domingo, 26 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18954: (Ex)citações (343): porquê tantos ex-seminaristas nas fileiras do exército, durante a guerra colonial? (António J. Pereira da Costa / Virgílio Teixeira / José Nascimento / A. Marques Lopes / Juvenal Amado)


Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).

Seleção de comentários ao poste P18949 (*)

(i) José Nascimento:

O saudoso alferes Joaquim da Costa Marques,  comandante do 3.º Pelotão da Cart 2520  (Xime e Quinhamel, 1969/70) também foi oriundo do seminário.

Pouco fiquei a saber dele, era uma irmandade de 9 ou 10 elementos, creio que de uma família modesta. Ainda me lembro que, no dia do meu aniversário em 1969 na Guiné, fez o seu voto de felicidades em Latim. Obrigado Marques, até um dia.

(ii) Juvenal Amado:

Seminarista: o capitão Lourenço do Saltinho. [Referência à CCAÇ 3490, que esteve no Saltinho (1971/74) e que teve uma trágica história (a emboscada do Quirafo em abril de 1972)]...

Seminário: para além do "Cabra Cega", temos o livro "Gente Feliz Com Lágrimas" de João Melo. Niassa, o cheiro no porão a vomitado, urina, nafta e maresia, o nosso miserável regresso 27 meses depois...

(iii) Anónimo:

É uma entrevista? Um diálogo entre dois camaradas seniores com muita experiência de vida? A sua leitura entusiasma, todas as questões humanas, sociais, laborais, políticas, religiosas, de guerra, são abordadas com o realismo, a lucidez, a verdade, de quem é adulto e sabe que a vida é finita.

Virgílio Ferreira no livro "Manhã Submersa" retrata bem o pesadelo desses garotos de doze anos, sobretudo dos meios rurais do interior do país, sem liberdade religiosa e sem liberdade de expressão por imposição dos pais, dos professores, dos padres e dos governantes, quando entravam nos espaços limitados e claustrofóbicos dos seminários e ficavam privados da liberdade de circulação pelas ruas das aldeias e pelos caminhos de terra dos campos onde a sua natureza de potros selvagens se expandia e conseguia nesse contacto sem barreiras com a natureza mais agreste da Terra sacudir o peso de imposições familiares e sociais.

Passei lá um ano, os meus irmãos, três, também passaram por lá, eu confesso que foi o pior ano de "tropa" da minha vida. Quase todos os filhos de lavradores, pequenos, médios e até grandes, da minha aldeia, da minha geração e da seguinte, fizeram essa malfadado tirocínio. Também é verdade que a maior parte se não o fizessem ficariam para sempre a lavrar e cavar a terra. Dessas gerações nenhum saiu padre.

Porque como os outros que procuram fazer a paz com a consciência, a verdade e o passado, eu confesso que só fui para a Guiné, por falta de coragem. Digo falta de coragem, porque eu nesse tempo para lá de alguma agricultura pouco ou nada sabia fazer.

Fui para lá convencido de que era uma guerra perdida e admirei muito os que pensando assim deram o "salto". O espaço do Blogue do Luís Graça e Camaradas da Guiné é um espaço livre, ninguém dúvida disso. Eu gostaria que pelo menos alguns desses "fugitivos" fizessem alguns depoimentos neste espaço.

Muito obrigado ao Luís Graça e ao outro camarada quase anónimo, que eu desconheço, sou doutros anos. Fico à espera da segunda parte e doutras se quiserem.

(Comentário de Francisco Baptista, não assinado por lapso)

(iv) António J. Pereira da Costa:

Ainda gostava de saber por que é que o número de ex-seminaristas era tão elevado nas companhias.

Em 1968, em 4 alferes possíveis 3 eram ex-seminaristas e havia mais nas outras CArts do BArt 1896. Mais tarde, em Mansabá, dos 3 existentes um era ex-seminarista e bastante avançado nos estudos. Quando no encontrámos recentemente fiquei a saber que quando ele saíu do seminário, só lá ficaram 10.

Era uma "crise de vocações" ou a Igreja que tinha deixado de responder às necessidades espirituais das pessoas, neste caso dos jovens seminaristas e futuros padres?

Jogo nesta última hipótese à qual teremos de adicionar o ambiente sócio-psicológico que se vivia em Portugal e a conivência da hierarquia com "o sistema". Era frequente encontrarmos "dissidentes" e críticos, mas só na parte baixa da estrutura, como era o caso do capelão do BCaç 4612. Mas era um fenómeno inexorável a deserção do seminário. Claro que a "tropa" aproveitava-se... atiradores, com alguma tendência para liderar (que se aprendia desde o início no treino dos seminários) faziam sempre falta.

(v) Virgílio Teixeira:

Eu julgo, em resposta ao António Costa, que existiam muitos seminaristas nos batalhões e companhias, mas a nível de furriéis e alferes, devido à escolaridade, pois no seminário era fácil fazer o 5.º para furriel e o 7.º para alferes, e depois deram o salto do seminário porque cá fora já podiam ter uma vida melhor, com a escolaridade que trouxeram do seminário.

Não contavam, talvez, que iriam fazer uma missão bem pior na guerra, do que a de seminarista e depois padre. Se bem se lembram, nos anos 60 não havia assim tanta gente com escolaridade para as funções na tropa de furriel e alferes, o mesmo não se pode dizer do soldado raso, pois desta matéria não faltou durante uns tempos.

Sei alguma coisa, mas não muito, o meu pai também esteve no seminário, saiu com uma grande escola de vida, que nunca teria se não o metessem no seminário, mas pouco mais sei, porque ele sempre muito fechado, nunca se abriu muito sobre estas questões.

