sexta-feira, 21 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22216: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (53): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
A curiosidade de Annette galga os marcos cronológicos da comissão de Paulo entre os anos de 1968 a 1970, naqueles pontos do Leste da Guiné. Quer saber mais, empolgou-se com as histórias da avó Ângela, quer mesmo conhecer episódios referentes à mãe e à madrinha de Paulo, é permanente o entusiasmo com que este fala de tais mulheres que o prepararam para a vida. Tem agora as cartas para conhecer a região de Bambadinca, mormente o Cuor, e o Xime, a que Paulo vai estar ligado até agosto de 1970. Annette questiona-o muito, às vezes é uma autêntica verruma, obriga-o a saltar para o passado, ele não se impacienta nem diz que não, se a começou a amar quando ela se prontificou a pôr ordem em toda a sua presença na Guiné, agora que a ternura entre eles se enquistou avança-se para o passado remoto, até porque ela conhece na perfeição as suas atividades na Bélgica. Há dias ao telefone ele comunicou-lhe que se conhecem há três anos, parece que foi ontem, e um tanto malicioso ele indicou-lhe a data em que pela primeira vez estacionou na Rua do Eclipse, "foste tu que exigiste que eu não voltasse ao hotel, acedi prontamente, havia pólvora, o rastilho foi curto, a chama explodiu, e aqui estamos, fascinados pelo que a sorte nos bafejou".

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (53): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette mon trésor, nunca deixas de me surpreender com a avalanche e o surpreendente dos pedidos. Digo surpreendente na medida em que me questionas sobre pessoas e situações que nada têm a ver com o escopo do teu trabalho, a minha presença na Guiné, entre 1968 e 1970. Estávamos ao telefone e falei-te nas minhas três madres fundadoras, comecei pela minha avó Ângela, foi determinante nos meus primeiros anos de vida, tenho 11 anos quando um AVC lhe subtraiu todos os sonhos e a imobilizou, passou a viver entre um cadeirão e a cama, só muito mais tarde é que apareceu uma cadeira-de-rodas e então passeávamos nas redondezas, virá a falecer quando eu tenho 19 anos. Pediste uma fotografia, ela aqui vai, olha bem para este semblante triste, mantê-lo-á toda a vida, a despeito de ser muito carinhosa, solícita e comunicativa. Notei a tua admiração quando te contei a história do casamento, era uma jovem adolescente, os pais anteviram um futuro muito promissor para aquela filha a quem eles mais não poderiam dar que um destino de pequena agricultora numa aldeia ao pé de Tomar. A avó Ângela nem discutiu a decisão dos pais, só exigiu levar as suas bonecas e os seus dois irmãos, será uma relação fraterna excecional que os unirá, ela a mais velha irá ver os seus dois irmãos falecer precocemente.

E pedias igualmente uma fotografia de antes da Guiné, mando-te esta, foi tirada quando me promoveram a aspirante oficial miliciano, aí tens o menino e moço que dentro em breve embarcará com o destino de Ponta Delgada. Neste mesmo barco regressarei da Guiné, em agosto de 1970, chamava-se Carvalho Araújo, pertencia ao lote de barcos alemães apresados pelas autoridades portuguesas em 1916.

E fizeste novo pedido singular, uma imagem com gente da Associação Europeia de Consumidores, as tais reuniões que algumas vezes me levam a Bruxelas e à alegria de estar contigo, seja na Rua do Eclipse seja noutras paragens. Introduzo um elemento novo, julgo que para ti terá alguma utilidade ver as cartas geográficas das regiões onde vivi e mesmo onde combati, começo pelas cartas geográficas de Bambadinca e do Xime, são aquelas que particularmente mais te interessam. Muito há a dizer sobre este mapeamento. Tu já ouviste falar em regiões libertadas pela guerrilha, há para ali muito slogan propagandístico, lembra-te do Cuor, por onde eu me passeava razoavelmente por cerca de três quartos do regulado, a despeito de haver terra de ninguém, e se não me afoitava a avançar em territórios lavrados e onde habitava população civil e o exército popular estava presente era um ditame da prudência, lembra-te daquele acidente em que o Paulo Semedo se sinistrou com uma granada de dilagrama na região do Chicri, foi o cabo dos trabalhos, as transmissões não funcionavam, o maqueiro mais não podia fazer que pensar aquele corpo devastado por estilhaços, foi uma longa e penosa retirada, e muito desmoraliza termos um ferido em estado grave que não se pode evacuar com rapidez. Quanto ao Xime, falaremos mais adiante, estamos agora no período de novembro a dezembro de 1969, começaram a surgir informações que o PAIGC tendia a aproximar-se de Bambadinca fazendo pressão nos regulados fiéis aos portugueses, Cossé e Badora. As diferentes etnias que habitavam os Nhabijões estavam sujeitas ao duplo controlo, depois de eu regressar chegaram mesmo a pôr minas na estrada que ligava os reordenamentos a Bambadinca, vinham de noite e faziam exigências, queriam comida e tabaco, não se podia negar com medo das represálias, as famílias viviam divididas entre o lado português e a guerrilha. Para garantir a segurança de Bambadinca criou-se um arremedo de destacamento na ponte de Undunduma, procurou-se um ponto altaneiro com mais visibilidade a toda a volta, dormíamos nuns buracos com camas e mosquiteiros, maior desconforto não podia haver, quando nos batia à porta este tipo de suplício, procurávamos melhorar as fieiras de arame farpado e manter os abrigos limpos.

