terça-feira, 7 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19760: Memórias de Gabú (José Saúde) (83): Os “milagres” do quarteleiro da minha companhia. A metamorfose do vinho batizado com água.

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

As minhas memórias de Gabu 


Os “milagres” do quarteleiro da minha companhia


A metamorfose do vinho batizado com água


As histórias avulsas de guerra na Guiné que habitualmente trago à estampa no nosso blogue, sendo aliás comuns aos camaradas que viveram semelhantes situações, remetem-nos para pequenas narrações do passado mas que ainda mexem com as nossas memórias.

É certo que esta temática não tropeça na filosófica destreza da guerrilha, trata-se, sim, de uma outra peleja travada entre o silêncio de quatro paredes onde a mão do homem se encarregava em trabalhar minuciosamente o material comestível e bebível que havia chegado ao aquartelamento.

Numa manhã calorenta, como era costume numa Guiné sempre a “ferver”, e na condição de sargento dia, predispôs-me a visitar o soldado, cujo nome não recordo, que era tão-só o nosso quarteleiro que em conjunto com o vagomestre, de entre outros comparsas, administrava as “encomendas” que entretanto haviam chegado ao seu novo poiso africano.

Entrei na dita arrecadação, disse bom-dia e passei de imediato à conversa amigável com o quarteleiro que, em princípio, quase recusou a minha passagem ao interior de uma casa contínua onde estava depositava a maioria de todo o material que reabastecia a cantina dos soldados para a feitura do respetivo rancho.

Do que me fora dado observar constatei que o quarteleiro, já feito com essas andanças, lá foi desafiando algumas das teias que envolviam o seu silencioso trabalho mas sob as rígidas orientações superiores.

Ignobilmente confessou-se, em surdina, que a regra passava por desmultiplicarem-se alguns dos conteúdos, sobretudo aqueles cuja feitura original se antevia favorável a uma possível alteração. Logo, subentendi que a eventual marosca estava permanentemente em aberto.

Não vou precisar a quantidade de material propício à prática de tais “milagres”. Não interessa ao tema exposto. É passado e sem sanções a aplicar. Os “milagres” que se faziam tinham, pensa-se, outros evidentes resultados mas estes palpáveis. O bolo seria alegadamente repartido sob o tampo de uma mesa a que só tinham lugar os fiéis apóstolos da ordem que comungavam os restos sobrantes em absoluta comunhão.

Estes esquemas que roçavam a eventual filantropia restritamente individual, mas por outro lado distribuída por quem tinha o poder das coisas, apresentava-se como um bom pé de meia na contabilidade dos volúveis aventureiros onde o deve e o haver se apresentava literalmente emparelhado para que os números finais batessem certos, sendo as contas exequíveis modelos, género à merceeiro, onde o papel pardo era então transformado em folhas de “excel”.

Um dos “milagres” feitos pelo quarteleiro era a metamorfose do vinho batizado com água. Recordo, perfeitamente, como ele transformava o precioso líquidos dos deuses em vinho aguado.

O bom do homem tinha um alguidar em inox limitando-se em abrir as pipas recém chegadas mas copiosamente sob um minucioso comando de mãos e de visão. Quando o liquido chegava normalmente a meio o atinado rapaz fechava o pipo, sendo que o outro meio era “recalcado” com água vinda da Fonte da Várzea do Cabo, uma nascente onde o pessoal se reabastecia e que se situava na estrada que ligava, e liga, Gabu a Piche.

Claro que os soldados tinham sido sonegados em beber um vinho que de original pouco tinha. Mas, ao que dava para entender, a malta bebia, comia, divertia-se, sendo que os mais vivaços, reconhecendo a maldade feita, lá mandava umas “bocas” ao rapaz que, entretanto, se refastelava na sua abençoada “mansão” saboreando a refeição e bebendo vinho de primeira qualidade.

O cálculo final dos custos monetários, individual e/ou coletivo, eram contas de outros rosários. Tudo, ou quase de tudo, resvalava para dados contabilísticos que “engordavam” carteiras alheias. O bom do mancebo limitava-se a comer e beber do bom e do melhor. Ou não fosse ele o autêntico fiel de um armazém onde tudo era contabilizado ao pormenor.

Mais uma pequena história de Gabu retida na mente deste vosso velho camarada que lá vai fazendo das tripas coração visando, estritamente, o relatar de factos que ainda me enchem por completo a alma.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já tinhamos a "água de Lisboa", não podia faltar a "água do Geba"...

Zé Saúde, sem pôr a causa a "honra dos nossos quarteleiros", nem muito menos dos nossos superiores hierárquicos que mandavam nos quarteleiros, fizestes bem em recordar este episódio... É certo que não se pode "generalizar", ms esta prática (fraudulenta) era corrente na tropa e na guerra... Tínhamos muitos "taberneiros", nesse tempo...

Alguns camaradas nossos "lá se governaram", é para isso que também servem as guerras... Para mais nesse tempo... Como dizia Tomás Moore, "todo o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente"...

Havia muita "impunidade", muita "tolerância" para a corrupção militar... O que era importante, era salvar as aparências e enganar o Zé Povinho...

Valdemar Silva disse...

Zé Saúde
Interessante texto.
Mas, faz confusão esta a mistura de água no vinho ser um negócio.
Nos taberneiros normais era notório: pagavam 50 litros do Cartaxo e vendiam/rendia 70 litros.
Neste caso do 'marteleiro' da tropa seria: o vagomestre encomendava 50 litros à Manutenção e servia 70 litros à rapaziada. Como seria arranjado o lucro da 'martelada'? A não ser que pedisse 50 pesos ao Comando e só gastasse 30 pesos na compra no civil. O que não seria o caso, em Nova Lamego não havia fornecedores de civis de tintol.
E vá lá que havia a Fonte do Cabo, se não seria uma 'pomada' purgante.
Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Pedro Neves disse...

Amigo e camarada José Saúde.
Penso que os quarteleiros e afins, teriam uma "especialização", antes de partirem para o mato. Na minha C. Caç. os selos eram vendidos a 3 pesos e não a 2,50 e a cerveja era vendida mais cara. Estes aumentos eram praticados apenas aos soldados e cabos. Os graduados pagavam menos, apesar de ganharem muito mais. Daí os graduados, com exceção do furriel enfermeiro (que não alinhou( e de um Alferes e um outro Furriel, que estavam os dois de férias, participámos do Capitão e do 1º sargento. De nada valeu, todos os graduado da C.Caç 4745, foram punidos, exceto os 3 atrás mencionados, pelas razões descritas. A guerra para alguns foi uma mina.
Um Grande Abraço, de Ranger para Ranger, com as comissões na Guiné.