sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24820: Notas de leitura (1630): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
A vida ensina-nos, no campo da investigação e noutros domínios, que é salutar para a consistência das ideias revermos textos importantes, e no caso vertente a entrevista que Carlos de Matos Gomes concedeu a 2 investigadores do Centro de Estudos de História Contemporânea, do Instituto Universitário de Lisboa, revela-se como uma das peças indispensáveis para o estudo da descolonização da Guiné, que pensaram e como agiram aqueles oficiais na génese da sublevação, como se constituiu o Movimento dos Capitães e o MFA, como foi possível, ato inédito, o grosso dos escol das Forças Armadas na Guiné terem feito o que fizeram; e como é indispensável o seu olhar para se entender o que foi a desmobilização das poderosas forças do Batalhão de Comandos Africanos, como se verificará no próximo texto.

Um abraço do
Mário



Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Li pela primeira vez este texto que vem integrado na obra Vozes de Abril na Descolonização, com organização de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, uma edição do CEHC – IUL, 2014, provavelmente no ano seguinte e fiz texto para o nosso blogue. 

Correu muita água debaixo das pontes, não se podia imaginar que a questão tivesse arrumada, é obrigatório que haja outras perspetivas sobre a descolonização da Guiné, mas o facto é que esta entrevista se mantém modelar e de indiscutível historicidade. Primeiro, porque este oficial do Exército não foi desmentido minimamente quanto ao processo organizativo na Guiné do Movimento dos Capitães/MFA; nenhuma opinião veio contrariar o que ele escreve sobre os acontecimentos do dia 26 de abril, fenómeno inédito comparativamente ao que se passou em Angola e Moçambique; e numa altura em que se retoma a questão polémica dos Comandos Africanos, com alardes de mentira descarada e de escamoteamento do rigor dos factos, até em pretensas teses de doutoramento, este oficial do Exército relembra tudo quanto se passou ao nível da desmobilização do Batalhão de Comandos Africanos e das duas unidades de Fuzileiros Africanos, preto no branco. Razões, parece-me, que justificam voltar ao texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes.

Para os autores deste projeto, o móbil subjacente era o de contribuir para o conhecimento sobre a descolonização portuguesa na parte final, olhando-a sobretudo a partir das dinâmicas locais das três colónias africanas em guerra.

Antes de se referir propriamente ao seu itinerário militar e à forma como se associou, a partir de 1972, à análise da evolução da guerra e as possíveis soluções admissíveis, é recordado nas colónias, tal como em Portugal, o processo da mobilização política foi desencadeado no anúncio da realização do Congresso dos Combatentes, a decorrer no Porto no início de junho de 1973, um elevado número de oficiais prontamente detetou que aí se ia procurar legitimar a continuação da guerra. 

O protesto a partir da Guiné reuniu mais de 400 assinaturas. Estava esta contestação em curso e apareceu outra, face à legislação que procurava suprir a carência de oficiais profissionais através do acesso a uma rápida carreira proporcionada a milicianos com serviço de guerra. Há entendimento de que a campanha contra os decretos deve ser considerada como o acontecimento fundador do Movimento dos Capitães do Exército. Constituiu-se uma rede onde passaram a circular informações, comunicados, cartas de discussão política.

Lá para os finais de 1973 a rede do Movimento dos Capitães encontrava-se organizada em núcleos implantados nos 3 teatros de operações. O entrevistado observa que na Guiné, onde o núcleo dinamizador da discussão política se encontrava em funcionamento desde o segundo semestre de 1972, a fase do movimento organizado começou no verão de 1973. E dá notas precisas. A Comissão Coordenadora formou-se em Bissau com major Almeida Coimbra, os capitães Matos Gomes, Duran Clemente e António Caetano. O núcleo da Guiné do MFA estabeleceu-se em 15 de maio de 1974, possuía uma assembleia de representantes dos 3 ramos das forças armadas, uma comissão central, e haveria uma organização formada depois do 25 de abril, o Movimento Alargado de Oficiais, Sargentos e Praças. Foi nesse contexto que se publicou em 24 de maio a circular do chefe de Estado-Maior das Forças Armadas integrando representantes deste movimento na cadeia de comando das Forças Armadas.

Retomando ao itinerário curricular de Carlos de Matos Gomes, depois da Academia Militar enveredou na arma de Cavalaria, esteve em Moçambique e Angola, aqui frequentou o Centro de Instrução de Comandos, voltou a Moçambique, foi instrutor na Academia Militar, seguiu-se a comissão da Guiné. Foi duas vezes agraciado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe. 

