segunda-feira, 26 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22141: Notas de leitura (1353): "Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso; Caleidoscópio, 2020 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2021:

Queridos amigos,

Um grande ensaio historiográfico, amassado com factos documentais que estavam encerrados nos arquivos, parecia que ninguém dava por eles. O Exercício ALCORA estendeu-se à Guiné, inopinadamente, Pretória conhecedora do que se estava a passar na Guiné emprestou ao governo português cerca de 6 milhões de contos. É um tempo de contradições e paradoxos. Há conversações secretas para cessar-fogo e autodeterminação da Guiné, e para independências dirigidas por brancos em Angola e Moçambique, diligências de que existem provas irrefutáveis; em simultâneo, anda-se numa correria para reapetrechar a Guiné com equipamento anti-míssel, aviões que pudessem enfrentar os MIG, compras de morteiros 120 mm, uma enormidade de minas anticarro, e muito mais.
 
Faltam investigações para saber da genuinidade de todos estes contactos secretos ou se de facto o regime atingira o mais alto grau de esquizofrenia. O trabalho de José Matos e Luís Barroso responde cabalmente à satisfação de quem procura compreender o frenesim deste fim de Regime, se se tratava exclusivamente de um compasso de espera a supor que o poder negocial aumentava e que os movimentos de libertação viriam sujeitos a cedências para haver negociações que salvassem a face a Marcello Caetano, isto no exato momento em que Spínola escrevera um livro que dera propulsão ao movimento dos capitães. O mínimo que se pode dizer é que a História por vezes se faz de derrisão.

Um abraço do
Mário



O Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné (1)

Mário Beja Santos

José Matos

"Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso, Caleidoscópio, 2020, é uma das obras historiográficas mais importantes para a compreensão da guerra da Guiné de publicação recente, diria mesmo de leitura obrigatória. Basta atender ao que os autores propõem na contracapa: 

“O objetivo deste livro é estabelecer a ligação entre o esforço de guerra de Portugal na Guiné e o apoio financeiro que a África do Sul disponibilizou a Portugal no início de 1974, no âmbito do estabelecimento de uma aliança militar entre Portugal, Rodésia e África do Sul, com o nome de código ‘Exercício ALCORA’. O apoio da África do Sul no esforço militar português em Angola inicia-se em meados de 1967, através da execução da Operação Bombaím para garantir apoio aéreo às operações conduzidas no leste e sudeste de Angola. O resultado da Operação foi mais modesto do que o esperado, originando a apresentação do plano de defesa para a África Austral, sob a direção estratégica de Pretória, viria a originar o Exercício ALCORA, em outubro de 1970. O objetivo de Pretória era garantir a sua primazia na condução da estratégia de contrassubversão na África Austral, em que Angola, Rodésia e Moçambique desempenhavam a sua defesa avançada. Embora estabelecido para a manutenção do ‘reduto Branco’, na África Austral, o apoio financeiro resultante do Exercício ALCORA e acordado no início de 1974 entre os governos de Portugal e da África do Sul, seria principalmente para reforçar a capacidade militar das forças portuguesas na Guiné”.

Luís Barroso

Trata-se de uma investigação que traz dados novos, praticamente desconhecidos nos trabalhos de investigação sobre a guerra da Guiné: as incidências do Exercício ALCORA para adquirir armamento e equipamento suscetível de reequilibrar o que se estava a passar no teatro de operações guineense. Obra bem enquadrada, passando em revista: o contexto internacional, caraterização da guerra da Guiné, o imperativo da modernização da nossa Força Aérea, a problemática dos aviões soviéticos MIG, o reequilíbrio que exigia o míssil Crotale, radares de defesa antiaérea, mísseis terra-ar portáteis e novas armas para o Exército, as cedências da administração Nixon e, por fim, os contatos secretos no fim do Estado Novo.

Uma das aparentes contradições neste fim do Estado Novo é em simultâneo o estabelecimento de contatos conducentes ao fim da guerra da Guiné e a processos de autodeterminação em Angola e Moçambique e a febril e secretíssima operação de rearmar a Guiné com armas antimíssil e morteiros 120 mm. Rui Patrício, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, enviara o cônsul português em Milão, em março de 1974, a Londres, para contatos preliminares com uma delegação do PAIGC, pretendia-se o cessar-fogo e abrir caminho para a independência; enquanto decorre este contato secreto, o mesmo Rui Patrício está envolvido nas negociações para a compra de Caças Mirage, dados como fundamentais para a defesa da Guiné, Washington também estava a ser pressionada para vender mísseis terra-ar portáteis, os Redeye. 

Como lembram os autores, todas estas compras seriam financiadas por um avultado empréstimo concedido pela África do Sul em março de 1964, 6 milhões de contos. As fontes documentais usadas pelos investigadores foram sobretudo o Arquivo de Defesa Nacional, o Arquivo Histórico da Presidência da República e o National Archives of South Africa.

