sexta-feira, 8 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8530: Os nossos médicos (36): O Dr. Gomes da Costa, o Sargento Marcos, o 1º Cabo Silvino..., naquele dia negro de 5 de Outubro de 1967, no HM241 (António Reis, ex-1º Cabo Aux Enf, 1966/68)

1. Excerto de um texto ("Dias negros"), retirado do livo de memórias do nosso camarada António Reis, ex-1º Cabo Aux Enf (HM241, Bissau, 1966/68), já aqui recenseado, A minha jornada África (Vila Nova de Gaia: Ed. Ausência. 1999. 67 pp.) [Imagem da capa do livro, à esquerda]:

(...) Chegar o helicóptero ou os helicópteros com feridos ou mortos era o dia a dia. Houve dias negros, dias de muitos mortos e feridos. Eu pensava muitas vezes como era possível haver festas na minha terra quando tantos rapazes com vinte anos morriam ou ficavam mutilados em África.


Um desses dias a que eu chamei de negro foi o de 5 de Outubro de 1967. Desta vez chegaram mais de quarenta. Todos queimadinhos. Dentro e até fora do hospital era um cheiro intenso a carne humana queimada; nove ou dez já chegaram mortos. Os outros foram transformados em múmias.

Estiveram lá apenas cinco dias, talvez o tempo que levou a providenciarem um avião especial para os trazer para Lisboa. Naqueles cinco dia eu apenas ia à caserna para passar pelo sono, fiquei em baixo ao ponto do Dr. Gomes da Costa ter dito:
- Tu e o Silvino, esta noite ides dormir, pois eu não vos quero turberculosos.

Eu não era obrigado a tanto sacrifício, mas foi a forma de manter os soros nos horários. O Dr. Gomes da Costa prescrevia, eu tinha os soros e a medicação, o sargento Marcos e o cabo Silvino passaram os cinco dias a mudar os pensos àquelas múmias sofrentes. Múmias, porque só se lhes via os rostos inchados e queimados. Sofrentes porque ele tinham em SOS Dolantina, Pedina ou Demoral. Eu chegava a aplicar duas juntas no sistema (estavam todos com desbridamento) e passado algum tempo eles estavam novamente a gemer com dores.

E assim chegou o quinto dia e o avião que os trouxe para Lisboa. Não sei quantos mais morreram, e os que se que se safaram, em que estado ficaram. Sei que foram cinco dias que nunca esqueci. Ainda hoje conservo na retina aqueles rostos, ainda hoje tenho nos tímpanos os gemidos deles; havia um que nos agarrava e não mais largava, chamando:
- Sr. doutor, sr. doutor.

Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-mde dito que tinha de arranjar forma de fugir daquela enfermaria senão morria ou ficava louco, mas mais duro era estar destacado no mato e aparecer lá no estado em que chegaram aqueles e outros desgraçados.

Desta vez, se bem me lembro, foi uma GMC que foi pelos ares com uma mina incendiária (…).

Fonte: António Reis - A minha jornada em África. Vila Nova de Gaia: Ed. Ausência. 1999. 24-25. (Excerto reproduzido  com a devida vénia...)
_______________


Nota do editor:

(*) Vd. 3 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5581: Os nossos médicos (13): Deus no céu e o Dr. Fernando Garcia... no HM 241 (António Reis / Luis Graça)

Último poste da série > 6 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8518: Os nossos médicos (35): Mais nomes de clínicos do HM241 do meu tempo (J. Pardete Ferreira)

5 comentários:

Anónimo disse...

Não consigo imaginar o que sofria este nosso pessoal dos Serviços de Saúde - quer nas unidades operacionais, quer nos hospitais militares. Perto do fim da recruta lembro-me muito bem de pedir a Deus para não me calhar a especialidade de enfermeiro.
Ficámos devedores do seu sacrifício, competência e dedicação.
É bom não esquecer que em poucos meses se transformava um escriturário civil em enfermeiro militar e um empregado de balcão em 1.º cabo ajudante de enfermeiro.A minha homenagem, pois, a todo o pessoal do Serviço de Saúde, em especial, médicos, enfermeiros, ajudantes de enfermeiro, maqueiros.
Um abraço,

antonio graça de abreu disse...

Uma GMC rebenta com uma mina incendiária (?) e há quarenta pessoas, "todos queimadinhos".

