar de saúde; lembra também a Marinha, as canseiras das colunas de abastecimento, sobretudo ao Saltinho. Refere os perigos da vida corrente, como a desidratação, as doenças que tratava, as de transmissão sexual. “Confiavam em mim e no segredo profissional que estava subordinado, servindo de intermediário válido entre eles e o comando. O medo e em alguns a ansiedade permanente levava por vezes a depressões quase todas de caráter reativo à situação de guerra por que passavam, que se agravava exponencialmente, com mortos e ou feridos, com a falta de notícias. O sentido de perigo constante fazia com que entre camaradas a amizades e a solidariedade fosse a melhor terapêutica para um bom equilíbrio emocional. Não é por acaso que o pessoal militar que passou pela Guiné tem um sentido tão gregário.” Como não será por acaso que se formaram organizações não-governamentais solidárias, na área da saúde e educação, predominantemente. Volta a falar nas doenças com que se confrontava, a malária, a disenteria amebiana, o programa de vacinação no campo da saúde pública (tuberculose, cólera, difteria, tétano e tosse convulsa, bem como a hepatite).

Guarda recordações dos Bijagós, ele era subdelegado de saúde da zona de Galomaro, competia-lhe prestar assistência médica no arquipélago, percorria Orango, Bubaque, a Ilha das Galinhas, guarda saudades. Refere depois um aeródromo de recurso, tudo usto já no final da guerra. Constava na boataria que estava para breve um assalto final a Bissau pelo PAIGC, os comandos decidiram que era necessário uma aeródromo de recurso no arquipélago dos Bijagós, concretamente na ilha Caravela, havia que instalar uma tenda de apoio médico, assistiu a todo aquele espetáculo de máquinas de terraplanagem a nivelarem as terras revolvidas, passadas todas estas décadas não sabe se aquele aeródromo de recurso da ilha Caravela chegou a ser concluído sem empréstimo.

Junta um vasto elenco de fotografias, despede-se homenageando todos os antigos combatentes da guerra.

Rui Sérgio
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Nota do editor

Último post da série de 11 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27003: Notas de leitura (1818): "A Expansão Quatrocentista Portuguesa", de Vitorino Magalhães Godinho; Publicações Dom Quixote, última edição em 2018 – 2 (Mário Beja Santos)

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