sábado, 1 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22161: Os nossos seres, saberes e lazeres (450): Quando vi nascer a Avenida de Roma (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Há para aqui uma tentativa de esboçar a topografia da mobilidade pedestre daquelas crianças que frequentaram a Escola Primária Nº 151, a seguir ao ensino primário houve irradiação de destinos mas muitos dos pontos de referência já estavam instalados, a corografia de Alvalade forçosamente tem que ser entendida na ampla rede que abarca o Campo Grande, a Avenida da República até ao Campo Pequeno, após o alcatroamento da Avenida dos Estados Unidos da América espiolhava-se o crescimento da Avenida de Roma, descia-se o Bairro de São Miguel e então entrávamos no nosso burgo. Vamos crescendo, alteram-se as referências, no princípio da adolescência ainda somos um grupo que se reúne aos sábados à tarde para ir ver dois filmes: no Pathé, no Lis, no Max, no Rex, até no Salão Lisboa. E vai começar a atração pelos cinemas da nossa região, e por isso eles aqui são mostrados. Faltam agora algumas lojas para se pôr termo a esta viagem de apresentação que foi o nascimento da Avenida de Roma e que para mim constituiu um resgate de saudade.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (6)

Mário Beja Santos

Quem viu nascer a Avenida de Roma obviamente que chegou um tanto mais cedo, à guisa de recapitulação, mostra-se o Bairro das Caixas de Previdência e no seu limite oriental, junto da Quinta do Sr. Visconde de Alvalade, a Rua António Patrício. Não há comércio no bairro, impõe-se a necessidade de ir ao Campo Grande e à Rua de Entrecampos. Quem desenhou o projeto escolheu um formato uniformizado, ou quase, para as fachadas, natureza das janelas ou varandas, o que muda substancialmente é a dimensão das casas. As maiores, segundo aquela lógica do Estado Novo de cada um no seu lugar, têm à entrada um quarto minúsculo para a criada, um arrumo para as malas e um escaparate em madeira para pôr fotografias; em anexo uma minúscula casa-de-banho com duche e sanitário, a criada não pode ter intimidades com a higiene dos patrões.
No fim da década de 1940 nasce o Bairro das Caixas de Previdência, em Alvalade, em baixo quase que confina com o Campo Grande, o seu limite oriental é a Rua António Patrício que tem em frente a Quinta do Visconde de Alvalade, cortada pelo estradão da Avenida dos Estados Unidos da América, no primeiro plano à esquerda a entrada do Campo Grande e à direita os últimos prédios da Avenida da República e nas suas traseiras corre a Rua de Entrecampos. Grandes mudanças vão começar.
Rua António Patrício, ao fundo irá confluir com a Avenida de Roma, imagem atual
Em primeiro plano os campos de futebol do Benfica. Ao fundo o estádio do Sporting ainda em construção (início dos anos 50). Para melhor se entender o quase descampado que se segue ao Campo Grande, esta fotografia aérea é elucidativa. Os nossos colegas de Telheiras vivem em autênticos tugúrios, na rede de azinhagas à esquerda dos campos de futebol. À direita vemos a Alameda das Linhas de Torres, artéria que nós no bairro não frequentávamos, tínhamos ainda muito para desvendar à volta do Campo Grande, percorríamos alegremente os caminhos sinuosos que articulavam a vida no interior do bairro até que surgiu o prato de substância, o nascimento da Avenida de Roma, que nos deixou temporariamente desinteressados nos restos do Mercado Geral de Gados, das fábricas e das fabriquetas em torno do Campo Grande, preferimos então acompanhar a construção civil e ver a chegada daquela classe média que rapidamente se assenhoreou da sua avenida e limítrofes, caso da Avenida João XXI, Praça de Londres, Avenida Paris, a Guerra Junqueiro, também com o seu comércio chique.
Pastelaria Sul América, Avenida de Roma

