sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24653: Notas de leitura (1616): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (2) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Publicada em finais de 2015, este trabalho de Álvaro Nóbrega facilita-nos, pela abrangência do estudo, a tomar o pulso à realidade política e social da Guiné-Bissau através da sua complexidade sociocultural, como emergiram as elites, como houve um processo etiológico durante a chamada luta de libertação que acabou por desaparecer dando lugar a formas por vezes amalgamadas de gente de diferentes partidos, até com formação superior, com valores tradicionais, vive-se a perene tensão entre os políticos e os militares, estes às vezes também se juntam para fazerem negócios que dão pelo nome de exportação de madeiras exóticas, tráfico de armas ou narcotráfico. Álvaro Nóbrega compulsa com rigor estes elementos do Estado, disseca a orgânica das elites e expõe os diferentes aspetos que têm vindo a contribuir para dificultar a construção de uma democracia na Guiné-Bissau. É um livro de referência, facilita o debate para entender e procurar superar as disfuncionalidades de um Estado a quem chamam de frágil ou falhado.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (2)

Mário Beja Santos

Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau" (2003), e na sequência desse primoroso trabalho produziu Guiné-Bissau: "Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

Já se passou em revista o nascimento do Estado independente, subsequente a um período de luta, e revelaram-se equívocos e falhas em todo o processo da transição entre um Estado monopartidário para uma democracia pluralista. Agora Álvaro Nóbrega procura saber quem é a elite política da Guiné-Bissau, quem se pauta por princípios da modernidade e quem mantém valores tradicionais. E ajustadamente lembra-nos que o último estudo sério data do período colonial, intitulou-se Mudança sociocultural na Guiné Portuguesa, e foi o seu autor José Manuel de Braga Dias, 1974. Recorda os autores que estudaram o processo histórico da formação das elites, como os princípios por que se regia Cabral foram rapidamente pervertidos e voltaram a ganhar peso a ligação ao chão, a ligação patrilinear ao clã, a utilização de linguagem ofensiva para quem tem família fora da Guiné, invetivando-se a origem sírio-libanesa, cabo-verdiana ou são-tomense.

Como escreve:
“O Movimento Reajustador de 1980 espoletou uma reação popular e hostil aos mestiços, levando a que muita gente da praça, crioula portanto, fosse à procura da sua genealogia de referências étnicas que porventura já estavam algo esquecidas e as recuperasse. Outras optaram contrariados pelo exílio, dando início a um movimento migratória crioulo ou não-crioulo para o exterior. A crioulidade é expansiva e integra indivíduos sem quaisquer ligações biológicas europeias, cabo-verdianas, levantinas e até goesas. Tornaram-se eles próprios gente da praça, sendo vistos como brancos (por se considerar terem adotado os seus costumes) quando visitam as aldeias dos seus pais e avós. A este grupo pertencem, também, alguns islamizados que, pela educação de matriz portuguesa, alcançaram cargos administrativos importantes ainda no período colonial”.

O peso crioulo vai até aos bairros periféricos e aqui a elite moderna interseta-se com as tradicionais. Mas há um momento determinante que mudou a abrangência e a forma das elites: a chegada de novos grupos por via eleitoral. O conflito político-militar iniciado em 7 de junho de 1998 trouxe exacerbamento étnico, começou a falar-se do aparelho de Estado dominado pelos Balantas, do seu conflito permanente com os Mandingas, ganharam influência as elites religiosas, com as mudanças constantes de governos cresceu o apetite pela distribuição de lugares governamentais, lutas internas dentro dos próprios núcleos da elite governante, os interesses grupais, a avidez pela ascensão ao mando e controlo da ajuda internacional ou de fazer parte de um qualquer projeto prometedor de exportações ou até ligação ao negócio de armas ou droga, foi ganhando projeção. O autor não deixa de chamar a atenção para a presença feminina em atividades que ajudam a complementar o rendimento familiar e não deixa de ser curioso analisar os quadros que ele apresenta de distribuição dos deputados por profissão e partido, tendo também em conta a ligação ao funcionalismo público, o nível de escolaridade, onde estudaram, a pertença étnica.