Não existirá aqui um certo exagero nos números?
Não posso pôr em causa o horrível sofrimento de muitas dessas pessoas, incluindo os nosso camaradas enfermeiros, diante de tão deploráveis e atrozes
situações, quase todos os dias.
Jamais esquecerei os 19 (dezanove!) mortos que tivemos em Cufar, a 3 de Março de 1974, com uma mina que explodiu debaixo de um batelão carregado de bidons de gasolina.

Mas vivíamos e participávamos numa guerra, ou não?

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Camaradas da retaguarda

Chamo a vossa atenção para a frase do António Reis, transcrita no Post: "...mas mais duro era estar destacado no mato e aparecer lá no estado em que chegaram aqueles e outros desgraçados".

Por outro lado há que ter presente aqueles "outros" que nunca apareceram no Hospital, porque os "pedaços deles" eram apanhados à mão na beira da picada e redondezas e alguns lá ficaram...em cima das árvores por ser impossível o acesso ou o acesso em segurança. De uma vez foram nove. Ser impossível apanhar todos os bocadinhos de carne ainda com pedaços de camuflado agarrados e que as formigas já comiam. A coluna tinha que seguir para não correr mais riscos.
É claro que foi imposs´vel "reconstituir" os corpos com os pedaços carregados na viatura da retaguarda, atribuindo o pedaço de perna aquele tronco e de quem era aquela cabeça despedaçada...

Esta era a realidade daquilo a que se convencionou chamar "mato".
Mas estar no "mato" não foi ter dormido todas as noites na sua cama de colchão de espuma,sem passar fome e sede,ter que beber a própria urina ou beber de poços de água com merda de macaco ou afim e não correr esse riscos referidos atrás.

Desculpem qualquer coisinha

Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Obrigado, Alberto Branquinho, por esta chamada de atenção. O facto de ter destacado o trabalho do pessoal de saúde podia, de facto, ser entendido como desvalorizador da abnegação e sacrifício do pessoal das outras especialidades que estiveram no mato. José Brás, na sua série "Vindimas e Vindimados" conta uma história em que chama a atenção para os perigos por que passavam também os enfermeiros que estavam em unidades operacionais. Um cabo enfermeiro, vindo do "ar condicionado" de Bissau tem tiques efeminados parece mesmo homossexual. Todos se afastam.
Uma coluna auto, emboscada, feridos e mortos, gritos, toda a gente deitada no chão a disparar: E diz-nos José Brás: "Outra coisa que ninguém mais esqueceu foi a imagem do Enfermeiro chegado de Bissau, indiferente ao tiroteio, cirandando sem parar debaixo daquele fogo danado, rastejando de ferido a morto, de morto a ferido, dando-lhes o melhor apoio que lhes podia dar na circunstância. Nem um arranhão sofreu e o pessoal não acreditava como podia ser isso, se o fogo era intenso e certo e ele circulava por entre as balas como anjo imune. No quartel, intervalando o choro pelos amigos mortos e feridos, o pessoal comentava: - O enfermeiro, hein?!" (P4453, de 2/6/2009).


Quanto ao 5 de Outubro de 1967 no hospital militar de Bissau: talvez haja engano de um dia, ou seja, em vez do dia 5 ser o dia 6. É que no dia 6 de Outubro, segundo Abel Rei, no seu "Entre o Paraíso e o Inferno..." (em que, para factos concretos, se baseou também na história da sua CArt 1661), em 6 de Outubro de 1967 "uma nova mina (desta vez incendiária!) com emboscada (por um grupo calculado em 80 elementos), junto ao local do rebentamento da mina anterior, faz 10 mortos e mais de duas dezenas de feridos, “com queimaduras, todos evacuados para a Metrópole". Em nota de rodapé diz: “para estas evacuações, foi preciso um avião especial de emergência que, ao chegar a Lisboa, fez correr a notícia de que Bissau tinha sido bombardeada, simultaneamente ‘boatado’ pelo inimigo)” (p. 114). "Notas de Leitura" de Luís Graça ao livro de Abel Rei, no P4820, de 14 de Agosto de 2009.
António Reis está, portanto, certo no que diz. O erro da data é irrisório.

Um abraço,
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

Só uma achega à parte final do comentário do Carlos Cordeiro para dizer que os mortos e feridos eram de Porto Gole, PelCaçNat 54 (que substituiu o meu 52), Policia Administrativa e CArt 1661. Vejam-se os Posts 2001 de 26-07-2007 (“granadero” queimado) e 2158 de 06-10-2007.
Abraço a todos
Henrique Matos