Vale a pena observar que a Avenida de Roma do cruzamento com a Avenida dos Estados Unidos da América e em direção ao Hospital Júlio de Matos tinha uma arquitetura muito semelhante à que se impôs em direção à Praça de Londres, mas nem de perto nem de longe possuía os seus atrativos comerciais, mesmo agora. A Sul América foi durante muitos anos um ponto de convívio para as gentes locais, mesmo os trabalhadores de serviços vinham aqui ao pronto a comer. E um dia fechou a porta e deu lugar a uma casa de hambúrgueres. O local de maior convivência é o revitalizado Centro Comercial de Alvalade e depois o intenso comércio da Avenida da Igreja entre a estátua de Santo António e a Igreja de S. João de Brito, tem de tudo, quatro farmácias, comidas e petiscos, frangos assados na hora, roupa para todos os preços, agência funerária, a velha Riviera, uma charcutaria que também procurou adaptar-se aos novos ritmos de vida.
Passemos em revista os cinemas do bairro. O icónico, aquele que atraía os apreciadores de cinema de qualidade, foi o Quarteto, foi encerrada por falta de requisitos de segurança, mas por ali passaram filmes lendários e nas temporadas de verão havia ciclos de cinema para rever. Ambiente acolhedor, mas já dentro daquela fórmula de entrar, petiscar e seguir prontamente para uma das quatro salas. Continuo a tremer de emoção quando vejo esta imagem.
Cinema Quarteto, quatro salas, quatro filmes, edifício icónico da minha geração, sito na Rua Flores de Lima, uma paralela da Avenida dos Estados Unidos da América, uma autêntica barreira protetora da região afim, do Bairro de São Miguel
Cinema Alvalade

Acompanhei a vida do Cinema Alvalade do princípio ao fim, naqueles tempos havia duas matinés e a sessão da noite. O desenvolvimento da RTP foi a primeira sacudidela firme, mas o repositório de filmes era aliciante, por ali passou muito do melhor cinema europeu, em concorrência com o cinema norte-americano. Não me recordo de ter aqui estacionado um cineclube, mas no verão havia ciclos que se prolongavam por mais de um mês com filmes do passado, sempre com a sala cheia. O seu interior era gracioso, naquele tempo concebiam-se espaços para os espetadores conversarem, o cinema tinha decoração, neste caso um belo painel da pintora Estrela Faria que ainda se pode ver no novo edifício que tem habitantes, restaurante oriental e várias salas de cinema. Vejam as imagens que se seguem, talvez ajudem a compreender como os adolescentes se sentiam bem neste ambiente.
Escadaria de ligação à primeira plateia com o mural de Estrela Faria
Interior do Cinema Alvalade

O Cinema Roma é um enorme caixotão que também capitulou à falta de espetadores. Um dos meus cineclubes, o Católico, aqui estacionou, as quotas eram baixas, a escolha de filmes tinha por detrás bons selecionadores e muitas vezes havia apresentações em grande estilo, alguns dos grandes estudiosos do cinema, como João Bénard da Costa ou Manuel Machado da Luz, vinham com frequência apresentar filmes nos então quatro cineclubes que trabalhavam febrilmente para os seus cinéfilos.
Cinema Roma
Cinema Londres
Quadro de Noronha da Costa no Cinema Londres. Esta pintura corresponde ao período dourado do artista, era uma inovação do trabalho em acrílico com uso de pintura a óleo
Escultura de João Cutileiro no Cinema Londres

Este cinema atraía uma enorme população, mesmo de gente que vivia para lá da Fonte Luminosa ou da Avenida Manuel da Maia, Avenida João XXI, etc., era o Cinema do Areeiro. Sala decorada, escadaria enorme com portada retangular, coração à moda, bem embrincado na arquitetura panorâmica envolvente. Na imagem que escolhemos para mostrar um pouco da Avenida de Roma, a seguir, é patente que tudo isto foi um rico laboratório arquitetónico, o confronto entre as linhas tradicionalistas de projetos baratos como o do Bairro das Caixas de Previdência, as fachadas e interiores com outro nível de qualidade do Bairro de São Miguel e a modernidade de pioneiros como Cassiano Branco, Formosinho Sanches e Fernando Segurado. Estes cinemas tinham cafetaria, o Londres avançou para o snack-bar, estrutura que estava à moda, com refeições ligeiras, que davam pelo nome de combinados. Com a luminosidade e o espírito observador sem rival que o timbrava, Alexandre O’Neill num seu livro de 1960, As andorinhas não têm Restaurante, compôs um texto com delicioso humor:
“Você conhece estes restaurantes de traz-que-eu-engulo, do engole-vai-embora, esses esófagos da cidade que mal dão tempo de fazer glu?
No calor da nalga recém-partida você assenta a sua própria nalga recém-chegada, mas o desgosto dura o tempo da fusão dos dois calores. Outro virá, meu filho, desgostar-se (breve) no calor da sua…
É nestas estações de devoração que você se reabastece de azias de opilações, de engulhos, de flatulências, de tonturas e ardências. É aqui que você faz glu com vinho que, bebido, lhe deixa no fundo da garrafinha uma inesperada linda frase:
A CEPA O DEU, VOCÊ O BEBEU!”
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22132: Os nossos seres, saberes e lazeres (449): Quando vi nascer a Avenida de Roma (5) (Mário Beja Santos)

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