Tens aí a minha correspondência para vários destinatários com o nosso dia-a-dia sem parança. Eu começara a cismar com aquela história do patrulhamento à volta da pista de aviação, o corpo e a mente deram de si na noite de 2 de dezembro. Tínhamos andado ali às voltas, não tinha ilusões de que eramos perfeitos alvos em movimento, caminhámos para a estrada que leva exatamente para o rio de Undunduma, para fazer um alto, seriam aí duas da madrugada. E vou escrever que senti tremuras, um suor frio, um formigueiro nos lábios, um peso na caixa torácica, não sei a proveniência destas manifestações, jantei ligeiro, nunca bebo mais de dois copos de vinho, não sei se o que sinto é náusea, tudo se tolda à minha frente, caio redondo no chão, oiço vozes de dois soldados possantes, Tunca Sanhá e Nhaga Macque, que me soerguem e me levam a cambalear até ao quartel. Sinto que durmo e acordo com sobressaltos, de manhã cedo vou à enfermaria e descubro que tenho a tensão elevada. Falei com o médico, de nome Vidal Saraiva, auscultou-me, olhou-me bem e disse-me que eu estava a ter manifestações de cansaço extremo, que não me preocupasse, iria informar o comandante que precisava de dois dias inteiros na cama. Tento explicar a este excelente camarada como passo os dias, ele atalhou a conversa, sabe muito bem que o nome pomposo de intervenção significa reforços, escoltas, emboscadas, patrulhas, há mesmo uma intervenção que lembra uma variante de Polícia Militar junto das populações civis que são visitadas pelos guerrilheiros. Disse para não me preocupar, e ali estava a olhar para o teto quando entrou o major de operações para me dizer que está a preparar uma operação no Xime e que conta comigo, que eu esteja tranquilo, a data ainda não está marcada.

Junto outra carta em que me ocorreu contar o que era comandar uma coluna ao Xitole, era uma completa novidade para mim, mas não desgostei da experiência. Acho que deves tomar isso em consideração, mais adiante mando-te imagens, toda aquela imensa estrada que liga Bambadinca ao Xitole é orlada de mata frondosa, mas não esconde apreensão por aqueles quilómetros de capim alto que são intimidantes, dali pode partir uma emboscada, e aquela coluna é um somatório de dezenas de viaturas civis e militares, na testa vai uma GMC e uma autometralhadora, os Unimog seguem intercalados com as viaturas civis, imagine-se o pandemónio que seria rebentar ali uma emboscada, na frente, no meio ou na retaguarda. Verás pelas imagens a espetacularidade daquele mundo vegetal, passamos pela última tabanca fiel aos portugueses, Samba Juli, depois são rios, pontões e cerca de três horas depois atravessa-se o rio Corubal, passa-se por uma tabanca que já não existe que dava pelo nome de Portugal, chega-se ao Xitole, uma importante população, onde no passado devia haver algumas representações comerciais, no meio de uma enorme algazarra descarrega-se toda aquela mercadoria, já se amontoam na berma sacos enormes, é uma operação que decorre em tempo recorde este descarregar e carregar de novo, e se viermos numa nuvem de pó empoeirados como fantasmas desenterrados vamos regressar, são montada seguranças pelo caminho, é lícito que nos apressemos para não darmos meios a que a guerrilha reaja, e pelas cinco da tarde esta imensa coluna de viaturas detém-se no mesmo sítio de onde partiu, entre as duas portas-de-armas do quartel de Bambadinca. Os transportadores das viaturas civis despedem-se, correu tudo muito bem, as viaturas militares regressam aos estacionamentos, recolhem-se as armas e munições. E quando me preparava para remover aqueles quilos de pó de laterite acumulada entre o cabelo e os pés, o mesmo major de operações que prometia não me inquietar nos próximos dias ordenava um patrulhamento para a manhã seguinte, exatamente para a região de Badora, onde grupos de guerrilha revelavam a sua presença ameaçadora.