Outra matéria que Nóbrega equaciona é a legitimidade histórica tradicional, isto é, as práticas políticas modernas precisam de se legitimar, em muitos casos, no primado das tradições, e dá exemplos que têm a ver com a retoma do fanado.

O peso político dos militares ganha expressão com o conflito político-militar iniciado em 1998, até aí Nino Vieira tinha mão de ferro sobre a conduta militar, sabia pagar lealdades e distribuir mordomias, isto para sublinhar que não havia uma separação efetiva entre a política e as armas.

A figura da Junta Militar espevitou violências, ressentimentos, descontentamentos, ajustes de contas, rivalidades, servir-se da tropa para conduzir negócios mais do que duvidosos: o abate ilegal de madeiras exóticas, o tráfico de armas, o narcotráfico. Estas Forças Armadas representam um pesado encargo que impediu, impede e impedirá qualquer saúde orçamental. Atenda-se ao que o autor escreve num livro publicado em 2015:
“É um exército de 1869 oficiais (42%), 1218 sargentos (27%) e 1371 soldados. Esta é a razão pela qual o Chefe da Missão Europeia de Apoio à Reforma das Forças Armadas da Guiné-Bissau, entretanto suspensa, declarou que a pirâmide invertida deveria ser normalizada, reduzindo o número anormal de oficiais e suboficiais fazendo aumentar o número de soldados. O problema é de natureza patrimonial. Como os salários são melhores em postos mais altos, há muita pressão dos homens para serem promovidos. A fim de os manter satisfeitos, de assegurar a sua lealdade e incumprimento das obrigações de parentesco, os chefes militares, que não estão condicionados ao controlo civil, são facilmente tentados a dar promoções. Soma-se a este problema a situação não resolvida pelos combatentes da Liberdade da Pátria”.

Todas as iniciativas para reduzir o número de efetivos não têm sucesso, cada vez que há um conflito reintegram-se militares desmobilizados juntamente com novas laivas de combatentes, a resistência dos militares à desmobilização tem a ver com uma vida civil que pouco lhes oferece, sentem que perdem estatuto social e rendimento. E igualmente o autor lembra que contrariamente à maioria dos funcionários públicos cujos salários são pagos com meses e meses de atraso, os salários militares são uma questão mais delicada.

Outro aspeto que se pode considerar relevante para as dificuldades da construção democrática na Guiné-Bissau tem a ver com o papel político das Forças Armadas, aí estão os golpes de Estado para o evidenciar. E o autor desdobra-se em exemplos: em 1999, Ansumane Mané vetou a candidatura de Saturnino da Costa para presidente do PAIGC, proibindo-o de participar no congresso; em 2004 o general Veríssimo Seabra vetou Aristides Gomes para Ministro da Defesa ou dos Negócios Estrangeiros; em 2007, Tagma Na Wai vetou a nomeação de Baciro Dabó para conselheiro presidencial, depois de ter pressionado para a sua exoneração de Ministro da Administração Interna.

São tudo menos pacíficas as relações entre políticos e militares. Atenda-se ao que escreve Nóbrega:
“O respeito pelo guerreiro, o sistema de recompensas e punições, as promoções e as depurações ajudaram a conter os descontentes, até ao dia 7 de junho de 1998. Os amadores, como diria Sori Djaló, passaram a profissionais e o poder político passou a estar refém de umas Forças Armadas que se autonomizaram. O sistema baseia-se na desconfiança e a nomeação de chefias militares próximas, bem como a incorporação de mancebos pertencentes à etnia governante, esta procura minimizar riscos, mas não os eliminam, daí a importância dos serviços de segurança, que vigiam militares e civis, e do sistema de defesa paralelo assente em forças paramilitares com capacidade de combate”. Tudo somado, temos um poder fraco que não controla o poder militar, dele é refém, o único poder temido é o externo. “Os militares estão conscientes de que há algures um limite que, se ultrapassado, pode acarretar a punição da comunidade internacional. É esse o único limite que temem”.

Vejamos agora o presidencialismo e a personalização do poder.


(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24641: Notas de leitura (1615): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (1) (Beja Santos)

Sem comentários: