sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24779: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (12): Almocreves e ferradores, mais alcunhas e locais da Aldeia Nova de São Bento (José Saúde)



O candeeiro a petróleo


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.    


 Coisas & loisas do meu tempo de menino e moço


Camaradas,

Foi precisamente à luz de um candeeiro a petróleo que dei os meus primeiros passos de vida. Depois, veio o aprender de o a, e, i, o, u, e um pouco mais tarde a desejada bênção da luz elétrica. Tempos difíceis onde o trabalho, principalmente no campo, era o elemento mais certo para parte de uma comunidade cuja faina ao “sabor” das calamidades não se apresentava desrespeitada pelos magros tostões ganhos na base do suor derramado na imensidão da planície.

Fui uma das muitas crianças que se habituaram a conviver com as carências deparadas no dia-a-dia, porém, e afirmo-o seguramente, que jamais soube o que fora andar descalço, ou falhas alimentares em casa, vestindo sempre aprimoradas roupinhas e esse minino cresceu, fez-se homem e conheceu uma vida repleta de histórias, sendo também que existem outras estórias as quais não renegarei. Ah, também fui militar (Ranger) e conheci o conflito da Guiné.

Quando parti para a edição do livro “ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO – MEMÓRIAS, ESTÓRIAS E GENTES”, o 10º dos 11 já editados, admiti que a tarefa que me esperava assumia-se bastante difícil. Encarar e enquadrar no texto geral o fator da intemporalidade, de construções físicas francamente alteradas, por exemplo, ou trabalhar, com minuciosidade a exatidão das eras, das festas religiosas, da origem e evolução do povoado, do cante alentejano e dos seus ilustres cantadores, das festividades originárias de uma plebe que soube comer o pão que o diabo amassou, ou de gentes que sofreram os auspícios que o sistema político impunha, ou de lugares da minha aldeia que paulatinamente se foram transformando, ou ainda as profissões que se foram extinguindo, enfim, uma panóplia de recolha de informações que levaram dias, meses e anos a trabalhar.

Todavia, a obra que deixo ao povo, o meu, será, de certeza, uma mais valia que tem como princípio básico quem somos e de onde viemos. Há gráficos que falam da evolução populacional de entre outros temas que ficarão a posteridade, ou do fluxo de pessoas que procuraram outros destinos, nomeadamente Lisboa e seus arredores, ou da migração para países onde por lá fizeram as suas vidas, proporcionando a alguns ao seu solo sagrado, mas com outras condições de vida.      

A obra é feita de eloquentes factos que nos enchem de orgulho.  

(i) Almocreves    


Um almocreve de outros tempos

      

Os almocreves foram outrora pessoas que lidavam diariamente com animais, sendo os trabalhos no campo, uma das suas principais ocupações. Durante a idade média, até a tempos mais recentemente, os almocreves exerceram, também, a função de agentes intracomunitários, sendo indispensáveis no fornecimento de bens às comunidades que viviam dispersas pelas aldeias, vilas e cidades.

Em Aldeia Nova de São Bento os almocreves marcaram, na realidade, gerações. Foram homens cuja disponibilidade de esforços físicos fizeram parte do seu dia-a-dia. Distribuíam-se pelos lavradores da terra: os senhores Bártolo, Luís Madeira, família Barroso, Guanito, Luís de La Féria, Morgado, de entre outros, e por lá trabalhavam, mas sem folgas ou férias que se protelavam por anos consecutivos. Ou seja, trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol e sempre de cabeça erguida. Eram, no fundo, assalariados, mas com um trabalho fixo.

Claro que a jorna não faltava em casas que, à época, não se viam obrigadas a mendigarem, uma vez que o salário não faltava no final de mais uma semana de trabalho que nesses tempos marcavam o pagamento das respetivas jornas. Tanto mais que o almocreve trabalhava de segunda-feira até ao domingo, logo os tostões ganhos traduziam-se numa vida mais tranquila.

Sabia-se que as dívidas da semana feitas na mercearia seriam pagas com o recebimento do pré, isto é, logo na semana seguinte, o que proporcionava ao merceeiro confiança num freguês que não apresentava no seu livro de querelas a condição de mau devedor. Portanto, era um privilégio ser-se almocreve.

As funções de um almocreve dividiam-se consoantes as necessidades do lavrador. Ora era o lavrar da terra para mais um alqueve, ora era o rasgar de regos para as sementeiras, ou para transportar os cereais para as eiras onde as debulhadoras fixas se instalavam, ou transportar o pessoal que por altura da apanha da azeitona, ou das mondas e das ceifas seriam transportadas nos carros de bestas, ou, ainda, em pequenos trabalhos solicitados pelo patrão. Limpezas das cavalariças ou da mansão do seu proprietário, eram canseiras que o almocreve não escusava.

A azáfama dos almocreves pelas ruas da nossa aldeia era intensa. O transitar pelas artérias onde as calçadas em pedra suportavam as rodas dos carros que possuíam um aro em ferro, apresentavam-se propícias para estridentes sons que levavam, amiúde, à curiosidade de crianças que não evitavam saltar para a “arrebicha” de uma “viatura” que para eles, garotos, era simples delícias.

Recordo ver ranchos de pessoas transportadas em carros de animais a caminho dos seus locais de trabalho. Lembro, ainda, a atividade dos abegões em volta de um carro que por vezes tinha necessidade de uma revisão.

Almocreves, uma profissão que, entretanto, se esfumou no tempo!

(ii) Ferradores

     O mestre Gregório


Conheci-o com tenra idade! Homem educado, amigo, sábio na sua arte e sempre afável para com o próximo, o mestre Gregório vestia, diariamente, o habitual fato-macaco (azul) e ei-lo a cruzar as ruas entre a sua casa no Largo da Igreja e a sua oficina, situada defronte à Sociedade 5 de Outubro.

Naquele espaço, fértil em amizades, o mestre Gregório trabalhava minuciosamente as ferraduras para o gado equídeo e para os asininos. Ou seja, ali se juntavam, mulas, machos, cavalos, éguas, burros e burras. Todos estes animais tinham ferraduras apropriadas para os seus cascos.

Contava o povo que, em tempos muito recuados, as sobras dos cascos dos animais eram triviais pitéus para a presença de lobos na aldeia, ouvindo-se os seus uivos ao longo da noite e a plebe assustava-se. Os ferradores, nessas eras, possuíam uma abastada agenda diária de trabalho, dado que a tração animal era, afinal, a única força motora para trabalhar a terra. Neste contexto, ao final do dia não sobrava tempo para uma atempada varredela aos restos dos cascos que por lá ficavam. Tanto mais que a luz elétrica nas ruas era, nesses recuados tempos, vã.

O mestre Gregório fez, na verdade, escola numa arte que sempre o motivou. O ferrar implicava o arrancar de velhas ferraduras e de cravos já gastos pelo muito andamento do gado por caminhos velhos e estradas pulverizadas com pedras.

Do mestre Gregório guardo excelentes recordações. Revejo-o no seu dócil manusear de ferramentas literalmente úteis à sua profissão; da preparação dos cascos dos animais; da turquês para o arrancar dos cravos; do martelo para os cravar; da lima que alisava esses mesmos cascos; o avental para colocar as patas dos animais nas suas pernas; a feitura das ferraduras num lume feito na oficina com carvão de pedra, como na altura se dizia, e com pura veracidade; o trabalhar os moldes; o curvar do ferro na bigorna e tudo à base do fogo; enfim, uma profissão que paulatinamente se foi perdendo no tempo.

Resta relembrar e trazer a público a profissão de ferreiro onde a nossa aldeia foi abundante, existindo vários ferradores que quase não davam mãos a medir para satisfazer as solicitações agregadas à imensa quantidade de animais então existentes. A aldeia e a serra, repleta de famílias, foram assíduos fregueses destas oficinas.

Hoje, as máquinas agrícolas ultrapassaram a força animal de antigamente. Os ferreiros foram substituídos pelas oficinas. Fica, porém, a certeza que o mestre Gregório foi um conterrâneo que deixou história como ferrador na nossa terra.

Ferrador, uma profissão que se conservou ao largo de anos!



Jana trabalhando a arte de ferrador


A profissão de ferrador conservou-se ao longo do tempo em Aldeia Nova. A geração Mira Monge, o João, o Manuel e o Lourenço, um homem que, entretanto, se instalou em Vale de Vargo, foram irmãos que deram continuidade ao ofício e que se entregaram à tarefa com uma enorme determinação. A oficina localizava-se no Largo dos Madalenos, sendo propriedade do João e do Manuel e teve como seu sucessor o Jana, como o povo o conhecia, mas sendo o seu nome próprio João.      