Adorada Annette, aqui tens apontamentos até à primeira semana de dezembro, deixo agora as boas notícias para o fim. Mandaste-me datas das tuas disponibilidades em junho, vou imediatamente comprar a passagem de avião. Haverá, como te recordas, um dia de permeio das férias em que reunirei com a Direção da Associação Europeia. E a última boa notícia é que volto a Bruxelas no fim do mês de junho para a tal conferência sobre a presença portuguesa na Bélgica, estou a organizar a papelada, mas já disse que sim ao Noël Molisse, o organizador destas conferências. É viagem meteórica, não te esqueças que é período de exames e tenho a pesada responsabilidade junto da Comissão Europeia com a organização do Concurso Europeu do Jovem Consumidor. Comme toujours, bien à toi, des souvenirs interminables, Paulo.

(continua)
Annette, compreendo perfeitamente a tua curiosidade quanto ao casamento da minha avó Ângela. O marido pôs anúncio no jornal, um tio da minha avó leu-o lá em casa, o pai da minha avó mandou fotografia da criança, o Sr. António Joaquim da Costa, a viver em Lucala, respondeu a dizer que casava com a menina, de 14 anos. Confrontada com os ditames da família, a avó Ângela fez duas exigências, mesmo indiferente à fotografia do Sr. Costa, que acompanhava o pedido de casamento: queria levar todas as suas bonecas e os muito amados irmãos. Ei-la já casada, o rosto espelha a tristeza que sempre lhe conheci, emoldurada pelos irmãos, ele adolescente pernalta, ela uma menina muito enfiada, os seus nomes eram José e Lucília, serão companheiros inestimáveis, terão negócios com o Sr. Costa em N’Dalatando (Vila Salazar), Malanje e Lucala

Annette, que pedido o teu, uma imagem de alguém que acaba de sair de Mafra e vai para Ponta Delgada, a fotografia era obrigatória, o aspirante oficial miliciano tem cartão militar, passa a constar das repartições, é obrigatória a identificação. Ei-lo, um tanto hirto, pronto para ganhar o futuro, estamos em setembro de 1967, não sei se encontrarás qualquer afinidade pelo tal senhor que tu dizes, quase 35 anos depois da fotografia, que é a Estrela Polar da tua vida
Annette, pediste-me imagens das nossas reuniões ao nível da Associação Europeia de Consumidores. Encontrei estas duas que têm a data de 20 de dezembro de 1999, eu era mais ou menos assim quando te conheci. E, curiosamente, num espaço um tanto idêntico àquele em que nos vimos pela primeira vez, uma pequena sala de um edifício da Comissão na Rue Froissart, tinha sido agendada uma reunião com o comissário David Byrne, que tutelava a Saúde e os Consumidores, solicitámos que nos dispensassem a sala duas horas antes, a Direção reuniu, ali podes ver os meus colegas italianos, espanhol, franceses, belga, luxemburguês e sueco, na fotografia de baixo já estamos a reunir com David Byrne, que tem o dossiê entre mãos, finda a reunião, mudámos de poiso e fomos para a Rue du Commerce, muito trabalho até ao anoitecer, estava aprovado o nosso programa de atividades para os três anos seguintes, infelizmente tudo correu mal, como tu bem sabes
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22200: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (52): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

O senhor António Joaquim da Costa ao estabelecer-se em Lucala, devia ter uma vida bastante próspera, pois esta terra era servida por Caminho de ferro que ligava Luanda a Malange, sendo que o primeiro troço construido inicialmente foi entre Luanda e Lucala isto por volta de 1900.

Lucala, que era também o nome de rio que formavam as celebres quedas do Duque de Bragança, era tambem uma bifurcação de estradas rodoviárias que vindo de Luanda bifurcavam para leste para Malange e Lunda, e para norte ia para Uige e congo em geral.

Aquela região produzia muito sisal e café e tudo o que se plantasse, era tão fértil que havia grandes fazendas lindíssimas antigas de brancos, (alguns alemães), talvez mais concorrida pela ligação ferroviária.

Quando em 1961 se dá em 15 de Março de 1961 o célebre terrorismo contra tudo o que é branco ou filho de branco, esta região era como que o limite onde começava o terrorismo, a norte, e sem guerra qualquer, (mas nunca fiando) a sul.

Claro que Lucala, para qualquer jovem que saísse mesmo de uma qualquer escondida aldeia aqui da metrópole, era um horrivel cu-de-judas, mesmo nos anos 60.