1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Coisas & loisas do meu tempo de menino e moço
Foi precisamente à luz de um candeeiro a petróleo que dei os meus primeiros passos de vida. Depois, veio o aprender de o a, e, i, o, u, e um pouco mais tarde a desejada bênção da luz elétrica. Tempos difíceis onde o trabalho, principalmente no campo, era o elemento mais certo para parte de uma comunidade cuja faina ao “sabor” das calamidades não se apresentava desrespeitada pelos magros tostões ganhos na base do suor derramado na imensidão da planície.
Quando parti para a edição do livro “ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO – MEMÓRIAS, ESTÓRIAS E GENTES”, o 10º dos 11 já editados, admiti que a tarefa que me esperava assumia-se bastante difícil. Encarar e enquadrar no texto geral o fator da intemporalidade, de construções físicas francamente alteradas, por exemplo, ou trabalhar, com minuciosidade a exatidão das eras, das festas religiosas, da origem e evolução do povoado, do cante alentejano e dos seus ilustres cantadores, das festividades originárias de uma plebe que soube comer o pão que o diabo amassou, ou de gentes que sofreram os auspícios que o sistema político impunha, ou de lugares da minha aldeia que paulatinamente se foram transformando, ou ainda as profissões que se foram extinguindo, enfim, uma panóplia de recolha de informações que levaram dias, meses e anos a trabalhar.
Todavia, a obra que deixo ao povo, o meu, será, de certeza, uma mais valia que tem como princípio básico quem somos e de onde viemos. Há gráficos que falam da evolução populacional de entre outros temas que ficarão a posteridade, ou do fluxo de pessoas que procuraram outros destinos, nomeadamente Lisboa e seus arredores, ou da migração para países onde por lá fizeram as suas vidas, proporcionando a alguns ao seu solo sagrado, mas com outras condições de vida.
A obra é feita de eloquentes factos que nos enchem de orgulho.
Um almocreve de outros tempos
Os almocreves foram outrora pessoas que lidavam diariamente com animais, sendo os trabalhos no campo, uma das suas principais ocupações. Durante a idade média, até a tempos mais recentemente, os almocreves exerceram, também, a função de agentes intracomunitários, sendo indispensáveis no fornecimento de bens às comunidades que viviam dispersas pelas aldeias, vilas e cidades.
Em Aldeia Nova de São Bento os almocreves marcaram, na realidade, gerações. Foram homens cuja disponibilidade de esforços físicos fizeram parte do seu dia-a-dia. Distribuíam-se pelos lavradores da terra: os senhores Bártolo, Luís Madeira, família Barroso, Guanito, Luís de La Féria, Morgado, de entre outros, e por lá trabalhavam, mas sem folgas ou férias que se protelavam por anos consecutivos. Ou seja, trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol e sempre de cabeça erguida. Eram, no fundo, assalariados, mas com um trabalho fixo.
Claro que a jorna não faltava em casas que, à época, não se viam obrigadas a mendigarem, uma vez que o salário não faltava no final de mais uma semana de trabalho que nesses tempos marcavam o pagamento das respetivas jornas. Tanto mais que o almocreve trabalhava de segunda-feira até ao domingo, logo os tostões ganhos traduziam-se numa vida mais tranquila.
Sabia-se que as dívidas da semana feitas na mercearia seriam pagas com o recebimento do pré, isto é, logo na semana seguinte, o que proporcionava ao merceeiro confiança num freguês que não apresentava no seu livro de querelas a condição de mau devedor. Portanto, era um privilégio ser-se almocreve.
As funções de um almocreve dividiam-se consoantes as necessidades do lavrador. Ora era o lavrar da terra para mais um alqueve, ora era o rasgar de regos para as sementeiras, ou para transportar os cereais para as eiras onde as debulhadoras fixas se instalavam, ou transportar o pessoal que por altura da apanha da azeitona, ou das mondas e das ceifas seriam transportadas nos carros de bestas, ou, ainda, em pequenos trabalhos solicitados pelo patrão. Limpezas das cavalariças ou da mansão do seu proprietário, eram canseiras que o almocreve não escusava.
A azáfama dos almocreves pelas ruas da nossa aldeia era intensa. O transitar pelas artérias onde as calçadas em pedra suportavam as rodas dos carros que possuíam um aro em ferro, apresentavam-se propícias para estridentes sons que levavam, amiúde, à curiosidade de crianças que não evitavam saltar para a “arrebicha” de uma “viatura” que para eles, garotos, era simples delícias.
Recordo ver ranchos de pessoas transportadas em carros de animais a caminho dos seus locais de trabalho. Lembro, ainda, a atividade dos abegões em volta de um carro que por vezes tinha necessidade de uma revisão.
