sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24797: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte III: Tem calma, és novo e o tempo há-de passar"


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadina > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Cartaz humorístico pregado numa árvore nas imediações do "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamava a "Maria Turra": "Bem vindo, welcome, bienvenu, bienvenidos. willkommem"

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74). O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. 

Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014). Aí esreceveu ("Quem sou eu"):

(...) Nasci a quinze de maio de mil novecentos e cinquenta, até aos cinquenta e três anos tive como companheira inseparável, a pressa.  Um dia, a doença bateu-me à porta de forma violenta, foi então que reparei que por onde tinha passado não era muito o que tinha visto, do que tinha ouvido, talvez não tenha dado a atenção que devia. 

A partir daí o meu modo de encarar a vida passou a ser diferente, passei a valorizar coisas que antes não dava importância e, outras que considerava  interessantes, afinal não tinham o interesse que eu supunha. Hoje, sei o que quero,  por isso penso assim e digo aquilo que penso, talvez  por isso tenha construído este blogue, que me permite falar para todos e  para ninguém ao mesmo tempo. (...)


II. Em Mansambo, de fevereiro de 1972 a março de 1973: "tem calma, ainda és novo e o tempo há de passar" (*)

(...) Os primeiros dias   [em  Mansambo, onde cheguei em fevereiro de 1972, e onde já estava instalada a minha CART 3493]  foram de uma tristeza enorme e difícil de explicar; recordo-me de um dos primeiros serviços que fiz, foi segurança à fonte, onde íamos buscar a água com que abastecíamos o aquartelamento para uso diário, que ficava a cerca de duzentos metros do arame farpado que circundava as nossas instalações, mas para fazer esse trajecto era necessário proceder à picagem do caminho todos os dias pela manhã, tendo em vista detectar alguma mina que a coberto da noite o IN lá pudesse ter colocado.

Ao chegar junto da fonte, cinco ou seis homens ficavam por ali a fazer segurança enquanto outros dois andavam com um unimog, o famoso "burrinho",  a transportar água para o aquartelamento. 

Eu estava triste pensando em quase tudo... e não encontrava nada que me levantasse o ânimo, por momentos ocorreu-me a ideia de escrever qualquer coisa… escrevi a seguinte frase: tem calma, ainda és novo e o tempo há -de passar; frase que sempre me acompanhou, e que eu li vezes sem fim durante o tempo que estive na Guiné.

Na minha especialidade de condutor, tinha como função principal o transporte de pessoal, as viagens maiores eram as que fazíamos em coluna a Bafatá, onde íamos com regularidade uma vez por semana, normalmente buscar, entre outras coisas, duas vacas que eram consumidas pelo pessoal da Companhia , eram animais de pouco peso, e outra coisa para nós não menos importante, que era o correio, naquele tempo, a única forma de ter noticias da terra, da família e dos amigos. Eu era um dos que recebia muita correspondência. 

Recebi cartas e aerogramas escritos todos os dias em que estive na Guiné, ainda que muitos chegassem no mesmo dia; também eu, durante o tempo que lá estive escrevi todos os dias para a minha esposa, quando recebia correspondência, respondia com uma carta, os outros dias escrevia aerogramas. Para outras pessoas de família e para alguns amigos também escrevia mas só aerogramas. 

Havia também quem ao longo do tempo de permanência em África raramente recebesse correspondência, quando chegava o momento da distribuição todos se aproximavam, mas para alguns, em vez de alegria, era um momento de acrescida tristeza, pois correspondência para eles não havia.

As viagens de transporte de pessoal aconteciam também quando elementos nossos iam participar em operações fora da nossa zona, assim como fazer segurança aos que passavam na picada na zona de Mansambo, em especial às colunas de abastecimento que iam de Bambadinca ao Xitole, e regressavam ao fim do dia, enquanto não regressassem tínhamos de estar algures na picada na missão de segurança que nos era destinada.

 (...) 
Quando saíamos de Mansambo, durante cinco ou seis quilómetros na frente do pessoal que seguia a pé e das viaturas, iam três ou quatro picadores tentando descobrir alguma mina que pudesse existir na picada, o que nem sempre conseguiam, eram momentos de grande tensão em particular para os condutores, durante esse tempo de picagem, só o condutor seguia na viatura, porque tinha que ser, senão nem ele lá ia… as minas anti-carro eram demolidoras, pobre daquele que tinha o azar de conduzir o veiculo que as accionasse, principalmente se ela rebentasse do lado do motorista.

O aquartelamento de Mansambo, naquele tempo em que a nossa Companhia lá esteve, de fevereiro de 1972 a fins de março de 1973, não era considerado muito mau, atendendo ao que acontecia em quase todo o território da Guiné.