Eu próprio, poderia ser hoje um ex-seminarista, ou um ex-padre, pois quando acabei a primária, acho que o meu pai tinha ideia de me mandar para lá, só que eu era rebelde demais para isso, e entretanto como foi mobilizado para a Índia, em 1955, não houve tempo para essas formalidades, e quando voltou passados quase 3 anos já era tarde demais, e assim me safei dessa!

Estou a falar nisto pela rama, mas pormenores não os sei, era tudo muito fechado.

(vii) A. Marques Lopes:

Só uma observação: não considero que o meu "Cabra-cega" seja "romance"... Usei, eu próprio, um pseudónimo como autor e outro como personagem do livro, dei também nomes fictícios a outras personagens reais. Mas os factos são reais, não são romance.   (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 23 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18865: (Ex)citações (342): O patacão da guerra: 1043 contos de 'ajudas de custo [de embarque] e adiantamento de vencimentos' foi quanto levantei em agosto de 1967 para o meu batalhão (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Leia-se também o que já aqui publicámos sobre os nossos "capelães militares"... Temos 80 referências com este descritor...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/capel%C3%A3es

Anónimo disse...



Dos ex-seminaristas fala-se mas não sei porquê apesar de aprenderem a falar , a ler e a escrever, poucos falam e escrevem, outros lhe dissecam as vísceras como se fossem aves frias e estranhas, do interior do país que nunca tiveram voz e autoridade religiosa ou laica para ser escutados entre as inteligências que do litoral governam tudo.
Francisco Baptista

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco, o teu comentário parece-me "sibilino"... Eu acho que o entendo... Mas há dois sujeitos da frase, se bem entendo: (i) os ex-seminaristas, apesar de terem aprendido a falar, a ler e a escrever, pouco falam e escrevem.. ; (ii) os do interior do país que nunca tiveram voz e autoridade para serem escutados pelo senhores do litoral...

É verdade: (i) os ex-seminaristas pouco escrevem sobre o tema "seminário, tropa e guerra colonial"; (ii) há um dicotomia interior-litoral, mais uma "assimetria" no discurso de uns e outros...

É isso ?... Um abraço, Luís

PS - COmo vai o teu livro ?

Anónimo disse...



Amigo Luís, entre um poste e outro, para mim não foi tudo claro, daí talvez o "sibilino" entre aspas. Nem tudo tem explicação ou por outro lado nem tudo merece ser explicado porque ao sê-lo pode-se expor demasiado algum mistério que deve existir sempre nas relações entre as pessoas de modo a não perderem o entusiasmo por um convívio estimulante.
Os seminaristas do nosso tempo foram os pobres, filhos de pobres, a maioria do interior, que na procura de mais conhecimentos e mais dinheiro se sujeitaram a viver ainda crianças nos seminários, grandes edifícios parecidos com enormes quartéis, frios, húmidos, impessoais, sujeitos a uma disciplina rígida e desumana ministrada por homens frustrados sem mulheres e sem filhos.
O meu ano no seminário , longe de casa, a viver numa terra plana, onde não havia mar à vista em alternativa, sem a amizade dos amigos de infância, sem o calor da família e da lareira. foi o pior ano da minha vida. Pior do que o pior dos três anos de tropa.
A maior parte dos seminaristas não falam dessa experiência como se de uma experiência traumática se tratasse. Esses anos de clausura, de estudo, missas diárias, rezas e penitências, que duravam por cada ano quase onze meses deixaram-lhes marcas psicológicas que em muitos deles ficaram sempre reconhecíveis na forma de ser, de estar e de viver. No rosto de alguns ficou sempre visível, um certo desânimo, alguma tristeza e ponderação a mais
Passei pelo mesmo seminário onde esteve o nosso camarada coronel Marques Lopes, autor do livro "Cabra Cega", que gostei de ler. Conheci personagens que ele retrata,, confesso que não me lembro dele, mas lembro-me bem dum amigo dele de Cabo Verde, um tipo afável e simpático que um dia me disse, nunca esqueci, que eu nunca seria padre porque tinha muitas irmãs. Esse enigma nunca o decifrei.
Conheci o padre José Maria, um transmontano bondoso e amigo de todos, o director, um padre mirandês, de Ifanes, muito severo. que para castigo de todos usava os argumentos e instrumentos de suplício das professoras primárias. Quando um dia me tratou assim, explodi e gritei-lhe que não tinha o direito de me tratar desse modo, pois não era meu pai.
Quis deixar o seminário mas não mo permitiram, no fim do ano expulsaram-me, talvez para assinalarem bem a autoridade deles.
O livro "Nó Cego" do camarada Carlos Matos Gomes, que li recentemente e também gostei muito, fala de um alferes, ex-seminarista que tem uma deriva, que além de afastada dos ensinamentos religiosos e conservadores da época, é também muito desumana. Aconteceu com alguns ex-seminaristas talvez originada pela discrepância entre a violência psicológica dos anos de seminário e a santidade apregoada por palavras.
Revejo-me nalguma tristeza que durante anos cobriu de névoa o semblante de alguns ex-seminaristas e que cobriu igualmente o semblante de muitos camaradas ex-combatentes.
O meu livro, um livro para algum neto, mais amante da leitura e curioso da vida familiar, recordar daqui a trinta ou quarenta anos está mais demorado do que o previsto. Penso organizá-lo este ano, sem prazo previsto. Gostaria muito que estivesses no seu lançamento, tal como o Carlos Vinhal. Sem vós ele não existiria
Francisco Baptista