O Jana, para além da sua profissão, a de ferrador, foi um excelente cantador do cante alentejano, pertencendo, inclusive, ao Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento. Recordo visitá-lo e vê-lo entregue à arte em moldar e trabalhar o ferro e de onde saíam as ferraduras para “calçar” as bestas.
      


 (iii)   Mote para as alcunhas na aldeia 

 Os nomes da minha Aldeia
Há nomes mesmo engraçados
Desde o Porca Chupadiça
Ao Manel Esfrangalhado
O Safarreta, o Catarro,
O Bento em Crendo, o Falcato,
Eu vi o Manel Macaco
Rir do António Chaparro
Por vezes quando me agarro
Recordar é uma teia
O Zé Engancha, o Enleia,
João Bufa, Esgaravana,
Peido, Peidinho e Peidana,
Os nomes da minha Aldeia.
Rei-Varrasco, Escalfa Cães,
O Sacadiço e o Farupa,
Catrapingas, Catraputa,
Sete e Meio e Dois Tostões,
Alho Bufo e Zé Rações,
O Gadelha e o Pelado,
O Beija-a-Poia, o Cagádo,
Facadas e Saltaréu,
Canivete e Faquineu,
Há nomes mesmo engraçados.
Gato Cravo e Paneirinho,
O Zé da Mona, o Garrocho,
O Galdrapas, o Carocho
O Chorrilho e o Chibinho,
O Tigre e o Carapezinho,
O Carola e o Belicha,
Meia-Nalga, Chico Espicha,
O Estrafique, o Biscoito,
Pé-Leve e Luís Dezoito,
Há o Porca Chupadiça.
Pata Curta, Nabo Seco,
Cu de Chumbo, Coradinhas.
O Mil Kilos, o Carinhas,
O Caga Azeite, e o Carapeto,
Cacetadas, Carapeto,
Rasga-a-Manta e Cu Suado,
Zé do Saco e Saramago,
O Mau Bofe e o Cachola,
O Nariz D’Aço, o Engrolo,
Mais o Manel Esfrangalhado 

Autor
Francisco Rafael Rodrigues,
Por alcunha o Carinhas


(iv) Locais de Aldeia Nova de São Bento

MOTE 

Anda tudo em alvoroço
P`ras bandas da varandinha
Porque o monte do Encalho
Namora o Monte da Vinha 

Está à rasca o Carrasquinho
Com a Tapada do Facho
E até a Horta de Baixo
Discutiu com os Alpendrinhos
O Outeiro do Almeirinho
Guerreou com Vale Pedrouços
Vai p`rá farra o Monte Poço
Ao sopapo e aos bofetões
Avança o Poço dos Cães
Anda tudo em Alvoroço 

Há cacetada bravia
Lá p`rós lados da Charneca
O Carapetal aperta
Com o Poço do Tio Matias
Até mesmo na Vigia
Há quem diga que a Laginha
Anda louca embeiçadinha
Pelo Monte do Africano
Pandemónio Franciscano
P`rás bandas varandinha 

Lá na nora do Malquarto
Todos vivem numa fona
Madalenos e Atafona
Não falam do Bairro Alto
A Vareta deu um salto
Fugiu com o Monte dos Talhos
Os Alpendres não quer ralhos
Que a Fonte-Branca incomoda
De mini-saia a Abóbada
Vai ao Monte do Encalho 

Va haver um casamento
Porque há muito que ela chora
A Horta das Pegas namora
Com o Moinho de Vento
O Poça de Lobo atento
Diz para a Horta de Cima
A Cova do Homem é minha
Crespo, Vale Covo e João Gago,
Pias, Ficalho e Vale Vargo
Namora o Monte da Vinha

Autor
Francisco Rafael Rodrigues, 
Por alcunha o Carinhas (16/7/1983) 


Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Texto e fotos: © José Saúde (2023).

___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

11 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...


almocreve
(al·mo·cre·ve

nome masculino
Indivíduo condutor de bestas de carga (em viagens periódicas ou não). = ARRIEIRO, ARROCHEIRO, AZEMEL, AZEMELEIRO, RECOVEIRO

etimologia; Origem etimológica:árabe al-mukari.