Certamente não pensam assim… o furriel Ferreira, que seguia numa viatura na picada de Candamã que accionou uma mina e ele ficou sem um pé, ou o Silva do 2.º Pelotão que estava para vir de férias dentro poucos dias, e mais outro de quem já me não lembro o nome, que ficaram cada um sem um pé ao accionarem minas anti-pessoal. 

Durante o tempo em que lá estive, só uma vez fomos flagelados à distancia, onde o IN utilizou o morteiro 82, eu e mais cinco condutores estávamos nesse momento com o carro dentro dum grande buraco, que terá sido feito a quando da construção dos abrigos pelas companhias que nos antecederam, a carregar terra para levarmos para a oficina, estávamos a fazer uma pausa e todos a beber uma cerveja, a popular bazuca que era uma cerveja grande, creio ser de seis decilitros, quando ouvimos o som de disparo de um morteiro, uma saída. 

 (...) Antes no verão de 1972 vim de férias à Metrópole. A viagem de Mansambo até Bissau foi demorada, de coluna até Bambadinca onde estive três dias à espera de transporte, até que tive boleia numa avioneta que me levou até Bissau, de todas as viagens que fiz por via aérea foi a que menos gostei, onde estive mais três dias à espera do voo TAP que me trouxe até à Metrópole, onde passei um mês de férias. Férias… não sei se será a definição correcta, pois mesmo estando cá, o pensamento estava sempre no dia do regresso, que em breve aconteceria a terras de África.

No abrigo dos condutores tínhamos um faxina, era um miúdo da tabanca, que a troco de uns pesos nos ia buscar a comida à cozinha,  lavava a loiça e varria o abrigo, a quem eu prometi levar uns sapatos quando fosse de férias; durante o tempo em que estive na Metrópole, os meus camaradas mandaram o Sherifo embora, para ele a chatice maior não era ir embora, o pior é que o Fireira, como ele me chamava, provavelmente já não lhe dava os sapatos; mas não, assim que cheguei, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos novos, coisa que ele com treze ou catorze anos de idade nunca tinha tido.

No dia seguinte, o Sherifo na companhia de mais três meninos da tabanca, com alegria e a felicidade estampada no rosto, vieram levar-me uma galinha, momento que jamais esquecerei, e certamente o Sherifo também não, dentro do possível sempre procurei respeitar os nativos como pessoas iguais a todos os demais. 

Recordo-me de certo dia um grupo de condutores ter tirado um cabrito, que era de alguém de uma tabanca por onde passaram. Fui convidado para ajudar a comer o petisco mas recusei-me a participar. Era para mim uma forma de protestar ainda que em silencio contra um acto com que eu não concordava. Passados alguns dias, o dono do animal queixou-se ao Comandante da Companhia, tendo este ordenado o pagamento do valor do animal a quantos o tinham comido.

Em Mansambo todos os militares tinham uma lavadeira, que a troco de alguns pesos, moeda da Guiné, lavavam-nos a roupa e passavam-na a ferro. A Califa era a menina que me lavava a roupa, tinha só catorze anos, mas já estava vendida a um homem com cerca de quarenta. (...) (**)

(Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos  / Parêntes retos: LG)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

MAnsambo, a meia distância entre Bambadinca e Xitole era um não-lugar... Não tinha tabanca. Foi construído a pá e pica pela CART 2339 dos nossos saudosos Carlos Marques dos Santos e Torcato Mendonça, com abrigos subterrâneos.

Em 1968/1969. Levaram porrada, andaram na porrada, andámos todos atrás do Mamadu Indjai que foi gravemente ferido (para Moscovo, donde voltou para conspirar contra o Amílcar Cabral; seria fuzilado em 1973).

As mulheres de Mansambo eram das famílias dos guias e picadores. Um deserto como Gandembel e outros "resorts" turísticos da guerra..

José Botelho Colaço disse...

Xitole já em 1965 era um aquartelamento indesejável, a companhia que lá estava foi uma mártire da guerrilha, até as nativas em Bafatá quando não estavam de acordo connosco e nos queriam contrariar diziam: Jubi ói mira a Bó vai no Xitole. "Era como dizer lá tratam de ti".

Anónimo disse...

Boa tarde

Deixa saudades os escritos deste nosso camarada, com quem partilhei as instalações de Mansambo. O nome que lhe falta de um ferido, foi o primeiro cabo Ribeiro apontador de HK21 do terceiro pelotão. Dia 9 de maio de 1972, vésperas do rebentamento da mina que feriu o furriel que refere.
O autor fica connosco enquanto por cá andarmos.
Obrigado camarada.
António Duarte
cart 3493 e ccaç 12
dez 71 a jan 74