sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24778: Os nossos seres, saberes e lazeres (596): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (125): Em Leiria, pedindo muita desculpa por lhe ignorar os tesouros (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Não era uma visita de médico, mas havia as limitações de um curto fim de semana, ia-se um tanto às cegas, houve uma adorável viagem de comboio, saciou-se a fome numa viagem de comboio pela linha Oeste, o que permite seguir o itinerário dos arrabaldes lisboetas, os sucessivos tecidos do chão saloio, pôr os olhos na fecundidade do solo desse Oeste que dá boas frutas e legumes, e depois a paisagem de pinhal, incêndios recentes trouxeram a praga do eucalipto, estranha-se a inércia das autoridades em consentirem em tal atentado. Este segundo dia foi preenchido com algumas visitas de estalo, como aqui se mostra, desde uma exposição de Sofia Areal, o Centro de Diálogo Intercultural e Religioso, a grandessíssima surpresa que é o Museu de Leiria e, não menos deslumbrante, o moinho de papel, marcado pelo trabalho do arquiteto Siza Vieira. E a seu tempo aqui se voltará, em romagem ao castelo medieval e arredores.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (125):
Em Leiria, pedindo muita desculpa por lhe ignorar os tesouros (2)

Mário Beja Santos

Neste segundo e último dia de estadia em Leiria, tendo verificado à noitinha do primeiro que há um verdadeiro estendal de património entre o castelo medieval e o rio Lis, impõem-se opções drásticas, ser comedido no deambular pelo casco histórico, e selecionar com rigor os lugares a visitar. Começa-se pela antiga delegação do Banco de Portugal, obra do arquiteto luso-suíço Ernesto Korrodi, uma mistura de classicismo romântico e do despertar da Arte Nova, temos agora no seu interior, muitíssimo bem intervencionado, um espaço expositivo digno de visitas, verificara logo no primeiro dia a ver ali uma exposição de Sofia Areal, santa do meu culto, não quis perder a oportunidade de a visitar, gosto muito da dialética que ela sabe impor entre formas e luz, cores fosforescentes onde não falta o negro, onde é permanente a relação entre o desenho e a pintura, é no uso do papel que ela é mestre a fazer despontar energias primordiais e a combinação do gestual com o orgânico. A exposição incluía, aliás, um elucidativo vídeo do seu trabalho em estúdio, onde se releva a natureza deste relacionamento e até uma certa escrita automática que evoca o surrealismo. Há artistas de quem podemos dizer que fazemos o reconhecimento ao primeiro olhar, tal como há outros de quem adivinhamos a parentela das escolas, dos ensinamentos obtidos, das analogias com o mestre. Sofia Areal é completamente singular, iridescente, tumultuosa, problemática. Aqui a saúdo nestas três imagens.

Está decidido: um pouco de passeio, à laia de despedida, o castelo de Leiria, o Museu da Imagem em Movimento ficarão para segundas núpcias, agora vou caminhar para o Centro de Diálogo Intercultural de Leiria, procuro estar atento aos pormenores, acho esta ligação na rua do Arco um verdadeiro achado.
Pormenor da rua do Arco

Este Centro de Diálogo Intercultural pretende interpretar a presença ao longo dos séculos de três importantes religiões em Leiria, o catolicismo, o judaísmo e o islamismo, está sediado na Igreja da Misericórdia, edifício muito bem restaurado, painéis elucidativos do que timbra qualquer uma destas três religiões do Livro, belas imagens, etc. Visto o interior do edifício sentei-me para contemplar melhor o trabalho do altar-mor e do teto. Aqui fica o registo em duas imagens.
Nova etapa, a Igreja de Santo Agostinho e o seu Convento onde se encontra o Museu de Leiria que tem claustro de planta quadrangular. Oferecem-me uma pequena brochura onde se esclarece que este museu ficou a deve a sua concretização aos esforços persistentes de Tito Lacher (1865-1932), que levou á criação do Museu Regional de Obras de Arte, Arqueologia e Numismática de Leiria. Em 2006, iniciou-se o processo de restauro do Convento de Santo Agostinho, monumento construído a partir de 1577 (a igreja) e 1570 (o complexo conventual), é aqui que habita o Museu de Leiria. O programa museológico abrange, para além do acervo do antigo museu, as coleções artísticas municipais e a reserva arqueológica. É um museu que se organiza em dois espaços expositivos: no primeiro, uma exposição de longa duração, que faz uma leitura geral da História do território, e o segundo é reservado a exposições temporárias que permitem aprofundar temáticas e coleções específicas.
Entrada do Museu de Leiria, uma instituição cultural recheada de prémios
Claustro quadrangular do Convento de Santo Agostinho/Museu de Leiria

