sexta-feira, 30 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22155: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (50): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se exprime o desapontamento quanto aos trabalhos que impunha a intervenção na sede do Batalhão, em Bambadinca, foi adaptação difícil para quem vivera aqueles 17 meses nos confins do mato.
Annette pesquisa na Flandres túmulos de um amigo de Paulo, para ela foi um aliciante e um pretexto para revisitar Ypres e voltar a ver uma tia quase nonagenária. Interrogou-se em Poperinge quando visitou um museu referente às centenas de execuções dos chamados desertores ou cobardes ou opositores de consciência, escutou um vídeo em que o neuropsiquiatra justificava que a generalidade das situações se prendiam a stress pós-traumático de guerra, e questionou-se sobre estas leis humanas em que um ser humano doente tem que estar implacavelmente enquadrado dentro das regras que justificam o denodo, a total disponibilidade para sair da trincheira e avançar para as metralhadoras e praticar o heroísmo. Mas Annette está feliz, sabe que está a organizar um passeio para gozar da companhia do seu amado, e um dos tombados em combate até justifica um outro passeio, ao Memorial de Arras, em Pas de Calais, cemitérios não faltam, houve tantos milhões de mortos. Como escreve Annette, ela não precisa de se conduzir como uma Penélope, o seu Ulisses é praticamente omnipresente, telefona e escreve, e a renda que lhe coube nas mãos é este relato de uma guerra que há poucos anos atrás ela totalmente desconhecia, num ponto de África que hoje se chama Guiné-Bissau. Relato que tem factos e dados impressionantes, ainda faltam muitos meses para registar o que foi a guerra de Paulo Guilherme e prevê-se ainda faltam uns bons anos para que os dois amantes vivam juntos, onde quer que seja.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (50): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo adoré, Tive a sorte de sair de Bruxelas e proporcionou-se ir fazer uma exploração na Flandres, nos imensos cemitérios onde tombaram centenas de milhares de militares, na região de Ypres, foi o pedido que tu me fizeste para esclarecer o teu amigo. Na terça-feira saí cedo para trabalhar em plena Antuérpia numa conferência europeia sobre regras de portos de pesca e normalização de procedimentos aduaneiros. Nós já tivemos em Antuérpia, lembro-me do imenso prazer de nos passearmos pela área portuária, espero dar-te satisfação com estas imagens que te mando, recordação dos nossos dias tão felizes. O meu diretor dera-me uma agenda para dois dias, a reunião dos portos de pesca terminou à hora do almoço e a equipa de intérpretes seguiu para Bruges, nova conferência europeia, tema completamente diferente, uma reunião dos médicos de família, tinha a ver com a reorganização dos serviços de saúde e com o diálogo com os outros profissionais. Ainda não te falei da minha tia Charlotte, a irmã mais nova da minha irmã adotiva, vive nos arredores de Ypres, quinta-feira nós não tínhamos trabalho, julguei ser a feliz circunstância para lhe telefonar e pedir que me deixasse ficar na sua companhia, inventei que no dia seguinte havia trabalho em Ypres. Tomei em atenção os nomes que me distribuíste, John Sinclair Minto, um sapador falecido em 19 de junho de 1917, está no novo cemitério militar de Poperinge. Confesso que foi um momento de grande aflição, entrei numa área museológica onde se mostrava o local das execuções de desertores, daqueles que se recusavam a combater, visitei as salas de julgamento sumário, tive em conta um vídeo em que se mostrava, através das relações de um médico, que houvera um número elevado de execuções dos chamados desertores ou cobardes que no fundo sofriam perturbação de stress pós-traumático. Confesso-te, meu adorado amor, que não foi uma experiência muito agradável. O velho cemitério militar corresponde aos mortos na primeira batalha de Ypres, junho de 1915. Visitar cemitérios não tem sido hábito meu, percorri a Normandia e toda a região entre Lille e a Flandres, pejada de cemitérios. Encontrei também referência do túmulo de um outro parente desta família Minto, John Archibald, morto em combate em 21 de março de 1918, pertencia ao Royal Scots Fusiliers. Nos arquivos de Ypres, que visitei à tarde, e devo-te dizer que é esmagador passar por aquele arco onde gravaram uma infinidade de nomes, descobri que August Lance Minto está sepultado em Arras, tenho agora os elementos todos da sua sepultura, é tudo uma questão de nas férias grandes irmos a Pas de Calais.

