1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2019:
Queridos amigos,
Alguns anos atrás, parti de Salerno só para ter um cheirinho de Nápoles. Era dia de sol escaldante, chocou ver aquelas toneladas de lixo que parece que deixam indiferentes os napolitanos.
Com tempo limitado e um calor sem tréguas, escolheu-se a Nápoles influenciada pelos tempos greco-romanos, nada de museus nem de andar a cirandar pela baía, mas deu para perceber que é uma das cidades mais belas do mundo, com acervo arquitetónico e um património artístico incomparáveis. E andou-se em ruminação, já se conhecia Pompeia e Pastum, havia que conhecer Herculano, voltar a Amalfi, subir até Ravello, visitar o Palácio Real de Caserta, uma imitação colossal de Versalhes com 1200 quartos, entre outros destinos.
Teve-se muitíssima sorte com o tempo, nada de calor fervente, um cálido tempo outonal. Então, e já com umas lambuzadelas tiradas de vários guias, começou a incursão, para não variar entrou-se na Nápoles greco-romana e confessa-se que foi tão empolgante que se voltaria sem rebuço amanhã mesmo, a despeito do lixo e de um trânsito caótico sem igual.
Um abraço do
Mário
Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (1)
Beja Santos
Se em Itália é difícil encontrar um metro quadrado sem a presença da Antiguidade, Nápoles é um território luxuriante de sucessivos processos civilizacionais: na Magna Grécia chamou-se Neapolis, a cidade nova, ainda há vestígios desta Nápoles greco-romana; foi parte do Império Bizantino, parte do Reino Normando da Sicília, pertenceu à Casa de Anjou, teve rei de Aragão, foi colónia de Espanha, voltou a mudar de mãos com o rei Bourbon Carlos III, foi possessão napoleónica e em 1860, já com um novo governo Bourbon, Garibaldi chegou a Nápoles e nesse mesmo ano Nápoles passou a fazer parte do novo Reino de Itália. Conheceu um profundo declínio, os viajantes do Grand Tour deram a conhecer este mundo antigo deificado pelo romantismo. A Nápoles atual é o somatório de todas essas parcelas e não se pode percorrer as suas ruas e visitar os seus monumentos sem ter em linha de conta as sucessivas camadas. Aqui bem perto, a erupção do Vesúvio atulhou com nuvens de poeira Pompeia e Herculano.
É uma cidade brindada por uma espaçosa baía, um espinhaço montanhoso parece formar um balcão e estender-se por um promontório que vai até Salerno. São panoramas que nos fazem cortar a respiração, os da costa amalfitana e a uma certa distância erguem-se Ischia e Capri. É nas velhas ruas de uma Nápoles monumental que se vai andarilhar, logo no primeiro dia. Não se mostra, mas é uma cidade que fervilha de lixo, toneladas de lixo que se derramam à volta dos ecopontos e dos baldes, por vezes com odor fétido, situação incompreensível pois choca com o fervilhar desta cidade que possui um património inaudito, desde o mundo antigo à atualidade.
Um sinal da presença espanhola, estamos no tempo do vice-rei de Espanha, D. Pedro de Toledo, o planeador da cidade, um urbanismo em expansão que saltou as muralhas, constroem-se palácios, as tropas estão aquarteladas no Quartieri Spagnoli. Nápoles é então a maior cidade da Itália. O domínio espanhol só acabará em 1707, com o Tratado de Utreque, Nápoles será cedida à Áustria.
Impossível ficar insensível aos meandros destas ruas longilíneas, correspondentes às três principais vias da Nápoles greco-romana, andarilha-se por becos, ruelas e impasses para fugir a um trânsito caótico de motoretas e carros, há nichos que nos lembram as nossas alminhas, sempre com velas acesas, espreita-se para os interiores, sempre uma pomposidade discreta. O viandante tem à sua mercê um fartote de edifícios históricos, igrejas e museus, é uma atmosfera de outubro muito agradável, é muitíssimo bom este deambular sem a pressão do cronómetro. Entra-se num café para mordiscar um bolo tradicional de Nápoles, a babá, mete-se conversa com um autóctone, deve ser alguém que gosta do mundo subterrâneo, fala longamente sobre a Nápoles subterrânea, a cidade está cheia de catacumbas, aquedutos, grutas, algumas funcionaram como abrigo durante os bombardeamentos da II Guerra Mundial. E despedem-se falando de Kaputt, de Curzio Malaparte, a obra-prima termina em Nápoles, nesses tempos de bombardeamento, em 1943. Segue-se trajeto e dá-se de frente com Pio Monte della Misericordia, estamos em plena Via dei Tribunali. Que há de notável? O Pio Monte é um género de Misericórdia, foi fundado para ajudar os pobres e os doentes e para libertar os escravos cristãos do Império Otomano. No seu interior está um retábulo extraordinário, os Sete Actos de Misericórdia, uma tela prodigiosa de Caravaggio. O viandante gosta de boa publicidade e não resistiu a fotografar o convite e depois, em todo o seu esplendor, o claro-escuro de Caravaggio.
Continua o enamoramento até se chegar à catedral, Il Duomo, construção iniciada em finais do século XIII no tempo de Carlos I de Anjou. Sabemos bem que todas estas belezas arquitetónicas vão tendo alterações ao longo dos séculos. Tudo aliás começara com uma basílica paleocristã alterada pelos Angevinos, possui linda fachada marmoreada, é um dos templos de maior devoção em Itália. Por ali vai andar placidamente o viandante, visitará a Cappella di San Gennaro; encontra-se um relicário do santo em trabalho gótico, ouro maciço, no Museu do Tesouro, ali ao lado.
A singularidade do templo deve-se ao facto do esplendor não estar todo ele concentrado nas naves nem no altar. Há a Capela de São Januário, como já se referiu. Mas há também Santa Restituta, a visita é indispensável, está aqui a estrutura da basílica paleocristã alterada pelos Anjou, com uma decoração que foi reposta em finais do século XVII. Por ora vamos deambular. Quem aqui vier, não perca o batistério, o mais antigo do mundo ocidental. Os estilos embrincam-se, ressalta o barroco, a profusão de colunas antigas, há uma capela com estrutura e decoração gótica original, veja-se o chão de mosaicos.
Fiquemos por aqui. De seguida, vamos até Santa Restituta, é bem merecedora da nossa contemplação, volta-se à rua para ver o resto do teatro romano, entra-se numa galeria de nome Príncipe de Nápoles, já deve ter conhecido dias melhores, o viandante hesita entre visitar de barriga a bater horas um dos museus arqueológicos de maior valor ou então comer uma pasta fresca e deambular sem destino. Ganha o estômago e o prazer da mesa. Alguém escreveu que depois de ver Nápoles já se podia morrer, ao viandante não parece destino sublime, aqui a gastronomia é fina e há muitíssimo mais para ver antes de pensar viajar até às estrelinhas.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 18 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20869: Os nossos seres, saberes e lazeres (386): Uma memorável visita ao mundo albicastrense (3) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário