sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24777: Manuscrito(s) (Luís Graça) (239): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VI: no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios" (Padre Manuel Vieira Aguiar, 1947)


Contracapa do livro de Padre Manuel Vieira de Aguiar - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp.




Uma das raras imagens do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. Fonte: Aguiar, 1947, op. cit., pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)


1. O Zé do Telhado (ou melhor,  a sua memória popular) calhou-me... "em herança". Tendo casado em Candoz, a escassos quilómetros de Fandinhães (terra da minha sogra, Maria Ferreira), na serra de Montedeiras, e a 5 minutos de carro da Casa do Carrapatelo na margem direito do rio Douro (o mais célebre dos assaltos cometidos por aquele "capitão de bandoleiros", no dia 8 de janeiro de 1852), tinha que me interessar pelas "lendas e narrativas" que sobre esta personagem oitocentista se contavam, ainda nos anos 70 do séc. XX.


Andava há anos para ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890). Só agora tive tempo e pachorra para o fazer. (E também só há uns anos conheci a casa-museu do Camilo, em São Miguel de Seide, V. N. Famalicão)

E, atrás do Camilo, vieram outros autores, não muitos, dos que tèm escrito sobre o banditismo no séc. XIX, em geral, e o Zé do Telhado, em particular.

Também, por "herança", veio-me parar às mãos o livro cuja contracapa se reproduz acima, da autoria do padre Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp). Está completo (falta-lhe a capa), mas em muito mau estado, muito manuseado, a precisar de ser restaurado e reencadernado.

O autor, Manuel Vieira de Aguiar, na altura era professor do ensino liceal, sendo irmão do padre Agostinho de Aguiar. ( Este foi pároco da freguesia de Paredes de Viadores, a que pertence Candoz, e também ele conterrâneo e condiscípulo do meu sogro, ao tempo da escola primária, e amigo da família Ferreira Carneiro, para cujos convívios costumava ser convidado: Já faleceu há já  uns largos anos; era natural de Mondim, uma lugar perto de Candoz, e a sua família foi um alforge de padres e freiras.)

O livro tem interesse documental, como monografia do concelho do Marco de Canaveses e as suas trinta e duas freguesias (na altura), incluindo Paredes de Viadores. Destaque também para as 75 gravuras (reproduçóes fotográficas), que ilustram o livro, e que são valiosas para o estudo etnográfico das gentes daquela terra do Vale de Tàmega, uma das tábuas do berço onde nasceu Portugal.

A I parte do livro  é dedicada à história dos concelhos, entretanto extintos em meados do séc. XIX, que deram origem ao atual concelho de Marco de Canaveses (Bem-Viver, Canaveses, Soalhães, Alpendurada, Santa Cruz de Riba Tàmega e Porto Carreiro) e ainda aos diversos coutos que existiam dentro do território do concelho, cinco privados (Alpendurada, Tabuado,Burgo de Entre-Ambos-os-Rios, Tuías, Vila Boa do Bispo) ou e 1 real (Vila Boa de Quires), Fala-se ainda de duas beetrias do Reino, Canaveses e Paços de Gaiolo (pp. 55-154).

Já agora, defina-se, muito sumariamente, esta terminologia, menos familiar ao leitor:

(i) beetria , segundo o dicionario, é uma  localidade medieval que gozava o direito  de eleger os seus senhores, um privilégio raro:
(ii) couto era "uma determinada zona de terra, limitada por autoridade real, com certos privilégios, isenções, justiça própria, pagando determninadas pensões aos senhorios diretos" (op, cit., pág. 117).

Havia os coutos privados (dos conventos e da nobreza) e os reais (estes também chamados "coutos de homiziados", ou sejam, de fugitivos à justiça: na prática, era um instrumento de "colonização interna", ficando situados  de preferência nas regiões fronteiriças; os criminosos encontravam ali protecçáo e guarida, com exceçáo para traidores, regecidas e hereges...); foram extintos em 1790.

A II parte do livro é dedicada à "história, demografia e corografia de cada uma das freguesias do a
tual concelho" (pp. 155-360),

E a III (e última) parte é sobre "o folclore em Marco de Canaveses" (pp.361-435): vida rural, com destaque para os trabalhos agrícolas (arranca do linho, espadeladas, malhas, vindimas, esfolhadas), folclore, romarias, serões, festas, bailados populares, superstições, janeiras e reis, carnaval, clamores e pregões, alminhas e cruzeiros, etc.

Na entrada sobre a freguesia de Penha Longa, o autor dedica 13 páginas (pp. 252-265) ao Zé do Telhado e o assalto ao Carrapatelo (passados 70 anos sobre a morte do assaltante e 85 sobre o assalto).

Socorre-se, no essencial, sobre fontes já nossas conhecidas, com destaque para o Camilo "Memórias do Cárcere), Eduardo Noronha ("Zé do Telhado"), Sousa Costa (" Grandes dramas judiciários"), Pinho Leal (" Portugal Antigo e Moderno"), e António Cabral ("Perfil de Camilo").

Antes de apresentar um resumo da vida do Zé Telhado, como militar e depois como bandoleiro, o autor descreve-o nestes termos:

"Alto, gordo, de agradãvel apresentação, génio indomável e fartas barbas, eis o temível capitão de bandidos, que, durante cerca de 10 anos, espalhou o terror do saque e do sangue em terras de Entre-Douro e Minho" (pãg. 252).

O tom é "hagiográfico": afinal trata-se de saber por que é que "os nobres e os ricos lhe davam guarida e proteção"... Já o povo tinha por ele "uma certa estima que, avolumada pela tradição, se transfornou, mais tarde, em admiração profunda" (sic) (pág, 252).

O autor resume o porquê em duas linhas: Porque se dizia que José do Telhado: 

(i) "cumpria sempre a sua palavra; 

(ii) "dívida contraída, na hora marcada se saldava"; 

e (iii) "distribuía pelos pobres o fruto das suas rapinas aos ricos"...

A sua vida "épica e aventurosa", resumida pelo autor (e que inclui o episódio da  da Guerra da Patuleia em que o José Teixeira da Silva conquista a medalha da "Torre e Espada") vai acabar em 1859, quando é preso... 

Vai acabar ou é apenas interrompida... Porque, na verdade, qual Fénix Renascida, há um Zé do Telhado II, em África, onde acaba por morrer, prematuramente,  em 1875, e do qual sabemos pouco, embora saibamos que a sua memória ainda hoje é lá recordada e respeitada... De facto, ao ser desterrado para a Angola, numa época em que ainda era escassa a presença portuguesa (uns poucos de milhares, na sua grande maioria desterrados), o Zé do Telhado torna-se um  dos seus seus primeiros povoadores e colonizadores.


2. Citemos então o autor, o padre Manuel Vieira de Aguiar, conterrâneo do meu sogro, José Carneiro (1911-1996), nascido portanto em Paredes de Viadores, Marco de Canaveses: 

(...) Por fim, cansado de desgostos, resolveu embarcar para o Brasil. A bordo já da barca Oliveira foi preso por iniciativa de Adriano José de Carvalho e Melo, ex-comissário da polícia do Porto [. Foi também Deputado da Nação e Governador Civil de Bragaça, nota de rodapé, pág. 260], e naquela data administrador do jovem, concelho do Marco de Canaveses, o qual soube soube do paradeiro do famoso facínora, por indicações de José Morgado, agora a ferros.

Conduzido à cadeia da Relação do Porto, ali respondeu por tentar fugir para o estrangeiro, sem a documentação precisa. É entregue depois ao Tribunal do Marco, onde corre o processo do crime de Carrapatelo, é é transferido da cadeia do Porto para a do Pisão, em Canaveses.

O seu companheiro de clausura, que também aguarda julgamento pelo crime de adultério com Ana Plácido, o insigne escritor Camilo Castelo Branco, atendendo à sua pobreza e amizade, conseguiu-lhe para defensor o seu próprio advogado, Dr. Marcelino de Matos, que gratuitamente lhe presta os seus serviços.

E em 25 de abril de 1861, realiza-se na casa da Quinta, freguesia de Tuias, um notável julgamento em que José do Telhado é condenado a degredo perpétuo e trabalhos públicos em África. Mais tarde, mediante recurso, foi a sentença reduzida pela Relação do Porto a simples degredo.

Na selva africana continua porém a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios. No exílio, longe da terra natal e da família, a estrela cintilante, tão nimbada de luz que por vezes nuvens negras envolveram, de novo surgia na sua velhice alquebrada. E assim, lá longe. no olvídio de tantos que o temeram e respeitaram, se findou esse bravo, de sentimentos generosos, que foi grande mesmo no crime.

É assim o destino de alguns homens tatuados com o sinete do génio!....

José Teixeira da Silva tinha qualidades como várias vezes demonstrou, de aguerrido, fidelíssimo soldado. Se, do regresso das lutas partidárias, mãos amigas o tivessem auxiliado, teria sido um homem de bem, honestíssimo. Se nas sendas tortuosas, nubladas da existência, alguém orientasse a sua juventude, tão inclinada à epopeia, ao maravilhoso, teria sido um chefe invencível, talvez mais dominador que Napoleão Bonaparte, mais temido que Júlio César, mais intrépido que Alexandre Magno.

Assim, abandonado às suas próprias forças, sem o amparo carinhoso da avara família humana, foi o que foi − um misto formidável de glória e infâmia, de grandeza e baixeza, de epopeias e tragédias. (pp. 260-262).


Não deixa de ser surpreendente este retrato, feito por um homem, sacerdote católico, que escreve em meados dos anos 40, no auge do Estado Novo. Já agora, não é de ignorar esta dedicatória do livro:  "ao Instituto para a Alta Cultura, Secretariado Nacional de Informação, Câmara Municiapl de Marco de Canavese e Junta da Província do Douro Litoral, que se dignaram patrocinar esta obra, a gratidáo reconhecida do autor"... 

Em 1945, recorde-se, tinha chegado aos écrãs das salas de cinema em Portugal, o filme de longa metragem, "Zé do Telhado", realizado por Armando de Miranda, com exteriores filmados perto de Candoz, na Serra de Montedeiras, e protagonizado pelo romàntico e popular ator Virgílio Teixeira, no papel principal. Um verdadeiro "western à portuguesa", disponível no You Tube, em versão integral, aqui (com a duração de cerca 86 minutos).

Um Zé do Telhado, vítima das "circunstâncias histórias" (as lutas fratricidas dos portugueses, na época do liberalismo), e de algum modo "reabilitado" pela História, também convinha à propaganda de um Estado Novo, "antidemoliberal": no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua (...) a realizar proezas", isto é, "subjuga os pretos (sic), funda prósperas roças, dirige negócios" (a expressão é de Manuel de Aguiar).

(Continua)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

2 comentários:

Anónimo disse...



Amigo Luís Graça, já poucos escrevem, poucos comentam . Estamos todos a ficar com as pilhas gastas. Tu és dos poucos que continuas a dar grandes provas de vitalidade.
Gostei de saber por ti do Zé Telhado, de quem pouco sabia, como a maioria dos portugueses, sabem o nome e a fama de bandoleiro, que roubava aos ricos e dava aos pobres. Nem sabia que sobre ele já tantos escritores tinham escrito.
É natural que ele também te motivasse a ti pois além do mais era de perto de Candoz a outra terra que tu amas mais. Gostei de ler e espero por mais capitulos. Estou a pensar comprar também " As Memórias do Cárcere de Camilo.
Obrigado. Grande abraço

Francisco Baptista

Fernando Ribeiro disse...

Estou um pouco como o camarada Francisco Baptista. No Porto, o Zé do Telhado é uma referência vaga, de uma espécie de Robin dos Bosques à portuguesa, que passou pela Cadeia da Relação da cidade antes de ser deportado para Angola. Só se fala nele quando se visita a cadeia (atual Centro Português de Fotografia) e se espreita a cela onde Camilo Castelo Branco viu o Rio Douro aos quadradinhos. Nessa ocasião fala-se de Ana Plácido, como não podia deixar de ser, e por arrastamento fala-se do Zé do Telhado também.

O encontro entre Camilo Castelo Branco e o Zé do Telhado na cadeia não terá sido o primeiro que eles tiveram. Muito tempo antes, o próprio Camilo foi assaltado pelo Zé do Telhado, numa ocasião em que viajava de diligência entre Vila Real e o Porto! O próprio Camilo fala no assalto num dos seus incontáveis livros (não me recordo de qual) e chama patife, facínora, ou outros nomes equivalentes, ao seu assaltante. Mal sabia ele que iria encontrar-se de novo com o antigo salteador na cadeia e que iria refazer a imagem que tinha feito dele.

Durante a minha comissão militar em Angola nunca ouvi falar do Zé do Telhado, nem uma só vez. Inclusivamente, no meu grupo de combate havia dois militares negros naturais de Malanje e nunca os ouvi fazer qualquer referência a ele. Já os brancos de Angola admiravam outras personagens, que não o Zé do Telhado; admiravam Paulo Dias de Novais, Salvador Correia de Sá, Silva Porto, Norton de Matos, etc.