"almocreve", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/almocreve.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé: é interessante a aceção, mais abrangente, que tem, na tua terra, a palavra, de origem árabe, "almocreve"...No Oeste, era o homem que conduzia um conjunto de burros ou machos, ligados uns aos outrros ("em comboio"), transportando mercadorias de uma lado para o outro, em geral percorrendo distâncias razoáveis...

Ferrel, no concelho de Peniche, era uma terra de almocreves e de burros...Uns e outros extinguiram-se... O nosso camarada Joaquim Jorge escreveu sobre eles, no livro que publicou sobre a sua terra... Uma terra, acrescente-se, que deu uma companhia inteira (150 homens) para a "nossa guerra"...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2015/08/guine-6374-p15001-memoria-dos-lugares.html

José Saúde disse...

Luís, meu amigo, o "al", de origem árabe como bem referes, tem uma forte influência no sul do país, uma convicta razão que se prende com a presença dos árabes por estas bandas, ou seja, no Alentejo e Algarve.
Abraço,
Zé Saúde

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O almocreve alentejano era um "polivalente"...É isso. Na minhá região, com a mecanização da agricultura (mais cedo do que noutros sitios), já não tenho memória dos almocreves...

Dos vendedores ambulantes com carroça puxada por macho, lembro-me dos peixeiros (que "faziam" as aldeias) e do "pitrolino" (que vendia petróleo, azeite, etc., incluindo na vila). Ah!, e dos moleiros, sempre enfarinhados. ... Havia cento e tal moinhos de vento no concelho da Lourinhã nos anos 50
...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Outro vocábulo da nossa gíria, que não vem grafado nos dicionários, o "pitrolino"...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, lembremos aqui outras profissões que desapareceram, no campo e na cidade, com as mudanças operadas pelo desenvolvimento da econonia de mercado, os transportes, a urbanização, o consumo, etc.:

(i) leiteiro e/ou queijeiro que vendia porta a porta;

(ii) aguadeiro;

(iii) cocheiro;

(iv) correeiro (faz arreios albardas para os cavalos, machos e burros):

(v) sapateiro;

(vi) latoeiro / funileiro (no Norte tem outro nome que agora me falha);

(vii) limpa-chaminés;

(viii) borreiro (limpava comprava as as borras dos depósitos do vinho);

(ix) tanoeiro;

(x) amola-tesouras;

(xi) parteira/aparadeira;

(Xii) barbeiro-sangrador;

(xiii) boticário;

(xiv) alfaiate;

(xv) chapeleiro;

(xvi) taberneiro;

(xvii) vendedor de carvão...


São alguns dos ofícios e profissões extintos ou em extinção... De que me lembro às seis e tal da manhã.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Caldeireiro... Diz-se no Norte. Trabalha o cobre, a folha de Flandres... Faz alambiques, caldeiras, artigos de latoaria...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Deixem-me acrescentar mais alguns ofícios e profissões que desapareceram com a industrialização e o êxodo da população rural para as cidades e para o estrangeiro... E dentro das próprias cidadês, com a "modernização" (caso do aguadeiro e do limpa-chaminés, já citados).

A lista não é exaustiva...

(xviii) moleiro

(xix) lavadeira (no rio ou lavouro)

(xx) caiador (no sul, pintavam-se as casas com cal)

(xxi) varina / vendedora de peixe

(xxii) saltimbanco

(xxiii) vendedor de água fresca e capilé

(xxiv) quinquilheiros

(xxv) capelistas

(xxvi) outros vendedores ambulantes ou em feiras;

(xxvii) ardina

(xxviii) vendwdor de banha da cobra nas feiras

(xxix) modista / costureira / bordadura / alfaiate

(xxx) ajuntadeira (costureira de botas, sapatos, artigos de pele)

(Continua)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Queria dizer "bordadeira"... E podíamos acrescentar: tecedeira...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Falando do cocheiro (condutor de carroças, charretes, carruagens...), temos que falar do segeiro, o construtor de veículos de tracção animal. Ambos vítimas do automóvel...

Nas casa ricas o cocheiro passou a "chaufeur" ou chofer...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mas há (havia) mais:

fotógrafo "à lá minuta";
telefonista dos correios
boletineiro (entregava os telegramas)
engraxador de sapatos
calceteiro...

Outros vendedores ambulantes, sazonais, adaptaram-se aos tempos modernos: o assador e vendedor de castanhas...