O seu percurso depois de 25 de abril: comandante do Batalhão de Comandos, na Guiné, em Portugal participou nas campanhas de dinamização cultural; em 20 de novembro de 1975 subscreveu o Manifesto dos Dezoito, documento que congregava militares defensores do poder popular de base. É do domínio público todo o seu intenso percurso literário, tanto na ficção como em obras de História Militar.

“Ofereci-me como voluntário para os Comandos Africanos da Guiné na medida em que entendia que a guerra só por si não tinha nenhuma saída. Queria participar, observar a solução que o general Spínola estava a ensaiar na Guiné então como assessor. Spínola procurava a solução político-militar para a Guiné isto enquanto o PAIGC, após o assassínio do seu líder produzia operações de grande envergadura, o chamado Inferno dos 3 Gs”. 

E considera que a partir daí a situação entrara numa fase de grande degradação. “A Guiné foi o ninho ou embrião de tudo aquilo que veio a ocorrer aqui em Portugal”. Não deixou de aludir à sua consciencialização política e aos contactos que estabeleceu em Bissau com José Manuel Barroso e Jorge Sales Golias.

Refere-se depois à génese e estruturação do MFA no território. Tudo começou com um grupo que integrava o entrevistado, Sales Golias, José Manuel Barroso, Duran Clemente, um oficial da Força Aérea e um engenheiro do Exército, reuniam-se regularmente no Agrupamento de Transmissões. Este grupo irá contestar o Congresso dos Combatentes e fará aliança com os spinolistas. Não deixa de mencionar fatores contextuais que lhe parecem relevantes: o aparecimento do jornal Expresso e as diligências de Spínola à procura de negociação com Cabral. Tem uma palavra sobre a reocupação do Cantanhez, no final de 1972: 

“Nós percebemos que essa operação tinha para o general Spínola, como objetivo explícito, marcar uma presença. Para nós isso significava que ele queria apenas dizer que ia deixar a Guiné mais ou menos como a tinha encontrado, e é isso que irá acontecer”.

Dirá adiante que o mês de maio de 1973 foi revelador da incapacidade de sustentar uma situação apenas pelas forças militares. Spínola parte definitivamente, mas o grupo continuou a reunir-se, e manteve-se muito ativo na altura em que surgem os célebres decretos que agitaram a corporação. Adianta que as cartas enviadas para o governo iriam alimentar divisões dentro do regime, a situação revelou-se imparável, o 1.º decreto foi alterado por um novo decreto, aumentaram os vencimentos depois dessa mudança de ministro. 

Volta a mencionar a degradação da situação militar e diz que as nossas unidades que chegavam à Guiné eram cada vez piores na preparação e que o potencial militar estava degradado. Tem uma palavra para reconhecer o papel importante de Diniz de Almeida na transmissão de informações na placa giratória entre Lisboa e as colónias em guerra. Em Lisboa reunia-se um grupo na Academia Militar.

Considera que os militares na Guiné eram levados a pensar muito politicamente.

“Ali era perfeitamente patente que Portugal tinha uma colónia que não tinham o mínimo de viabilidade. Ficava muito claro que a política colonial portuguesa era irracional! Irracional, porque os grupos que nós queríamos agregar numa entidade política, num Estado-Nação, não tinham nenhuma coerência entre eles, não se identificam com essa identidade que nós queríamos criar. 

"No caso dos Fulas, eles eram inimigos dos povos dali e tinham ligações para o norte, com os Fulas do Senegal e para o interior, com os Fulas da Gâmbia e da zona da Guiné-Conacri. Daí que muitos dos nossos militares africanos tivessem famílias nos países vizinhos. Nós percebíamos que não havia nenhuma entidade política, nenhuma coesão política. 

"A Guiné, por outro lado, tinha um outro aspeto evidente para toda a gente, não tinha nenhuma viabilidade económica. E também não se percebia muito bem o que o PAIGC ia fazer da Guiné, de um território que não tem nenhuma riqueza. E isso punha em causa todo o colonialismo. Volto atrás: na Guiné havia essa consciência da incapacidade de fazer uma argamassa cultural e política daquele conjunto de povos”.

E a sua observação recai sobre os Comandos Africanos: 

“Eles faziam uma leitura como nós fazemos, como eu faço, de que a Guiné não tinha viabilidade como Nação. Eles, quando optaram por ficar com os portugueses, fizeram-no de uma forma muito consciente e, politicamente, muito informada, não por traição ao seu povo. Primeiro, eles não faziam bem a ideia de que povo eram, como, aliás, ninguém na Guiné fazia. Quem fala do ‘Povo Guinéu’, nem fala de guineenses, é o Spínola. Aquela gente que o vai procurar, e nomeadamente os Papéis, que são da ilha de Bissau, é fazer a ligação com aqueles que lhes podem dar alguma coisa e permitir que aquele espaço tenha alguma viabilidade. E era disto que nos falávamos, com franqueza, com o Saiegh e com o Sisseco e com alguns outros”.

(continua)


Carlos de Matos Gomes
Eu, Beja Santos,  e o Zacarias Saiegh, ambos no Pel Caç Nat 52, Bolonha de Finete, 1968
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24807: Notas de leitura (1629): "Memórias de um Combatente na Guiné de 69/71", por Diogo Aloendro; 5livros.pt, 2021 (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

Matos Gomes resume o sentimento geral que existia naquele tempo, sentimento que ia desde a Praia a Timor.

Guiné era uma Pedra no Sapato.

Evidentemente que foi pedra foi sapato, tudo ao charco, foi um alívio geral.

Mas como já vimos aqui atravez das leituras de Beja Santos, que era o caboverdeano Honorio Barreto que lutava antigamente sozinho pela Guiné, talvez Cabral estivesse a recriar um novo Honório.

Mas sem a luta dos comandos spinolistas durante vários anos, hoje não havia duas guinés vizinhas uma da outra.





Joaquim Luis Fernandes disse...

Muitas considerações se podem fazer fazer sobre a descolonização da Guiné, segundo a perspetiva que se queira seguir, levantando outras tantas interrogações. Por exemplo: O que se passou na Guiné, depois do 26 de Abril de 1974, foi descolonização ou abandono?

Um dia, talvez em Agosto de 74, no meu gabinete de trabalho no Depósito de Adidos, em Brá, um soldado milícia (?) dirigiu-se-me mais ou menos nestes termos: "meu alfero, no dia em que pessoal do mato vem na Bissau, corta nosso pescoço". E fazia o gesto com a mão em cutelo sobre o pescoço, para que eu percebesse bem o que dizia. Eu lá o fui contrariando, dizendo que não, que a guerra tinha acabado e que no futuro, passariam todos a viver em paz e como irmãos.

Outro dia, em finais de Agosto ou já em Setembro, já com a "tropa" do PAIGC no quartel em Brá, em sobreposição connosco, fui com um camarada, de que não recordo o nome, apenas as circunstâncias que o levaram de Lisboa para Bissau, pela mão do então Comandante Chefe, Carlos Fabião, fazer uma visita/entrevista, previamente agendada, ao comandante (?) das "tropas" do PAIGC instaladas no Depósito de Adidos. Fomos recebidos por 2 "soldados" armados de kalashnikov, que nos conduziram sob escolta ao gabinete do seu comandante e aí permaneceram até ao fim.
Da conversa retenho na memória do que nos disse, mais ou menos por estas palavras: ... "ainda bem que aconteceu o 25 de Abril, pois já estávamos cansados de guerra e das picadas dos mosquitos"... "não vamos exercer represálias sobre os que estiveram com a tropa colonial e vamos construir em conjunto uma nação independente em paz".

Olhando para o que aconteceu depois, nestes quase 50 anos passados, o que poderemos dizer? Muito sonho, muita ilusão... Eu estava iludido, mas o soldado milícia não.

João Carlos Abreu dos Santos disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rosinha, lanças um cenário que não deixa de ser verosímil, se bem que em História não haja "ses"... Mas podemos ter essa discussão do "sexo dos anjos"... (Há quem, mauzinmh0o, lhe chame "discussão académica")...

Se náo tivesse havido a guerra, e a africanização da guerra, e o regime de então tivesse reconhecid0o, a tempo e horas, o direito dos guineenses â autodeterminação (como fizerm oa 8ingleses e os franceses), e tivesse havido um referendo sob a égide das Nações Unidas, etc.. é provável que a Guiné-Bissau já não exsitisse hoje, sendo "canibaliziada" pelos vizinhos francófonos, o Senegal e a Guiné-Conacri (como tu insinuas).

