domingo, 29 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24804: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte IV - A lavadeira... lavada em lágrimas


Guiné > Região de Quínara >Fulacunda 1972/74 >  Lavadeiras na Fonte Velha

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné], com a devida vénia


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*). 

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro.  Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte IV - A lavadeira... lavada em lágrimas (**)

A primeira foi a Califa, uma menina ainda muito nova. A esta distância no tempo já não me lembro como foi que ela apareceu como minha lavadeira, talvez já desempenhasse esse serviço para os condutores que nós fomos substituir. Apesar da sua idade… era muito responsável. 

Passados alguns meses da nossa companhia estar naquele local, a Califa deixou Mansambo e foi casar com um homem bastante mais velho que ela. Foi mais um acontecimento que me causou algum espanto (...)  ver uma menina com tão pouca idade ir casar com um homem muito mais velho, que diziam… já ter mais algumas a quem ela se ia juntar!

Depois da partida da Califa… a minha lavadeira passou a ser outra de quem já não me recordo o nome, mas não esqueci que era alguém bela,  elegante e muito calma, sempre bem vestida mais parecia uma menina identificada com outro tempo!... 

Apesar de ainda nova já tinha um filho que trazia sempre consigo quando vinha buscar ou entregar a roupa. Pouco tempo antes da nossa saída de Mansambo para Cobumba, um dia estava eu sozinho no abrigo, como acontecia muitas vezes, quando ela lá apareceu levar-me a roupa com o seu menino ainda pequeno às costas, como era hábito das mães… andarem com os filhos. 

Sentou-se na minha cama com o semblante carregado próprio de quem estava a sentir-se perturbada e disse-me:

- António, estou grávida.

António Eduardo
Jerónimo Ferreira
(1950-2023)
Notava-se que tinha vontade de falar… não sei se seria com todas as pessoas… Estivemos 
algum tempo a conversar em que foi ela quem mais falou, entre outras coisas, disse-me que o pai do seu filho e daquele que vinha a caminho… também era tropa e naquela altura estava em Bambadinca. 

Depois de termos estado algum tempo a falar, quando abalou, as lágrimas bailavam-lhe nos olhos, o que me deixou por momentos algo perturbado. 

Das mulheres com quem tive oportunidade de falar e de ouvir durante o tempo que estive na Guiné (atendendo ao tempo que por lá andei não foram muitas… ), era aquela alguém diferente de todas as outras!...

Em Cobumba não tive lavadeira, nem ouvi falar que houvesse por lá alguém que tivesse. A roupa que eu lá trazia vestida também era pouca, apenas uns calções e nos pés uns chinelos de plástico sem peúgos. Só durante a noite quando estava de serviço, a fazer reforço, que fazia todas as noites, algumas vezes vestia o camuflado. 

A minha falta de jeito para lavar roupa, apesar de ser pouca a que tinha de lavar, ajudou a valorizar ainda mais o serviço das lavadeiras que tive em Mansambo. Espero que ainda por lá estejam… e que a vida lhe tenha corrido o melhor possível. (...)

(Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parènetses retos: LG)



2. Na altura comentei: 

António, és um homem de grande sensibilidade e bem formado. O teu poste merece ser comentado. Dás-nos conta de dois dramas com que alguns de nós lidaram, sem meios para poder intervir ou ajudar: 

(i) o casamento precoce e forçado das jovens guineenses; 

(ii) a maternidade não desejada, a ausência de planeamento familiar, a poligamia, a separação do homem e da mulher devido à guerra...

É possível que o homem da tua segunda lavadeira, que chorou à tua beira, fosse da CCAÇ 12, aquartelada em Bambadinca e depois no Xime a partir de Março de 1973...

Lembro que Mansambo no meu tempo tinha escassa população. Fui lá diversas vezes. E, muito bem, recordas que em Cobumba, no Cantanhez, não havia lavadeiras...A guerra não foi igual para todos.

Saúde e um alfabravo. Luis | 31 de maio de 2021 às 12:51 

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriortes da sér ie:


25 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24792: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte II: partida de avião para Bissau, em 24 de janeiro de 1972, deixando a mulher e um filho na maternidade 

23 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24785: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte I: A porta estreita da vida

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