quarta-feira, 15 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19789: Antropologia (31): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,
É uma investigação antropológica de alto gabarito, a investigadora, filha de António Lobo Antunes, sentiu-se motivada pelas cartas de guerra que o pai escrevera à mulher e por sinais da sua obra literária que percorriam a guerra angolana.
Trata-se de um inédito ensaio sobre a memória da guerra que articula documentos oficiais, episódios pessoais e recordações partilhadas nos almoços de confraternização, é uma busca de sentido, haverá momentos dolorosos, vêm à tona episódios cruéis, choques culturais avassaladores, aquele fim do mundo podia-se medir por milhares de quilómetros, por populações deslocadas à força, era então o Leste de Angola antes de se ter quebrado o ânimo ao MPLA.
Uma investigação exemplar que devia ter paralelos na Guiné e em Moçambique. A autora dá uma razão de tomo: "No caso da memória de guerra, a dimensão pública da recordação ocupa um lugar central. É em nome das nações que as guerras são habitualmente combatidas. É a lealdade nacional que convoca todos aqueles que a ela são chamados. É aqui que se joga a possibilidade da recordação ou do esquecimento, da celebração ou do silenciamento públicos".

Um abraço do
Mário


Regressos quase perfeitos, uma obra excecional de antropologia (1)

Beja Santos

"Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015, é um documento avassalador, original, ao permitir conhecer o itinerário de antigos militares de uma companhia de Exército, desde as memórias mais remotas das suas vidas, a comissão, o regresso, os encontros anuais. É a tese de doutoramento de Maria José Lobo Antunes, durante cinco anos entrevistou dezenas de antigos militares da CART 3313, assistiu aos seus almoços anuais, pesquisou os arquivos oficiais e cruzou estas memórias com o retrato que António Lobo Antunes, médico do batalhão, deixou nas cartas de guerra que escreveu à mulher na sua obra literária.

O fulcro da questão é o trabalho da memória, a antropóloga ciranda, num sábado de junho de 2011, num restaurante de Almeirim, convive com a CART 3313 do BART 3835, pela décima primeira vez estes homens juntam-se e reveem-se durante uma tarde à volta da mesa. A estudiosa anota nomes, descreve o cerimonial do encontro onde estão mulheres e filhos, numa mesa já se fala em Mussuma, um destacamento do Leste de Angola junto à fronteira com a Zâmbia. Dois furriéis lembram episódios, muitos outros não se lembram de coisa nenhuma. Temos depois o almoço, corta-se o bolo no final, e depois começa a festa, segue-se o lanche, há um grande cartaz onde está escrito: “Somos quem fomos”. Já não há guerra colonial, Angola já não é nossa, os anos transformaram aqueles rapazolas em homens que caminham para a velhice. Como observa a investigadora, a memória do que foram sobrevive ainda, na partilha de recordações que pertencem a todos.

Maria José é filha desse alferes médico que escreveu “Os Cus de Judas”, um romance que lhe deu rapidamente notoriedade. Era uma criança quando foi com a mãe para a sede da Companhia, em Marimba, faz pois parte da geração da pós-memória e justifica-se:  
“Foi a memória emprestada da guerra (esse passado que de alguma forma também é o meu, mas do qual não me lembro) que criou vontade de ir para além daquilo que conhecia (as histórias, as fotografias, pedaços soltos de um tempo perdido no tempo). O primeiro passo do diálogo possível com a memória alheia foi dado em 2005, no momento em que a minha irmã e eu começámos a trabalhar na edição das cartas enviadas de Angola à nossa mãe. Cinco anos depois da sua morte, tinha chegado o tempo de cumprir a vontade, tantas vezes repetida, de as publicar. Em novembro de 2005, o livro foi lançado. Os antigos militares da Companhia foram convidados e houve uma camioneta que transportou os que viviam no Norte do país. Mais de três décadas após o embarque para a Angola, uma multidão de camaradas reencontrou-se no sítio de onde tinha partido para a guerra. Depois desse dia, comecei a ir aos almoços da companhia”.
Assim se abriram as portas para a sua investigação que culminou na tese de doutoramento que defendeu em 2015. E de novo justifica os seus propósitos:  
“O meu objectivo era construir uma etnografia da memória da guerra colonial que articulasse as diversas escalas em que a memória vive: as memórias pessoais, as narrativas que circulam na esfera pública e a representação oficial do conflito. Em vez de estudar esta guerra na sua imensa complexidade, a etnografia que construí propunha outro olhar, um olhar que reduzia a observação e a análise a uma pequena parte do todo: a CART 3313”.
E escreve mais adiante:  
“Subjacente a esta investigação está a constatação de que o desaparecimento do passado condena o seu conhecimento à construção de suposições impossíveis de provar. O que me interessa não é o que aconteceu, mas sim de que forma se recorda e se esquece aquilo que aconteceu. Aquilo que se recorda e se esquece não é estanque e imutável. A memória resulta de um processo complexo de negociação das condições da sua possibilidade. O tempo é, aqui, um factor fundamental. Tivesse esta investigação sido feita no ano seguinte à desmobilização da CART 3313 ou dez anos depois do 25 de Abril, os resultados seriam certamente outros. A etnografia da memória de guerra que aqui se apresenta parte, precisamente, deste contexto de evocação narrativa generalizada do passado colonial português e da guerra que o defendeu”.

E discreteia sobre o trabalho da memória nas Ciências Sociais, sobre a reconstrução do passado, a memória de guerra. E assim se inicia a viagem do BART 3835, mobilizado em julho de 1970, e daquela Companhia cuja sede de Batalhão vai ser Gago Coutinho.