A existéncia de 13 mil homens em armas, na sua maioria fulas (mas também de outras etnias, é bom não esquecer), ao lado da potència que administrava o território, é a prova de que havia uma guerra civil (e não apenas de "libertação"): de facto, os fulas não queriam que os "tugas" fossem substituídos pelos cabo-verdianos do PAIGC, sob a liderança do Amílcar Cabral...

O golpe de estado do 'Nino' Vieira, em 14 de novembro de 1980 (vai agora fazer 43 anos!) terá sido efusivamente aplaudido por muitos fulas e outros grupos étnicos... (Releiam-se as memórias do Amadu Djaló, o único comando guineense que passou ao papel e publicou as suas memórias de guerra...).

Mas também é verdade, e como diz o Matos Gomes, os fulas não eram particularmenet bem amados pelas outras etnias com maior peso demográfico (balantas, mandingas, biafadas...).

Cinquenta anos depois da indepência a Guiné-Bissau ainda não produz energia elétrica, e vai ficar dependente da Guiné-Conacri ... (A eletricidade produzida na barragem de Kaleta, na Guiné-Conacri, no âmbito do projeto da OMVG . Organização para Valorização da bacia do Rio Gâmbia, deveria ter chegado à Guiné-Bissau em setembro de 2018... E Bissau esteve (ou ainda está) sem electricidade por falta de pagamento à empresa turca Karpower, a única fonte de energia (um ge5rador montado num barco atracado).

Um tristeza para todos nós, guineenses e amigos dos guineenses... Mas ambém é verdade que o Estado Novo não quis ou não conseguiu deixar na Guiné uma mini-Cahora Bassa...

Antº Rosinha disse...

Luís Graça, em 1961 Portugal não contava para a colonização em África como não contava para os indianos em Goa, nem como Timor na Indonésia nem Macau na China.

Em 1961 se Salazar entregasse o destino da Guiné e Angola e Moçambique à ONU, em plena guerra fria, não sobrava nada, porque não contavamos para nada.

A Guiné em 1961, estava mais ocupada e colonizada do que Angola, portanto imagina o resto.

Para as colónias inglesas e francesas vizinhas o nosso conceito colonial estava ao nivel do tempo em que os franceses levaram o Casamance e os ingleses levaram o mapa cor de rosa, sem contemplação.

Se não somássemos aqueles ultimos treze anos aos 500 históricos, nem Amílcar Cabral tinha ficado na História.

Joaquim Luis Fernandes disse...

Numa nova leitura do Post encontrei nos parágrafos finais a resposta para a pergunta: descolonização ou abandono?

Diz o senhor Coronel Matos Gomes:

"A Guiné, por outro lado, tinha um outro aspeto evidente para toda a gente, não tinha nenhuma viabilidade económica. E também não se percebia muito bem o que o PAIGC ia fazer da Guiné, de um território que não tem nenhuma riqueza. E isso punha em causa todo o colonialismo. Volto atrás: na Guiné havia essa consciência da incapacidade de fazer uma argamassa cultural e política daquele conjunto de povos”.

E a sua observação recai sobre os Comandos Africanos:

“Eles faziam uma leitura como nós fazemos, como eu faço, de que a Guiné não tinha viabilidade como Nação. Eles, quando optaram por ficar com os portugueses, fizeram-no de uma forma muito consciente e, politicamente, muito informada, não por traição ao seu povo. Primeiro, eles não faziam bem a ideia de que povo eram, como, aliás, ninguém na Guiné fazia. Quem fala do ‘Povo Guinéu’, nem fala de guineenses, é o Spínola. Aquela gente que o vai procurar, e nomeadamente os Papéis, que são da ilha de Bissau, é fazer a ligação com aqueles que lhes podem dar alguma coisa e permitir que aquele espaço tenha alguma viabilidade. E era disto que nos falávamos, com franqueza, com o Saiegh e com o Sisseco e com alguns outros”.

Fica clara a opção pelo abandono.

E essa constatação, como ex-combatente e amigo da Guiné e de muitos guineenses deixa-me muito triste. Não posso deixar de pensar na sorte daqueles camaradas que nos foram leais e estiveram sob as nossas ordens e que abandonámos. Muitos deles foram fuzilados sem julgamento ou culpa formada.

Para quando um pedido de Perdão por parte de Portugal à Guiné Bissau e aos nossos ex-camaradas e suas famílias, pelo desleal abandono a que a que foram sujeitos?