segunda-feira, 3 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22167: Notas de leitura (1354): "Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso; Caleidoscópio, 2020 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
A investigação de José Matos e Luís Barroso deve ser tratada como um acontecimento. Habituados que temos estado a ver repetidas litanias em que uns livros copiam os outros e nada de ir aos arquivos e trazer novos factos documentais, ficamos agora a saber que o Exercício ALCORA se prontificava a disponibilizar 6 milhões de contos para comprar armamento e equipamento dado como crucial para a continuação da guerra. Ficam aqui testemunhadas as conversações com países fornecedores e como Kissinger recorreu a um expediente para nos fornecer mísseis terra-ar compatíveis com o Strela; procede-se a um rigoroso inventário do que se pretendia comprar desde a Força Aérea ao Exército, isto quando em simultâneo havia contatos secretos, seja para beliscar o ditador de Conacri, seja para um cessar-fogo na Guiné, seja autorizando novas conversações com o Senegal, enquanto na frente interna se mantinha a intransigência do discurso e Caetano dizia a Santos e Castro que era urgente preparar Angola para uma autodeterminação controlada por brancos. O que comprova que ainda há muito a investigar no sentido de se clarificar se as atividades governamentais tinham atingido a esquizofrenia ou havia uma estratégia subtilmente montada à escala governamental, de que os ultras do Regime eram totalmente desconhecedores. Se assim fosse, resta saber o pandemónio que se avizinhava.

Um abraço do
Mário


O Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné (2)

Mário Beja Santos

José Matos

"Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso, Caleidoscópio, 2020, é uma das obras historiográficas mais importantes para a compreensão da guerra da Guiné de publicação recente, diria mesmo de leitura obrigatória.
Basta atender ao que os autores propõem na contracapa:
“O objetivo deste livro é estabelecer a ligação entre o esforço de guerra de Portugal na Guiné e o apoio financeiro que a África do Sul disponibilizou a Portugal no início de 1974, no âmbito do estabelecimento de uma aliança militar entre Portugal, Rodésia e África do Sul, com o nome de código ‘Exercício ALCORA’. No texto anterior houve a preocupação de registar o contexto internacional que serviu de moldura para a nossa guerra colonial, quem eram os nossos aliados e fornecedores, passou-se em revista o agravamento da guerra na Guiné e o imperativo, em múltiplos domínios, de se proceder a reequipamento e a rearmamento. A questão da modernização da Força Aérea era assunto por demais premente: esta, além de desempenhar missões ofensivas, era crucial no apoio logístico, no transporte aéreo de tropas, na evacuação de feridos e nas missões de reconhecimento pela observação visual ou cobertura fotográfica. Atendendo à extensão dos territórios, exigia-se um efetivo considerável, na fase final da guerra ascendia a cerca de 700 aeronaves e cerca de 600 pilotos. No entanto cerca de 70% das aeronaves estavam tecnicamente ultrapassadas e muito usadas e havia uma falta crónica de pilotos-aviadores. Como os autores sublinham, “Além do problema da obsolescência e da falta de pilotos, era uma frota que só podia ser utilizada num ambiente com uma reação antiaérea fraca ou muito fraca, pois, no geral, os aviões portugueses eram lentos, sendo a única exceção o Fiat G.91. Além do mais, devido ao tipo de armamento que usavam e às missões que desempenhavam as aeronaves tinham que voar a média ou a baixa altitude, o que as tornava vulneráveis ao fogo antiaéreo”. E surgem os mísseis terra-ar que podiam ser facilmente disseminados por todo o território. Os planos de modernização vinham de longe, mas a partir de 1973 era uma questão de vida ou de morte. “A intenção do governo era comprar caças Mirage III para substituir os Fiat G.91, além de aviões CASA C-212 Aviocar e Reims-Cessna FTB-337G Milirôle para renovar a aviação de transporte, reconhecimento e apoio de fogo ligeiro. Estava também prevista a compra de várias dezenas de helicópteros Alouette III para reforçar a frota já existente. Neste lote de aquisições, os caças Mirage eram os aviões mais importantes, pois dariam à Força Aérea uma maior capacidade de ataque e de retaliação perante os movimentos de guerrilha”.

Os autores dão conta das diligências da aquisição de novos jatos FIAT, dos planos da Força Aérea para todo este reapetrechamento e as dificuldades encontradas, recorde-se que a França, o fornecedor dos Mirage, exigiam garantias de que estas aeronaves entrariam em operações em território senegalês. É esclarecedora a exposição que fazem sobre o Milirôle, o Aviocar, os helicópteros Alouette III e Puma SA-330. Todas estas compras eram consideradas urgentes, acompanham a vertigem de conversações ultra sigilosas no período que antecede o final da guerra. Também os autores nos dão no capítulo A Psicose dos MIG, a preocupação de Spínola em poder dispor de armamento dissuasor dos MIG-17, em Conacri. O Daily Telegraph de 2 de agosto de 1973 dava conta que o PAIGC estava a treinar pilotos na União Soviética para usar aviões MIG a partir da Guiné Conacri, as informações da DGS também eram altamente inquietantes embora fizesse constar que o PAIGC não iria usar meios aéreos. Há também o relato das incursões de MIG na Guiné, e mais tarde veio-se a perceber que os MIG em Conacri estavam praticamente inoperantes, os técnicos cubanos revelavam-se atónitos com a incompetência dos pilotos de Conacri.

