quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24649: Manuscrito(s) (Luís Graça) (229): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte I: a lenda que eu ouvi contar ainda em 1976, em Candoz


Capa do livro de Eduardo Noronha - José 
 do Telhado: romance baseado sobre
factos históricos.
4ª ed. Porto: Editorial Domingos Barreiros, 1983, 399 pp.
 (1ª ed., Porto, 1923)



1. Ouvi a “lenda” do Zé do Telhado já tarde, cem anos depois da sua morte, quando pelo casamento comecei a vir ao Norte e a frequentar a Casa de Candoz.

A minha mulher é vizinha do lugar, Carrapatelo, onde ocorreu o assalto planeado e executado pelo Zé do Telhado e o seu bando, porventura o mais tristemente famoso (e o mais rendoso) do seu historial: o assalto, em 8/1/1852, à Casa do Carrapatelo, situada na atual freguesia de Penha Longa, concelho do Marco de Canaveses.

Candoz e Carrapatelo, embora pertencentes a freguesias diferentes, são dois lugares muito próximos, ficam a escassos quilómetros um do outro. De Candoz vê-se grande parte da albufeira da barragem do Carrapatelo, a Pala (que pertence ao concelho de  Baião), a ponte que liga as duas margens, bem como o Porto Antigo e a serra de Montemuro (já na margem esquerda, concelho de Cinfães), mas não a Casa do Carrapatelo, que fica na margem direita do rio Douro, um pouco mais a  sudoeste de Candoz, a jusante, nas faldas da serra de Montedeiras. Em suma, temos a serra a separar-nos. De Fandinhães, aldeia serrana de origem visigótica,  é a mãe da Alice. Fica entre o Carrapatelo  e Candoz.

Recordo-me do meu sogro, José Carneiro (1911-1996), me ter falado da figura lendária do Zé do Telhado e desse famigerado assalto (que acabou por ser a perdição do seu autor, anos mais tarde, em 1859, altura em que finalmente foi preso, ). A casa, um solar, que ainda hoje existe, remonta, o seu corpo mais antigo, ao início do séc. XVIII, é um belo exemplar da arquitetura barroca duriense. (Infelizmente muitas destas antigas casas fidalgas na região estão em decadência ou à venda ou foram transformadas em alojamento local: já não há serviçais, criados e rendeiros para as sustentarem como no tempo da outra senhora.)

 Pertencia então a Dona Ana Vitória de Abreu e Vasconcelos, viúva, de 39 anos, que acabara de perder, no início desse ano de 1852, o seu pai, o velho fidalgo José Joaquim de Abreu e Lemos, sargento-mor das milícias do julgado de Bem Viver (um antigo concelho, com sede em Feira Nova, a que pertencia Candoz e Fandinhães  e que deu lugar, entre outros, ao concelho do Marco de Canaveses, no início dos anos de 1850).

E retive a explicação que o meu sogro me deu, socorrendo-se da tradição popular: “Telhado era alcunha”, ele punha-se à escuta das conversas dos pobres, no “telhado de colmo” dos casebres… para nos dias seguintes vir-lhes acudir com algum socorro em géneros ou dinheiro… 

E assim se criou a lenda do “Robin dos Bosques português que roubava aos ricos para dar aos pobres”… numa época em que Portugal estava bem longe de ser "o país de brandos costumes". e que teve, de resto, em Camilo Castelo Branco um dos seus grandes exorcistas.

Devo acrescentar que o meu sogro, proprietário agrícola, ramadeiro (construtor de ramadas) e agente de alguns casas vitivinícolas da região (como o Borges & Irmão,  de Amarante, por exemplo) nunca leu na vida o Camilo Castelo Branco (nem muito menos viu nenhum filme sobre o célebre salteador) mas era um homem com algum capital de relações sociais, e um dos primeiros a ter rádio em casa, a par do telefone.

Há pouca evidência histórica (isto é, devidamente documentada) que permita sustentar a tese do “banditismo social”: é verdade que o Zé do Telhado roubava aos ricos, mas não há provas suficientes que permitam caracterizá-lo como um “repartidor público” (como alegadamente ele dizia frente às suas vítimas e aos seus cúmplices) (Castro, 1980, pp. 30-33).

Muito do mito do “Robin dos Bosques português” é uma construção social do romantismo ou ultrarromantismo, com destaque para o papel do novelista Camilo Castelo Branco (que o “eternizou” nas páginas do seu livro “Memórias do Cárcere” , Porto,  1862, 1a. ed.).

A imprensa da época, nomeadamente nortenha, e depois o cinema, já no século XX, fizeram o resto (há pelo menos dois filmes, baseados na vida, romanceada, do Zé do Telhado; um, de Rino Lupo, de 1929, ainda no tempo do cinema mudo; e outro, de 1945, realizado por Armando de Miranda, com exteriores filmados aqui perto de Candoz, na Serra de Montedeiras, e protagonizado pelo ator Virgílio Teixeira, no papel principal: disponível no You Tube, em versão integral, aqui, com a duração de cerca 86 minutos).

