segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24062: Notas de leitura (1554): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
A viagem do olhanense João Peres à Guiné é um testemunho afetivo que nos embala a memória. Viajou com o Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes, chocou-lhe aquelas estátuas dispersadas, depositadas a esmo na fortaleza de Cacheu, como se não fossem resquícios de uma memória comum, nenhuma nação pode vicejar sem memória e o relacionamento com Portugal não se pode rasurar. Conversou com imensa gente, de todas as idades, de todas as profissões, é comedido no seu desapontamento com o estado lastimável em que encontrou a Guiné. Mas é aquele povo que não se rende às diabruras do destino que o empolga a todo o instante, veja-se o que ele escreve de um médico carinhoso, de um produto de bananas, das fainas dos pescadores Felupes, são retratos admiráveis, vão do coração dele para o nosso. É este o significado de tais retratos, singelos e só comprometidos com o afeto inabalável.

Um abraço do
Mário



Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3)

Mário Beja Santos

Este livro intitulado "Retratos" tem como autor João Peres, terá sido autarca em Olhão, chefiou à Guiné uma delegação do Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes, esta sua obra espelha a sua atração pelo feitiço africano, será este o primeiro livro do autor, no escaldo de uma viagem de saudade. Na ficha técnica ficamos a saber que a edição é de 2011, João Peres é natural de Olhão, bancário aposentado, ex-autarca e colaborador do jornal "O Olhanense".

Enceta o seu caderno de retratos com uma síntese da história da Guiné. Fala-nos da jangada de Ché-Ché indispensável para a travessia do Corubal, conta a história de Bubacar que chegou a conhecer a jangada no tempo da guerra, agora é ele que cuida dela, limpa filtros, aperta a cabeça do motor, tem muitas histórias para contar, naquela jangada já mulheres deram à luz. “Ganha para comprar uma saca de arroz para o mês, com o pouco que sobra compra sal, açúcar, óleo e café. No dia de folga, vai à pesca com rede, apanha peixes e camarão. A jangada, a tabanca e a família são a sua vida. O sol muito vermelho dá-lhe sinal de que está na hora, é a última viagem naquele dia. Amanhã, bem cedo, vai verificar o óleo, o combustível, antes de pôr o motor da jangada a trabalhar”.

E prosseguirão as histórias, a de Armando Ernesto Gomes, o Tio Bill, escapou aos acontecimentos da carga no Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959, ele é o presidente da Associação dos Marinheiros. “Caminha pelo cais como se a sua vida tivesse sido passada quase naquele local. Está velho e cansado. Sonhou com um país independente, mas que ficou muito aquém pela falta de desenvolvimento”. Segue-se a história de Lumumba, que aos 18 anos ingressou no Exército Português. Quando se avizinhou a independência da Guiné-Bissau, receando represálias, foi para o Senegal, onde trabalhou alguns anos. Depois voltou à Guiné, tornou-se num construtor naval. E temos Ocante Dju, garoto de 10 anos que vive no Interior, onde a escola ainda não chegou. Ajuda o pai na pesca, já sabe escalar o peixe, tirar-lhe as vísceras, salpicá-lo de sal e pô-lo ao sol. “Não sabe ler, se calhar não vai ter oportunidade, ignora que noutros países as pessoas têm água canalizada, energia elétrica. Ocante sem ter acesso a tudo isto é feliz no seu mundo”. Ana Maria é uma linda rapariga, a sua mãe, durante a guerra, relacionou-se com João Pedro, natural de Guimarães. Maria ficou grávida nos últimos meses da comissão de João Pedro. Sempre que encontra portugueses segreda-lhes que o seu pai é português. Apesar de todas estas adversidades, é uma mulher batalhadora, ainda acredita que o pai venha de Guimarães reconhecê-la como filha.

Mário Andrade é guineense, estudou num seminário em Portugal, foi sacerdote no Minho, em Bissau ficou às ordens do bispado. Elaborou um projeto para visitar as populações do país. Dividiu a área territorial em setores, quantificou o tempo e custos por cada a ser visitado, era um projeto em que ele propunha o apoio de Portugal para haver vacinas e pessoal de enfermagem. Tempos depois foi chamado pelos seus superiores, era-lhe confiada a missão de evangelização, ajuda humanitária e vacinação.

Nestes retratos de João Peres ganham relevo os agricultores, mulheres grandes, há Cissoco, artista plástico e pedreiro, esteve a trabalhar em Bafatá, visitou a casa onde nasceu Amílcar Cabral e pensou em fazer vários desenhos, pediu ao governador algum material e deixou trabalho plástico, é homem de sonhos, gostaria de ver transformada esta casa onde nasceu Amílcar Cabral num museu. Há também Cassamá que é professor primário, colabora com a cooperação portuguesa. João Peres visitou Madina do Boé, conversa com enfermeiras, taxistas, velhos artesãos, criadores de gado, velhos combatentes do PAIGC e outros aliados dos portugueses, há também curandeiros, pescadores Felupes, produtores de banana, jornalistas, fala-se do Islão, do desporto, da dança, de Amílcar Cabral e de Spínola.

