segunda-feira, 19 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22117: Notas de leitura (1352): Uma importante carta enviada ao General Schulz em agosto de 1966 (Mário Beja Santos / José Matos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
O nosso confrade José Matos tem vindo a espiolhar no Arquivo da Defesa Nacional, teve a amabilidade de me passar esta carta de um colaborador de Schulz que escreve para Lisboa, onde o comandante-chefe estava em convalescença de uma operação, dando-lhe conta da evolução dos acontecimentos. De modo muito lacónico e discreto, e atendendo à escassez de meios, não deixa de insinuar que se pode caminhar para um desastre militar e aflora a questão do caos económico em que se encontrava a república da Guiné Conacri e a possibilidade de interferir no país através de conversações com os opositores. 

Quem lê o livro soube que o José Matos e o Mário Matos e Lemos escreveram sobre a Operação Mar Verde cedo se apercebe que as autoridades portuguesas nunca levaram a sério o grupo opositor de Conacri, era notória a falta de coesão e difuso o seu programa. Esta indiferença prolongar-se-á por muito tempo, só tomará alento a partir de 1969, mas sempre com fortes resistências por parte de um conjunto de ministros de Marcello Caetano. O curioso da carta dirigida ao General Schulz é de modo cuidado, um leal colaborador dar a entender que se não houver mais meios há muito poucas cartas ainda por jogar e que a iniciativa era praticamente nula, mal por mal o melhor era tentar agravar a ruína e o caos da Guiné Conacri, talvez assim pudesse abrandar ou estiolar o apoio ao PAIGC. Sonho em vão, como a História se encarregou de demonstrar.

Um abraço do
Mário



Uma importante carta enviada ao General Schulz em agosto de 1966

Mário Beja Santos

Conversando há dias com o investigador José Matos, nosso prezado confrade, ele teve a amabilidade de me enviar um documento que recolheu junto do Arquivo de Defesa Nacional, uma carta assinada por um colaborador de Schulz em que se fazem apreciações do maior relevo e que permitem dar-nos uma perceção da evolução da guerra a meio da comissão do Governador e Comandante-Chefe Schulz. Depois de o saudar e manifestar satisfação pelas melhoras de uma operação a que este fora submetido, dá-lhe conta da situação que se vive na Guiné:

“A estrada está aqui cada dia mais difícil de percorrer. O inimigo tem continuado a desenvolver-se de maneira segura. O Churo, o Jol e Có representam agora, para as nossas tropas, um esforço operacional tão importante como aquele existia no Oio há pouco mais de um ano, quando tivemos a vitória militar quase nas mãos e ela nos escapou por falta de reservas para lançar na ação. 

Nhacra e o Jugudul, são hoje zonas operacionais situadas a 20 quilómetros de Bissau, que continuam a constituir o principal objetivo do inimigo. No sul, não temos tido progressos sensíveis e todos estamos convictos de que o inimigo continua a reforçar-se de modo a tornar tanto quanto possível inexpugnável a sua posição; quando for possível reunir os meios para recuperar esta parcela do território teremos de encarar uma verdadeira guerra clássica, com tropas bem apoiadas pelo fogo, dispondo de transmissões impecáveis e capazes de manobrar num terreno onde isso lhes é vedado com os meios normais. 

No Leste, à parte o alívio resultante da deslocação do esforço inimigo para a região semi-despovoada do Boé, as preocupações continuam a ser muito grandes e não permitem que daí se distraiam forças para emprego noutras operações. 

Resumindo, o inimigo colocou-nos a mão no pescoço, como bom lutador de judo, e nós temos dificuldade em sair desta posição.

As razões são bem conhecidas de todos: a nossa massa operacional, se descontarmos as zonas passivas em que apesar de tudo temos de conservar tropas em quantidade suficiente para ocorrer a qualquer ação inesperada (quando se perde uma população ela fica perdida para sempre), se descontarmos os meios empenhados em zonas que presentemente são mais ou menos passivas e fizermos a mesma coisa ao apoio logístico que existe em todos os escalões, pelo menos até ao nível de companhia, encontramos aproximadamente na proporção de 1/1 ou, se formos otimistas, de 1,5/1 relativamente ao inimigo. 

Uma guerra subversiva não pode ser ganha com esta proporção de forças, sobretudo se o inimigo, como é o caso, dispõe de santuários onde pode recompor e reorganizar as suas forças em plena tranquilidade. Já um dia ouvi alguém que disse que, se é verdade que a guerra pelo Ultramar não pode ganhar-se na Guiné, ela pode, pelo contrário, perder-se ali completamente. 

Eu creio, meu General, que se não dermos uma reviravolta completa em tudo isto, estamos bem perto da segunda hipótese.