E passamos para a questão do míssil Crotale que era dado como indispensável para a defesa de Bissau, os autores recordam a questão dos radares de defesa antiaérea e da urgência de novas compras: obuses de 155 mm, morteiros de 120 mm e de 81 mm, operações de aquisição que estavam em curso quando se deu o 25 de Abril. Eram contratos com os israelitas assinados em 1 de março de 1974. “Em relação aos lança-granadas-foguete, é decidido fazer uma encomenda à firma de Explosivos da Trafaria, que passa a produzir uma cópia do RPG-2 soviético. O Ministério da Defesa decide encomendar no estrangeiro 25 unidades de RPG-7 com cinco mil munições. Um outro tipo de equipamento que começa também a ser testado pelas forças portuguesas são os aparelhos de visão noturna por intensificação luminosa. Em maio de 1974, é autorizada a compra de aparelhos de pontaria para armas ligeiras destinados a serem instalados na espingarda G-3, além de aparelhos para armas pesadas e de aparelhos de observação de médio alcance a montar em tripé”.

Luís Barroso

Não menos importante é o capítulo que os autores dedicam ao armamento que se pretendia dos norte-americanos. O Embaixador Hall Themido descreveu os contatos estabelecidos para adquirir mísseis terra-ar portáteis, o Redeye, que podia ser disparado a partir do ombro de um homem, tal como o Strela. Mas havia o embargo de armas, Washington não podia vender diretamente a Portugal. Caetano usa o único trunfo que tinha disponível: a Base das Lajes. Aquando da guerra do Yom Kippur, em outubro de 1973, Nixon enviara um verdadeiro Ultimatum a Caetano, não ceder a Base das Lajes acarretaria graves consequências nas relações luso-americanas. “A intenção portuguesa era comprar os famosos mísseis portáteis Redeye, o qual seria depois complementado com os meios antiaéreos e aeronaves Mirage a adquirir da França”. Kissinger encontrou uma porta de saída para a venda destas armas. Num encontro havido em 9 de dezembro de 1973, em Bruxelas, com Rui Patrício, este declarou ao secretário de Estado norte-americano que a situação militar na Guiné podia tornar-se crítica com a utilização de aviação por parte do inimigo e que poderia mesmo evoluir para ataques aéreos contra Bissau, não tendo as forças portuguesas meios eficazes para se defenderem deste tipo de ataques. Ora a porta de saída encontrada por Kissinger era fornecer os mísseis por Israel através de um intermediário alemão. “O número de mísseis encomendado mostra que os Redeye não se destinavam apenas à Guiné, onde as forças portuguesas necessitavam de cerca de 200 mísseis, mas também a outros pontos das colónias portuguesas. Os mísseis custariam 209 mil contos, não havendo qualquer informação de que este valor seria coberto pelo empréstimo sul-africano. Mas os norte-americanos não davam ponte sem nó, havia também a oferta de uma central nuclear que depois do 25 de Abril não voltaria a ser mencionada em futuras negociações do Acordo das Lajes".

O derradeiro capítulo do trabalho de José Matos e Luís Barroso versa os contactos secretos no fim do regime: o encontro em março com a delegação do PAIGC em Londres, a série de contatos secretos desenvolvidos por Marcello Caetano em Paris, em abril de 1974, de forma a conseguir com a ajuda dos Serviços Secretos Franceses encontros com as fações mais moderadas dos movimentos de libertação para negociar a independência ou autodeterminação das colónias portuguesas. Pedro Feytor Pintor confirma o móbil destes encontros. Os autores não mencionam outras diligências como as promovidas por Jorge Jardim, alguns encontros em Roma, e temos como certo e seguro o propósito de um reduto branco sonhado por Marcello Caetano para Angola e transmitido no início do ano a Santos e Castro.

Enfim, os autores equacionam como o regime de Caetano procurava desesperadamente reforçar a capacidade militar das forças portuguesas, apoiava operações portuguesas contra a Guiné Conacri, eram autorizados na Guiné contatos com o Senegal retomando uma iniciativa política do tempo de Spínola e, como se procurasse ultrapassar a pressão do tempo, fazia constar internamente que o Ultramar seria defendido por todos os meios. “Marcello Caetano precisava principalmente de tempo para levar a cabo as reformas que tinha em mente, mas, para isso, precisava de continuar a combater as guerrilhas e, sobretudo, evitar o colapso militar na Guiné, o que exigia novos meios de combate, que só seriam possíveis com a ajuda de Pretória. É interessante verificar a este nível as listas de material enviadas às autoridades sul-africanas, que mostravam bem as necessidades das tropas portuguesas em Angola e Moçambique, que iam desde armamento até sacos-cama e até arcas-frigoríficas. No entanto, os problemas não se limitavam apenas ao campo material. Um relatório da 3.ª Repartição do Comando Territorial Independente da Guiné, elaborado já depois do 25 de Abril, dava conta de outras dificuldades: falta de quadros experientes no comando e na conduta das operações, deficiente instrução prestada às tropas por graduados inexperientes e desinteressados e falta de motivação ideológica para defender um território que na ideologia oficial do regime era português. Tudo isto degradava o moral das tropas e fazia antever novos desaires para as forças portuguesas".

Como se pode verificar, temos aqui uma investigação com ida aos arquivos e a repescagem de documentos novos que alteram o conhecimento que detínhamos sobre tudo o que se passou ao nível dos empréstimos do Exercício ALCORA e como eles seriam aplicados para suster o ímpeto da guerra. Uma obra de consulta obrigatória, a partir de agora.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22141: Notas de leitura (1353): "Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso; Caleidoscópio, 2020 (1) (Mário Beja Santos)

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