O pano de fundo da educação daqueles jovens era a retórica imperial, retórica essa já bem fermentada no constitucionalismo monárquico, aquele império africano sucedia aos tempos em que o Brasil era sinónimo de múltiplas riquezas. A investigadora conversa com os militares, como eles se aperceberam da guerra, o que aprendiam na escola, que noções colhiam da pátria, dos heróis, dos valores. Os depoimentos são claros: havia o respeito, a disciplina, a ideia da grandeza do país.
Mas há que dar o seu a seu dono:  
“Nos anos 1960, a educação era um luxo a que nem todos podiam aceder. Seis dos 31 entrevistados não chegaram a cumprir o ensino obrigatório e saíram no final da 3.ª classe. As razões foram as mesmas: residentes em freguesias rurais do Norte do país, provenientes de famílias com poucos recursos económicos, foram forçados a contribuir com o seu trabalho para a frágil economia familiar. Veja-se o caso de José Gomes, nascido numa aldeia no concelho de Sátão, em Viseu. A mãe, filha de pai incógnito, engravidou do patrão da casa onde servia. José Gomes cresceu longe da mãe, também ele filho de pai incógnito, entregue aos cuidados da avó e dos tios-avós. Quando tinha quatro anos, a mãe engravidou de novo patrão. O caixão branco do irmão que morreu pouco depois de nascer é uma das suas recordações mais antigas. Ainda criança, começou a guardar o gado da família. A entrada na escola foi mais um peso na sua vida, a acrescentar ao trabalho que já fazia na agricultura”.

Um contexto de pobreza em grande angular, nas memórias de todos os que concluíram a escola primária e começaram a trabalhar ainda crianças, o trabalho na agricultura ou aprendizagem no ofício fazia parte da ordem natural da vida. A autora faz um esboço histórico da vida do Estado Novo e das decisões de Salazar, nomeadamente a partir de 1961, como aqueles rapazes começam a presenciar partidas e regressos, mobilizações, ofertas em dinheiro e alimentos para quem partia, atiçou-se o fervor nacionalista a partir dos primeiros embarques de tropas para Angola. Mas a guerra era um mundo distante a que só acediam homens feitos. Aqueles rapazolas não podiam prever que o conflito se prolongasse por longos anos. Abriram-se novas frentes, a guerra instalou-se na rotina nacional das partidas e chegadas de contingentes militares. São tempos também de emigração, irá crescendo a falta de comparência às juntas de recrutamento. E um dia aqueles jovens partem para a tropa, abriram-se oportunidades, caso daquele pastor que se tornou condutor militar. Estamos em 1970, um momento crítico para as Forças Armadas, é tempo de um envio médio de 105 mil homens para Angola, Guiné e Moçambique, reduz-se o número de candidatos à Academia Militar, recrutas e especialidades tornam-se numa fábrica gigantesca. Onde, no passado, para ser aspirante a oficial miliciano era imperativo a frequência de um curso universitário passa somente a ser exigido o 7.º ano completo ou até dar provas de competência no curso para sargentos milicianos.
Vai começar a vida da CART 3313.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19763: Antropologia (30): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

Maria José Lobo Antunes escreveu:

"Nos anos 1960, a educação era um luxo a que nem todos podiam aceder. Seis dos 31 entrevistados não chegaram a cumprir o ensino obrigatório e saíram no final da 3.ª classe. As razões foram as mesmas: residentes em freguesias rurais do Norte do país, provenientes de famílias com poucos recursos económicos, foram forçados a contribuir com o seu trabalho para a frágil economia familiar. (...)"

Pode não ter sido neccessariamente assim. Não é por acaso que muitos militares que passaram pelas nossas fileiras não tinham mais do que a 3.ª classe. Até por volta de 1970, ou perto disso, as aldeias mais recônditas da então Metrópole não tinham escola primária, mas sim um "posto escolar", onde eram ensinadas as três primeiras classes do Ensino Primário apenas. No posto escolar, as aulas eram ministradas por uma docente, chamada "regente escolar", que não era professora primária, pois só tinha a 4.ª classe! Repito: a docente só tinha a 4.ª classe! Quem viveu em cidades e vilas pode não ter tido conhecimento desta realidade, mas quem viveu em meios rurais talvez se lembre de que era assim que acontecia.

Em Angola passava-se uma situação em tudo idêntica, em que os postos escolares das aldeias do mato eram chamados "escolas rurais" e em que o "professor" (nunca lhe ouvi chamar outro nome, senão professor) também só tinha a 4.ª classe. Não se pense, contudo, que o ensino ministrado nas escolas rurais angolanas era fácil. Era mesmo muito exigente. Como exemplo, mostro a seguir quatro textos extraídos do livro de leitura da 2.ª classe chamado "Já Sei Ler!" e publicado pela Livraria Lello de Luanda em 1968: As vacinas, O jogo dos números, O Fernando foi a Luanda, Um bom conselho.

Este e outros livros das antigas colónias portuguesas estão disponíveis num site chamado Memórias de África.

No que diz respeito à Guiné, está disponível no mesmo site, por exemplo, o livro de leitura da 1.ª classe, editado pelo Governo da Província da Guiné em 1972, intitulado O meu primeiro livro de leitura, e os números todos, ou quase, do Boletm Cultural da Guiné Portuguesa.


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.Caç. 3535 do B.Caç. 3880, Angola 1972-74