De qualquer modo, não podemos menosprezar a “vox populi”: a tradição popular, nomeadamente no Norte do país, acabou por frazer chegar até nós o registo (oral e depois passado a escrito) de muitas  das suas "façanhas", onde se misturam a realidade e a ficção, e que alimentaram não sí a imprensa como alguma literatura posterior ao Camilo (Noronha, 1983, 1ª ed., 1923; Castro, 1980, por  exemplo).

Comecemos por um resumo da “história de vida” daquele que é considerado o maior salteador do séc. XIX, à frente de uma lista onde estão outros homens que, atuando à margem da lei, chefiaram grupos de guerrilha e depois bandos de salteadores, e causaram alarme e terror no seu tempo. 

Talvez o Remexido (1796-1838), algarvio, guerrilheiro miguelista, lhe tenha levado a palma em ferocidade, seguramente em crimes de sangue (pelos quais foi julgado, condenado à morte e fuzilado em 1838). Ou João Brandão (1825-1880), outro “Torre e Espada”, como o Zé do Telhado, que espalhou o terror pelas Beiras, e foi igualmente deportado para Angola, região do Bié. 

Aliás,  nesta época a justiça portuguesa já não desterrava os proscritos sociais para o interior das Beiras como na idade Média mas para as colónias de África. Camilo Castelo Branco,  em 1860/61, conheceu muitos homens ( e algumas mulheres) que aguardavam nas "enxovias" da cadeia da Relação do Porto a sua partida para Lisboa para depois aí embarcarem  para o desterro em África: homocidas,  parricidas, infanticídio,  ladrões, moedeiros falsos, etc.

No sítio do Museu Judiciári0o do Tribunal da Relação do Porto pode ler-se sobre Zé do Telhado e o seu processo judicial (3 volumes) o seguinte:

(…) “José Teixeira da Silva nasceu a 22 de junho de 1818 no lugar de Telhado, Castelões – Penafiel. Aos 14 anos vai viver com um tio em Caíde de Rei, Lousada, vindo a casar aos 27 anos com a prima Ana Lentina de Campos, com quem teve 5 filhos.”

E sem entrar em grandes pormenores, acrescenta-se:

(…) “Seguiu carreira militar onde se evidenciou, chegando mesmo a obter a mais alta condecoração portuguesa: a “Ordem de Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito”. Contudo, o seu envolvimento no lado derrotado da revolta da “Maria da Fonte” (1846) levou a que fosse expulso do exército.

”Desempregado, acaba por se envolver com foras-da-lei, chefiando uma quadrilha responsável por vários assaltos na região de Baião, Celorico de Basto, Fafe, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Santa Cruz de Riba Tâmega...

“Preso na Cadeia da Relação do Porto em 1859, é julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida, pena esta que foi comutada pelo Tribunal da Relação do Porto para 15 anos de degredo.

“Partindo para o degredo em África, veio a instalar-se em Malange, onde viveu até à sua morte, aos 57 anos, como reconhecido negociante e estimado pela população local. Aí casou novamente, tendo 3 filhos desse casamento.

“Na aldeia de Xissa, município de Mucari, onde foi sepultado, foi erguido um mausoléu em sua homenagem que, até hoje, é objeto de interesse.” (…)



De "Lanceiro da Rainha" (1835)  a "Torre e Espada" (1846)

Camilo é o primeiro (ou um dos primeiros) a escrever-lhe uma curta biografia (ou melhor, "hagiografia"), de 3 dezenas de páginas, a partir das suas confidências na prisão  (Castelo-Branco, 1996a, pp. 83-117).

Camilo põe o seu companheiro de prisão (e depois guarda-costas) a nascer em 1816, o que faz mais sentido. Aos 14 anos, ou seja, em 1830, em plena guerra civil, vai para , a Sobreira, freguesia de São Pedro de Caíde de Rei, concelho da Lousada, para junto do seu tio, aprender o ofício de castrador. Ao fim de cinco anos, alista-se na tropa e faz o juramento de bandeira numa unidade de cavalaria, o regimento de Lanceiros 2, conhecidos como os “Lanceiros da Rainha”, na calçada da Ajuda, em Lisboa.

Esta decisão pode ter sido motivada por um desgosto amoroso: pretendia-se casar com a sua prima materna Ana Leontina, de Lousada, mas o pai recusa-lhe a mão da filha, alegadamente por o rapaz não ser um bom partido (impedimento esse, entretanto, levantado por altura da “convenção de Chaves”, diz o Camilo, op. cit, pág. 88).

Zé do Telhada casa-se, portanto, já depois da “revolta dos marechais” (julho de 1837), mas antes da “revolta da Maria da Fonte” (primavera de 1846), acontecimentos em que participa como militar.