Passo pela arqueologia como cão por vinha vindimada, embora, confesso, rendido ao excecional trabalho museológico e museográfico, mas isto de ossadas, pedras e moedas romanas tenho tido a dita de conhecer com uma certa quilometragem. Detive-me diante de duas obras soberbas de pintura, uma festa de aldeia, tipicamente flamenga, obra que saiu da oficina de Dirk Bouts, o que me maravilha é a organização do espaço, uma festa morada, há para ali regozijos e dança, gente enfastiada ou com muito álcool na cabeça e fora deste compartimento, onde há mesmo marcas da natureza, estende-se até ao infinito a paisagem, indiferente à folia que decorre no espaço compartimentado, e as cores são soberbas. A outra prende-se com um motivo tipicamente religioso, é atribuída ao pai de Josefa de Óbidos, está marcada por uma candura esplendorosa, o Menino Jesus afinal também se magoava e não havia qualquer motivo para esconder aquela reação tão própria dos homens, a manifestação da dor.
Menino Jesus do Espinho, atribuído a Baltazar Gomes Figueira, c. 1640-1650

Dentro do museu decorria uma exposição intitulada CORPVS, Arte e Património Eucarísticos na diocese de Leiria-Fátima, exibindo uma série de testemunhos materiais que traduzem a forma de pensar a Eucaristia em cada tempo, o que permite ao visitante observar cálices, patenas, casulas, dalmáticas, castiçais, lampadários e até uma espetacular custódia do século XVIII.
Custódia do século XVIII

No final da visita, ainda deu para apreciar, dentro da temática religiosa, arte plástica como esta Última Ceia, um modernismo um tanto ingénuo, com originalidade de uma pose para a fotografia, ou uma cena teatral, porventura um relevo destinado para templo religioso. Tocou-me profundamente.
A Última Ceia

Vamos agora ao último itinerário do dia, um fabuloso moinho do papel, um dos ícones patrimoniais de Leiria. Equipamento reabilitado pelo arquiteto Siza Vieira, é um dos ex-libris da história da indústria leiriense. 1411 consagra o início da história do moinho do papel de Leiria, numa época em que a indústria da moagem era determinante para o desenvolvimento económico, este moinho é um dos primeiros na Península Ibérica. Nas margens do rio Lis, o moinho destaca-se pelas estruturas dos antigos rodízios que submergem no edifício, e pelas grandes azenhas que sublimam a imagem de uma indústria artesanal de outrora. No interior, vivencia-se o processo tradicional de produção de papel, em que os visitantes podem participar, e de moagem de cereais. No final, o visitante pode comprar as farinhas produzidas com a energia do rio.
É admirável este complexo museológico e a museografia é irrepreensível pelo caráter pedagógico que revela a todo o momento, ora vejam.

Está na hora de regressar, na vinda tomou-se o comboio de Entrecampos até Leiria, uns abordáveis cinco euros e satisfez-se um antigo desejo de voltar a andar de comboio pela linha do Oeste. Regressa-se de autocarro, com uma certa tristeza, não houvesse afazeres inadiáveis, era certo e seguro que se subia ao castelo. Mas há mais marés que marinheiros e a vontade de regressar é irreprimível.
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Nota do editor

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