Não trouxe comigo o dossiê que estou a organizar sobre os teus primeiros tempos em Bambadinca, mas deu imediatamente para perceber o grau de deceção que sentiste nos trabalhos que vos distribuíram, e que tu abominaste, cito expressões tuas: na obrigação de andar às voltas perto do campo de aviação, um género de patrulhamento noturno, com a hipótese de emboscar, tu protestaste veementemente alegando que dois bons atiradores escondidos na mata abateriam a coluna em movimento sem dificuldade; depois há aquele corrupio de levar mantimentos a uma secção que está em Sinchã Mamajã, vir depois a Afiá e trazer doentes à consulta em Bambadinca, deixando ali sacos de arroz, seguir de Bambadinca para Bafatá para levar correio e expediente para o coronel do agrupamento; a seguir ao almoço patrulhar nos Nabijões, regressar no lusco-fusco, jantar e emboscar de novo. E muito me impressionou uma carta tua que se tu achares bem deverá fazer parte do livro:
Estou na mesma messe de oficiais de onde partir em 4 de agosto do ano passado na companhia de Saiegh, de Mamadu Camará, Abdulai Djaló e Sadjo Baldé, rumo ao Cuor. O ambiente é o mesmo dessa época, os oficiais são outros. As noites são suaves, joga-se bridge, xadrez e damas, nalguns quartos joga-se lerpa, perde-se e ganha-se dinheiro. Os meus soldados africanos vivem na tabanca que se estende desde os baixios da rampa até ao porto, mesmo a beijar o Geba. Fui fiador de todos eles, por razões de despesas de instalação, ninguém pode imaginar o que é o dia dos pagamentos com a lista de descontos, incluindo os empréstimos e as dívidas entre eles. Para a segurança de todos, as caixas de munições, as bazucas e os morteiros estão depositadas no paiol do quartel. A tropa europeia fica em casernas, bem perto de mim, por detrás da capela e da escola. Este ritmo trepidante tem o condão de me destruir o sono repousante, venho de madrugada, demoro imenso a conciliar o sono, não paro de pensar nas voltas que damos à volta de uma pista de aviação iluminada, como fáceis alvos humanos a abater. Já tinha tido vida de quartel, é evidente, mas depois do Cuor tive que me habituar ao barulho das portas a abrir e a fechar, às casquinadas, às permanentes chegadas e partidas de oficiais de todas estas unidades do Leste. Este mês tenho que poupar dinheiro, vim de Missirá com a roupa toda destruída pela Binta. Dentro de dois dias mudo de agenda, passo as noites num local fétido chamado a ponte do rio Undunduma. Amanhã tenho um imprevisto, vamos a Amedalai, um destacamento de milícias a caminho do Xime, uma grua de 16 toneladas guinou para dentro da bolanha, toda a equipa de desempanadores vai para lá e tem de montar segurança. Às vezes cumpre-me ser oficial do dia, faço o mesmo que fazia nos Arrifes, na ilha de São Miguel: assistir às refeições e às formaturas, tomar nota das ocorrências, fazer rondas e outras rotinas. Recebi uma longa carta do meu querido amigo Carlos Sampaio, que está de férias na Anadia, muitíssimo triste, dá-me notícia que encontrou no ateliê, olhou para todos os seus quadros, e esquartejou-os. não sabe bem porquê, sente-se à deriva, o que construiu com a sua visão da arte acha que não merece ficar para o futuro.

O comandante do batalhão tentou praxar-me, inventou que eu seria um género de mestre de cerimónias da professora da escola. A senhora é gentil, foi professora no Cuor antes da guerra, é um prazer ouvi-la falar desses tempos de paz. Disse-me que havia livros sobre as guerras travadas no princípio do século, vai falar com alguns amigos que os possuem e depois empresta-mos. A professora vive com a mãe, gosta de me convidar para beber chá, numa das visitas achou por bem desabafar, não sabia o que lhe responder: “Vivo numa terra de brutos. Aqui ninguém lê Stendhal, Flaubert, Balzac, Camilo ou Eça de Queirós. Os brancos são, de um modo geral, uns analfabetos que só pensam em compras e vendas. Não pode imaginar a solidão em que vivo”. Meu adorado Paulo, na tua ausência podes imaginar o consolo que para mim representa mergulhar neste passado, ver fotografias, até mandei ampliar aquela em que tu participaste na cerimónia do Ramadão em dezembro de 1968, dizes ter comprado 14 metros de sarja e que a camisa tinha um lindo bordado em linha púrpura, aqui te vejo empunhar uma espada e a sorrir. E eu interrogo-me o que é a vitalidade dos teus 23 anos, a superação das canseiras entregando-te a causas ligadas ao bem-estar de quem vivia naquele ambiente sempre à espera da guerra e da destruição.

E assim me despeço, Penélope iludia aqueles que queriam passar com ela desfazendo de manhã o que rendilhara à noite, era essa a sua contumaz fidelidade a Ulisses, eu não preciso de desfazer renda, tenho o privilégio de receber os teus telefonemas, o anúncio que virás em breve e que só anseias, em definitivo, viver na minha companhia. O que mais pode esperar a tua Annette que este amor verdadeiro que transformou as nossas vidas? Bisous, muitos mil e multiplicados, bien à toi, Annette
Uma escultura icónica, homenagem ao trabalho, Antuérpia
A torre da catedral ao fundo, a ponte que nos leva ao magnífico porto de Antuérpia
O esplendor de Bruges
Aspeto parcial do cemitério militar de Poperinge, Flandres
A lápide de Robert Minto
Outro detalhe do cemitério de Poperinge
Quartel de Bambadinca tal como eu o conheci em 1968
Em indumentário estreada para os festejos do Ramadão, Missirá, dezembro de 1968, empunhando a espada que o régulo Malã Soncó me emprestou
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22127: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (49): A funda que arremessa para o fundo da memória

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