 Tudo indica que se tenha casado  no 2º semestre de 1837, aos 21 anos ( e não aos 27) aureolado pela fama de bravo “lanceiro da Rainha”.

A Convenção de Chaves, celebrada a 20 de Setembro de 1837 e assinada a 7 de Outubro de 1837, selou oficialmente o fim da chamada Revolta dos Marechais, a revolta de 1837 que opôs cartistas (mais à direita, diríamos hoje) aos setembristas (ala esquerda do liberalismo de 1820). Os primeiros pretendiam restaurar a Carta Constitucional de 1826. Os segundos defendiam a Constituição de 1822.

Os cartistas não tiveram a sorte das armas pelo seu lado. Após vários episódios bélicos em Chaves, são definitivamente derrotados no combate de Ruivães, a 18 de setembro, obrigando muitos dos seus homens a refugiarem-se na Galiza. Os Lanceiros da Rainha eram cartistas. O lanceiro José Teixeira da Silva seguia na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou a sua bravura nos combates de Chão da Feira e Ruivães (Castelo-Branco, pp. 87/88; Noronha, 1983., pp. 53 e ss.).

Na retirada, o barão de Setúbal, general Schwalbach, de origem alemã,   levou, como seu ordenança, o Zé do Telhado. E foi nessa altura que este obteve uma licença para ir à terra casar-se (licença passada pelo barão de Turpin, chefe da 3ª divisão militar,  no Porto). 

A Convenção de Chaves, no dia 20, põe fim à guerra civil: as tropas sublevadas rendem-se e ficam à disposição do governo setembrista. Há uma amnistia mas os chefes da revolta (marechal Saldanha, duque da Terceira, duque de Palmela, José da Silva Carvalho e Mouzinho de Albuquerque) são forçados a abandonar o país.

Não é, contudo, na “revolta dos marechais” que o Zé do Telhado ganha a sua "Torre e Espada", mas sim nove  anos depois, a 15 de novembro de 1846, por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira (como veremos num próximo poste).

Recorde-se que  a Maria da Fonte, também conhecida por Revolta do Minho, foi uma sublevação popular ocorrida na primavera de 1846 contra o governo cartista, presidido por António Bernardo da Costa Cabral, e que reuniu forças dos extremos do espectro politico-ideológico da epoca: setembristas e legitimistase ou migué listas, além do Zé Povinho, sem partido, mas arregimentado mas  sobretudo revoltado contra as leis da saúde,  a reforma fiscal e a nova lei do serviço militar dos Cabrais  (que tinham o respaldo da rainha dona Maria II).

Seguiu-se mais um cruel período de guerra civil, a Patuleia, de oito meses, a partir de outubro de 1846,  até que a Convenção de Gramido, em junho de 1847, põe termo a mais este  período negro do nossa história. 

Zé do Telhado, agora "sargento patuleia" (alinhou desta vez com os chefes militares setembristas),   ficou do lado dos vencidos. E é a sua desgraça. A família cai na pobreza. Perseguido pelos inimigos políticos e os credores, acaba por se tornar "o chefe de uma associação de malfeitores", conforme consta do seu libelo acusatório, a par de "diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com principio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos, a par de (...) tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais." 

Muito do que se tem publicado sobre ele é "hagiográfico". Falta-nos uma  biografia séria do homem, do militar, do herói,   do guerrilheiro , do cidadão, do bandido e do desterrado.

(Continua)


Capa  do livro de José Manuel de Castro - José do Telhado-  Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il.  (Tipografia Guerra, 
Viseu)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Em 1945 fizeram um "western" à portuguesa em que o nosso Zé do Telhado (interpretado pelo galã Virgílio Teixeira) é um perfeito oficial e cavalheiro. (Só dei uma rápida vista de olhos ao filme disponivel no You Tube, parte dos exteriores terão sido rodados aqui, na nossa serra de Montedeiras.)

O cinema também serve para falsificar a história...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O filme está disponível aqui:


https://www.youtube.com/watch?v=i_6MmOOrDh4

Valdemar Silva disse...

Quanto ao apelido/alcunha "do Telhado", há três versões.
A mais conhecida é a de ser um salteador que entrava pelo telhado, outra que a casa do pai era a única com telhado de telhas em vez de colmo como as outras e a que parece mais lógica era de ser natural do aldeia/lugar de Telhado e assim ser conhecido quando foi viver para os lados de Lousada.
Antes de ser assaltante era castrador de animais e já lhe chamavam o Zé do Telhado.

No filme "Zé do Telhado", com Vergílio Teixeira, há uma cena em que ele, numa taberna, aperta a mão a outro bandidolas provocando-lhe dores.
Foi uma grande treta, o outro bandidolas era Juvenal Araújo que eu conheci já dentro dos cinquenta anos, mas quando fez o filme era um matulão que ganhava apostas por rasgar uma lista telefónica fechada, o que deixaria o Vergílio Teixeira com as falanginhas e falangetas partidas.

Valdemar Queiroz