Alguém o tocou muito, Paulo Mendes, um médico que tirou o curso na Universidade de Coimbra. Faz do hospital a sua casa, pede todo o apoio possível aos seus colegas portugueses. “Visita os doentes internados acompanhado de outros médicos. Dirige-lhes palavras amigas, anima-os para que ganhem força. Preocupa-o muito a ala da Pediatria, onde estão crianças a lutar pela vida em cada segundo que passa. Tenta por todas as maneiras que medicamentos, oxigénio, alimento adequado não faltem a estes anjos que ainda agora começam a viver. O Dr. Paulo Mendes assegura-se de que tudo está a funcionar como previsto. Retira-se para o seu gabinete. Liga o computador. Prepara uma mensagem para enviar a um dos seus amigos em Portugal. Precisa do envio de medicamentos para garantir a vida a algumas crianças. A mensagem segue. Há avião dentro de 48 horas. Se os medicamentos chegarem as crianças salvam-se. É um país ainda dependente a quem Portugal tem perdoado a dívida. É assim a vida de um diretor clínico num país que vive com muitas dificuldades”.

Livro profusamente ilustrado, tocante esta paixão pelas coisas de uma África, assumidamente despretensioso. Quando fala da nossa presença na Guiné, ele que viu as esculturas desconjuntadas e arrancadas de Bissau na fortaleza de Cacheu, faz bem em lembrar-nos e lembrar aos guineenses que é necessário repor estas figuras nos seus lugares, todo o país tem direito à memória, não é puro acaso este afeto e esta interação, aquelas centenas de milhares de jovens que ali combateram renderam-se ao povo afável e a inversa é também verdadeira. Daí aqueles vídeos de septuagenários que vão ao interior da Guiné visitar povoações onde viveram aquartelados, o choro lancinante das lavadeiras, os velhos milícias e caçadores nativos que reconhecem o viajante, os abraçam tão afetuosamente, lhes pedem apoio, lhes mostram com o mesmo extremo cuidado os seus documentos pessoais ciosamente metidos em plásticos, assim como os acompanham na visita aos velhos quartéis, ao que deles resta.

É por isso que nos toca a singeleza dos retratos de João Peres que nos desvela o mesmo povo amável que nos acolheu, meio século antes.

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Notas do editor:

Poste anterior de 10 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24055: Notas de leitura (1552): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série Notas de leitura de 12 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24060: Notas de leitura (1553): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte XI: Cobumba, manga de minas?!... Vamos lá levantá-las e noutro dia arrasar aquela... brincadeira!

1 comentário:

antónio graça de abreu disse...

Pois é, Mário Beja Santos. Falas de um país que quarenta anos após a independência, "precisa do envio de medicamentos para garantir a vida a algumas crianças. A mensagem segue. Há avião dentro de 48 horas. Se os medicamentos chegarem as crianças salvam-se. É um país ainda dependente a quem Portugal tem perdoado a dívida."

Falamos honestamente da nossa, e sobretudo deles, dos seus povos, Guiné-Bissau. Infelizmente, ainda, uma pátria de mão estendida.

Dizes, Mário Beja Santos:

"Tocante esta paixão pelas coisas de uma África, livro assumidamente despretensioso. Quando fala da nossa presença na Guiné, ele que viu as esculturas desconjuntadas e arrancadas de Bissau na fortaleza de Cacheu, faz bem em lembrar-nos e lembrar aos guineenses que é necessário repor estas figuras nos seus lugares, todo o país tem direito à memória, não é puro acaso este afeto e esta interação, aquelas centenas de milhares de jovens que ali combateram renderam-se ao povo afável e a inversa é também verdadeira. Daí aqueles vídeos de septuagenários que vão ao interior da Guiné visitar povoações onde viveram aquartelados, o choro lancinante das lavadeiras, os velhos milícias e caçadores nativos que reconhecem o viajante, os abraçam tão afetuosamente, lhes pedem apoio, lhes mostram com o mesmo extremo cuidado os seus documentos pessoais ciosamente metidos em plásticos, assim como os acompanham na visita aos velhos quartéis."

E temos Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, a ajoelhar perante as utopias de Amílcar Cabral, a vender aos incautos a tese bonita mas falsa da independência como factor de cultura (ver o extenso artigo bajulatório de Augusto Santos Silva,no Jornal de Letras de 25 de Janeiro passado, pags. 24 e 25.) Diz o senhor Silva, terceira figura do Estado português, a propósito da Guiné e de Amílcar Cabral: "A libertação é um factor de cultura. Quer dizer, gera cultura, contém em si mesma um poder criador e transformador dos símbolos, das crenças, dos hábitos das manifestações artísticas."
Quando não há pão, após tantos anos de independência e de libertação do colonialismo, quando não há medicamentos para as crianças,quando o narcotráfico, infelizmente continua a imperar num país a que demos dois dos nossos mais dolorosos anos de vida, os senhores silvas, da política portuguesa,continuam a vender aos portugueses a banha da cobra, a libertaçpão como factor de culturta, muito bem embalada em ramos de rosa.

Obrigado, Mário Beja Santos.

Abraço,

António Graça de Abreu