Representação de um Mirage IIIEPL, com uma camuflagem especial contra mísseis guiados por calor
F-86 Sabre

Enceta-se a obra com o enquadramento da ideologia imperial portuguesa e a evolução dos modelos coloniais finda a II Guerra Mundial. Até meados da década de 1950, Salazar estava confiante que o Regime não seria estilhaçado pela emergente vaga anticolonial, quando esta se manifestou, a diplomacia portuguesa teve que rever a estratégia de alianças e assim se chega à aproximação à África do Sul. 

“O ano de 1961 marca uma mudança clara na predisposição do governo português em encarar a África do Sul como um apoio de futuro importante para a manutenção do esforço de guerra. É uma mudança substantiva em relação às desconfianças dos anos 1950, em parte devido aos receios de subalternização da importância do país na defesa de África. Mas também em relação à recusa de Salazar em enveredar por uma aliança militar formal, abordada em 1960 pelo comandante das Forças Armadas sul-africanas, general Stephen Melville, depois dos acontecimentos do Congo”

E assim se vai gradualmente encenando uma aproximação, Salazar mantinha reservas em estabelecer uma aliança formal com os sul-africanos, o Estado Novo irá apoiar a independência da Rodésia e os autores desvelam como passo a passo se caminhou para o Exercício ALCORA. A guerra de guerrilhas alastrara para outras colónias, não se podia manter uma guerra barata, as despesas militares incrementavam-se e no final da década de 1960, na maior das confidencialidades, já se pediam empréstimos à África do Sul, de quem se aceitou diverso material de guerra. E os autores também revelam os dados essenciais da mudança na política externa norte-americana em que as bases das Lajes tiveram um papel fulcral. Houve também aliados europeus, notoriamente Bona e Paris, com altos e baixos, mas sempre com vendas de armas e apoios diferenciados.

Como a situação na Guiné se alterara radicalmente em 1973, enquanto o discurso de Spínola roça o catastrofismo na documentação enviada para Lisboa e nas suas declarações no Conselho Superior de Defesa Nacional, em junho, durante a visita de Costa Gomes, chega-se a um consenso quanto às medidas a adotar. 

“Os militares defendem que é necessária uma alteração no dispositivo militar para uma linha que evite a aniquilação de guarnições de fronteira, o que implicava uma contração do dispositivo com a concentração de meios na zona mais interior da Guiné de forma a ganhar tempo e consolidar um reduto final que in extremis ainda possa permitir uma solução política do conflito. A manobra pretendia também dar tempo a Lisboa para futuras negociações com o PAIGC. Spínola concorda com a remodelação do dispositivo militar visando a economia de forças e salienta a carência de meios no teatro de operações, o que exige a atribuição urgente de novos meios de combate, apresentando uma lista de equipamento militar que pretende para a Guiné. Costa Gomes concorda com a manobra delineada, mas refere que não é possível a breve prazo reforçar o teatro de operações com os meios pedidos por Spínola”.

Ciente da gravidade da situação, chega-se ao empréstimo de cerca de 6 milhões de contos, está confirmada a vontade de Caetano em reforçar o poder militar português para evitar o colapso na Guiné com a aquisição de novos equipamentos militares. Spínola dá por finda a sua comissão na Guiné, é nomeado novo governador e comandante-chefe, Bettencourt Rodrigues, chega a Bissau dias depois de ter sido proclamada unilateralmente a independência da Guiné-Bissau. 

Os autores também trazem um dado novo acerca de operações encobertas e de contatos com o PAIGC ou com as autoridades senegalesas. No final do capítulo, faz uma chamada de atenção para o uso de viaturas blindadas pelos guerrilheiros e a evolução do potencial de combate do PAIGC. O próprio Costa Gomes contatara o Chefe do Estado-Maior do Exército espanhol para o fornecimento de minas anticarro. Bettencourt Rodrigues reúne em março de 1974 com o ministro Silva Cunha, é por este informado que se anda à procura de compras urgentes para o fornecimento de meios de defesa antiaérea às tropas na Guiné e também em Cabinda, mais fica a saber sobre o reapetrechamento da Força Aérea, fala-se igualmente em compra de morteiros 120 mm. 

“O financiamento seria garantido por Pretória e o material seria fornecido pelos EUA, França, Espanha e Israel, embora as negociações com os americanos fossem as mais difíceis e obrigassem Kissinger a fornecer de forma encoberta os mísseis que Portugal queria”

Enquanto tudo isto se está a passar, a 22 de fevereiro Spínola publica "Portugal e o Futuro", obra que terá um enorme impacto junto dos militares que conspiravam contra o Regime. Em Pretória ninguém previa que o Estado Novo fosse derrubado sem resistência e que se caminhava a passos largos para o fim do império colonial português.

(continua)
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Notas do editor

Vd. poste de 1 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21310: Agenda cultural (751): "Nos meandros da guerra: o Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné", de José Matos e Luís Barroso, Lisboa, Editora Caleidoscópio, 2020, 146 pp.

Último poste da série de 19 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22117: Notas de leitura (1352): Uma importante carta enviada ao General Schulz em agosto de 1966 (Mário Beja Santos / José Matos)

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