Almocreves, uma profissão que, entretanto, se esfumou no tempo!
(ii) Ferradores
O mestre Gregório
Naquele espaço, fértil em amizades, o mestre Gregório trabalhava minuciosamente as ferraduras para o gado equídeo e para os asininos. Ou seja, ali se juntavam, mulas, machos, cavalos, éguas, burros e burras. Todos estes animais tinham ferraduras apropriadas para os seus cascos.
A profissão de ferrador conservou-se ao longo do tempo em Aldeia Nova. A geração Mira Monge, o João, o Manuel e o Lourenço, um homem que, entretanto, se instalou em Vale de Vargo, foram irmãos que deram continuidade ao ofício e que se entregaram à tarefa com uma enorme determinação. A oficina localizava-se no Largo dos Madalenos, sendo propriedade do João e do Manuel e teve como seu sucessor o Jana, como o povo o conhecia, mas sendo o seu nome próprio João.
O Jana, para além da sua profissão, a de ferrador, foi um excelente cantador do cante alentejano, pertencendo, inclusive, ao Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento. Recordo visitá-lo e vê-lo entregue à arte em moldar e trabalhar o ferro e de onde saíam as ferraduras para “calçar” as bestas.
Há nomes mesmo engraçados
Desde o Porca Chupadiça
Ao Manel Esfrangalhado
O Safarreta, o Catarro,
O Bento em Crendo, o Falcato,
Eu vi o Manel Macaco
Rir do António Chaparro
Por vezes quando me agarro
Recordar é uma teia
O Zé Engancha, o Enleia,
João Bufa, Esgaravana,
Peido, Peidinho e Peidana,
Os nomes da minha Aldeia.
Rei-Varrasco, Escalfa Cães,
O Sacadiço e o Farupa,
Catrapingas, Catraputa,
Sete e Meio e Dois Tostões,
Alho Bufo e Zé Rações,
O Gadelha e o Pelado,
O Beija-a-Poia, o Cagádo,
Facadas e Saltaréu,
Canivete e Faquineu,
Há nomes mesmo engraçados.
Gato Cravo e Paneirinho,
O Zé da Mona, o Garrocho,
O Galdrapas, o Carocho
O Chorrilho e o Chibinho,
O Tigre e o Carapezinho,
O Carola e o Belicha,
Meia-Nalga, Chico Espicha,
O Estrafique, o Biscoito,
Pé-Leve e Luís Dezoito,
Há o Porca Chupadiça.
Pata Curta, Nabo Seco,
Cu de Chumbo, Coradinhas.
O Mil Kilos, o Carinhas,
O Caga Azeite, e o Carapeto,
Cacetadas, Carapeto,
Rasga-a-Manta e Cu Suado,
Zé do Saco e Saramago,
O Mau Bofe e o Cachola,
O Nariz D’Aço, o Engrolo,
Mais o Manel Esfrangalhado
Autor
Francisco Rafael Rodrigues,
Por alcunha o Carinhas
(iv) Locais de Aldeia Nova de São Bento
MOTE
Anda tudo em alvoroçoP`ras bandas da varandinha
Porque o monte do Encalho
Namora o Monte da Vinha
Está à rasca o Carrasquinho
Com a Tapada do Facho
E até a Horta de Baixo
Discutiu com os Alpendrinhos
O Outeiro do Almeirinho
Guerreou com Vale Pedrouços
Vai p`rá farra o Monte Poço
Ao sopapo e aos bofetões
Avança o Poço dos Cães
Anda tudo em Alvoroço
Há cacetada bravia
Lá p`rós lados da Charneca
O Carapetal aperta
Com o Poço do Tio Matias
Até mesmo na Vigia
Há quem diga que a Laginha
Anda louca embeiçadinha
Pelo Monte do Africano
Pandemónio Franciscano
P`rás bandas varandinha
Lá na nora do Malquarto
Todos vivem numa fona
Madalenos e Atafona
Não falam do Bairro Alto
A Vareta deu um salto
Fugiu com o Monte dos Talhos
Os Alpendres não quer ralhos
Que a Fonte-Branca incomoda
De mini-saia a Abóbada
Vai ao Monte do Encalho
Va haver um casamento
Porque há muito que ela chora
A Horta das Pegas namora
Com o Moinho de Vento
O Poça de Lobo atento
Diz para a Horta de Cima
A Cova do Homem é minha
Crespo, Vale Covo e João Gago,
Pias, Ficalho e Vale Vargo
Namora o Monte da Vinha
Autor
Francisco Rafael Rodrigues,
Por alcunha o Carinhas (16/7/1983)
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. últimos postes desta série em:
11 comentários:
almocreve
(al·mo·cre·ve
nome masculino
Indivíduo condutor de bestas de carga (em viagens periódicas ou não). = ARRIEIRO, ARROCHEIRO, AZEMEL, AZEMELEIRO, RECOVEIRO
etimologia; Origem etimológica:árabe al-mukari.
"almocreve", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/almocreve.
Zé: é interessante a aceção, mais abrangente, que tem, na tua terra, a palavra, de origem árabe, "almocreve"...No Oeste, era o homem que conduzia um conjunto de burros ou machos, ligados uns aos outrros ("em comboio"), transportando mercadorias de uma lado para o outro, em geral percorrendo distâncias razoáveis...
Ferrel, no concelho de Peniche, era uma terra de almocreves e de burros...Uns e outros extinguiram-se... O nosso camarada Joaquim Jorge escreveu sobre eles, no livro que publicou sobre a sua terra... Uma terra, acrescente-se, que deu uma companhia inteira (150 homens) para a "nossa guerra"...
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2015/08/guine-6374-p15001-memoria-dos-lugares.html
Luís, meu amigo, o "al", de origem árabe como bem referes, tem uma forte influência no sul do país, uma convicta razão que se prende com a presença dos árabes por estas bandas, ou seja, no Alentejo e Algarve.
Abraço,
Zé Saúde
O almocreve alentejano era um "polivalente"...É isso. Na minhá região, com a mecanização da agricultura (mais cedo do que noutros sitios), já não tenho memória dos almocreves...
Dos vendedores ambulantes com carroça puxada por macho, lembro-me dos peixeiros (que "faziam" as aldeias) e do "pitrolino" (que vendia petróleo, azeite, etc., incluindo na vila). Ah!, e dos moleiros, sempre enfarinhados. ... Havia cento e tal moinhos de vento no concelho da Lourinhã nos anos 50
...
Outro vocábulo da nossa gíria, que não vem grafado nos dicionários, o "pitrolino"...
Zé, lembremos aqui outras profissões que desapareceram, no campo e na cidade, com as mudanças operadas pelo desenvolvimento da econonia de mercado, os transportes, a urbanização, o consumo, etc.:
(i) leiteiro e/ou queijeiro que vendia porta a porta;
(ii) aguadeiro;
(iii) cocheiro;
(iv) correeiro (faz arreios albardas para os cavalos, machos e burros):
(v) sapateiro;
(vi) latoeiro / funileiro (no Norte tem outro nome que agora me falha);
(vii) limpa-chaminés;
(viii) borreiro (limpava comprava as as borras dos depósitos do vinho);
(ix) tanoeiro;
(x) amola-tesouras;
(xi) parteira/aparadeira;
(Xii) barbeiro-sangrador;
(xiii) boticário;
(xiv) alfaiate;
(xv) chapeleiro;
(xvi) taberneiro;
(xvii) vendedor de carvão...
São alguns dos ofícios e profissões extintos ou em extinção... De que me lembro às seis e tal da manhã.
Caldeireiro... Diz-se no Norte. Trabalha o cobre, a folha de Flandres... Faz alambiques, caldeiras, artigos de latoaria...
Deixem-me acrescentar mais alguns ofícios e profissões que desapareceram com a industrialização e o êxodo da população rural para as cidades e para o estrangeiro... E dentro das próprias cidadês, com a "modernização" (caso do aguadeiro e do limpa-chaminés, já citados).
A lista não é exaustiva...
(xviii) moleiro
(xix) lavadeira (no rio ou lavouro)
(xx) caiador (no sul, pintavam-se as casas com cal)
(xxi) varina / vendedora de peixe
(xxii) saltimbanco
(xxiii) vendedor de água fresca e capilé
(xxiv) quinquilheiros
(xxv) capelistas
(xxvi) outros vendedores ambulantes ou em feiras;
(xxvii) ardina
(xxviii) vendwdor de banha da cobra nas feiras
(xxix) modista / costureira / bordadura / alfaiate
(xxx) ajuntadeira (costureira de botas, sapatos, artigos de pele)
(Continua)
Queria dizer "bordadeira"... E podíamos acrescentar: tecedeira...
Falando do cocheiro (condutor de carroças, charretes, carruagens...), temos que falar do segeiro, o construtor de veículos de tracção animal. Ambos vítimas do automóvel...
Nas casa ricas o cocheiro passou a "chaufeur" ou chofer...
Mas há (havia) mais:
fotógrafo "à lá minuta";
telefonista dos correios
boletineiro (entregava os telegramas)
engraxador de sapatos
calceteiro...
Outros vendedores ambulantes, sazonais, adaptaram-se aos tempos modernos: o assador e vendedor de castanhas...
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