Podem descobrir-se montanhas de defeitos nos nossos quadros e uma multidão de erros nos procedimentos seguidos pelas nossas forças; pode afirmar-se, em cima de uma carta, que no caso A ou no caso B o êxito teria sido completo se os nossos homens tivessem trabalhado de maneira um pouco diferente. Mas nada disto altera duas verdades fundamentais: a primeira é que num território com a densidade de perto de 20 habitantes por quilómetro quadrado, nós não dispomos dos meios suficientes para garantir às populações a proteção de que necessitam nem dos quadros civis que lhes criem perspetivas de progresso que justifiquem uma adesão total à nossa política, nem meios financeiros; a segunda é que, dados os progressos do inimigo em matéria de técnica, de armamento e de tática, só uma alteração muito profunda nas nossas possibilidades de manobra (deslocamentos de forças e apoio de fogos para ação) é suscetível de desequilibrar a balança a nosso favor.

Quando se diz que a quadrícula é excessiva, desconhece-se que a população é de tal densidade que a torna evidentemente necessária. Temos perdido dezenas de milhares de habitantes por não nos ter sido possível prestar-lhes o apoio de que necessitam. É certo que os efectivos de cada unidade em quadrícula podem, em alguns casos, ser diminuídos se recorrermos a trabalhos de fortificação apropriados – mas onde está a engenharia para isso? E quais seriam as economias de meios que daí resultariam? Iriam influenciar decisivamente o curso desta guerra? Creio bem que não.

Por outro lado, tem-se verificado, com frequência cada vez maior, que as nossas tropas só muito raramente se levantam ao assalto de posições inimigas. A minha conclusão actual é a de que o homem normal não se levanta ao assalto de resistências inimigas defendidas por armas automáticas se não estiver apoiado por fogos com densidade suficiente para criar nesse inimigo neutralização. Cadique, Cafine e a recente operação do Churo, constituem alguns exemplos entre muitos que mais não o fazem que somar-se à multidão de casos que encontramos em todas as guerras desde que foi inventada a metralhadora.

O terceiro ponto que me parece de muita importância para que nos seja possível dar uma volta na situação sem aumento substancial imediato dos nossos meios é o que diz respeito às nossas possibilidades de manobra: esta faz-se a pé, é certo, mas tem também de fazer-se em viatura, em avião, em helicóptero e em meios fluviais. 

As possibilidades apenas são razoáveis em matéria de meios fluviais; quanto à manobra auto, ela apenas é possível em meia dúzia de estradas, por falta de viaturas, mas sobretudo por falta de infraestruturas – e estas não podem ser conseguidas com uma única Companhia de Engenharia numa província que não dispõe de meios civis que possam suprir as falhas dos meios militares”.

Mais adiante, o Tenente-Coronel Castelo Branco, depois de reconhecer ao General Schulz que tem feito exposições rigorosas da situação ao Ministro da Defesa Nacional, recorda que o Governador tem afirmado que a situação da Guiné depende sobretudo da evolução da situação internacional, e esta é altamente desfavorável para nós. Poderá haver uma possibilidade que nos seja favorável, ele refere que a situação da República da Guiné está num caos, e insinua que devia haver conversações com os opositores do ditador de Conacri.

Dada esta síntese do documento que o José de Matos obteve no Arquivo da Defesa Nacional, muito provavelmente para apurar o histórico das ligações entre os opositores de Sékou Touré e as autoridades portuguesas, e que cumularam na Operação Mar Verde, creio que o leitor ficará com uma ideia de que havia entre os colaboradores de Arnaldo Schulz uma imagem clara das tremendas dificuldades que já se viviam em 1966 e que eram conhecidas pelo governo de Lisboa, mormente a partir do Ministro da Defesa Nacional, mantido sempre informado das instruções do Comandante-Chefe, das suas diretivas, da notória falta de meios, etc. e tal.

É lendo documentos como estes que se pode perceber como é completamente leviano querer fazer historiografia da guerra da Guiné passando como gato pelas brasas pelos mandatos de Louro de Souza e Arnaldo Schulz e assestar as baterias no herói salvador Spínola que viu goradas todas as suas iniciativas e se retirou da liça em agosto de 1973.

Primeira página da carta que o Tenente-Coronel Castelo Branco enviou em 11 de agosto de 1966 ao General Schulz, n.º da cota PT/ADN/SGDN/2REP/106/0411/008, Arquivo da Defesa Nacional
Schulz nos Comandos em Brá, 1965
Visita de Arnaldo Schulz a Cutia em 1966, imagem já publicada no blogue
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Nota do editor:

Último poste da série de 12 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22099: Notas de leitura (1351): "Ataque a Conakry, História de um Golpe Falhado", por José Matos e Mário Matos e Lemos; Fronteira do Caos, 2020 (Mário Beja Santos)

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