segunda-feira, 4 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte

 

1. Mais um episódio, trágico, de António José Pereira da Costa* (Coronel de Art.ª na reserva, na efectividade de serviço, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviado em mensagem do dia 2 de Julho de 2011.




A Minha Guerra a Petróleo (5)

Ai que me dói tanto!...
(Parte I)

O Paiva usava uns calções que lhe amarinhavam pelas pernas acima. Ou seriam as pernas que eram demasiado compridas para os calções que lhe haviam sido distribuídos? Não sei. Poderá ser que tudo se devesse a um excesso de zelo da costureira do Casão, daquelas que trabalhavam em casa e, periodicamente, ali levantavam os tecidos já cortados para os devolverem, alguns dias depois, sob a forma de peças de “fardamento pronto-a-vestir”. Tratar-se-ia, talvez, de alguém que entendeu que era necessário poupar no tecido dos calções que os “rapazes” usavam. Ou os calções seriam curtos porque a bajuda da tabanca resolvera cortar, bem fundo, o “carção di nosso furiel”, no momento em que foi chamada a ajustá-los, de acordo com as indicações do utente? Enfim, naquele tempo, o nosso fardamento era como os mercados são hoje, estava sujeito a flutuações. Às vezes demasiado curto, sobrando homem, no final do fardamento. Outras sobrava fardamento já o homem tinha acabado e assim parecia que o combatente estava mais envolto na farda do que vestido com ela. Artesanatos…

Esta história começa, quando o Coronel Rafael Durão me apanhou, vindo de Bissau, para me censurar a minha falta de jeito para a “psico”. Para ser franco, nunca detectei que a acção psicológica que fazíamos tivesse resultados muito palpáveis. Ou as “popes” (como, às vezes, se chamava à população, na nossa gíria), não acreditavam nela ou não era convincente, ou ainda, o que era pior, não havia mais população a conquistar. Claro que eu sabia que era necessário manter a população na nossa esfera de influência e que tal seria impossível se não se lhe melhorassem as suas condições de vida, mas aquela psico “barata” a que, às vezes, chamávamos a “vesícula”, essa não era uma prioridade, para mim. Creio mesmo e já o disse noutros lugares, que a população da Guiné já tinha feito as suas opções e que aceitava a guerra como uma fatalidade que não podia alterar.

Claro que o Coronel condescendia, em parte, e considerava válido o resto do meu trabalho, mas faltava qualquer coisa. Ouvi a reprimenda, conhecendo-lhe a maneira de ser. Não adiantava contrariá-lo, especialmente quando começava a dar sinais de nervosismo, tremendo uma das pernas. Depois de me dar “uma para desanimar e outra para animar” deu-me ordem expressa para montar um campo de minas em Mamboncó. Tudo porque o ComChefe não tinha dúvidas: o In infiltrava-se por ali, passando do Morés para o Sara e vice-versa. Não serviu de nada lembrar-lhe que periodicamente patrulhávamos aquele local a pé, e que as colunas auto passavam por aquela localidade abandonada, quase desde o início da guerra, duas a três vezes por semana. Quando o informei de que tinha, em arrecadação, na Companhia, talvez umas 40 minas anti-pessoal, ordenou-me que requisitasse mil. Achei um exagero e disse-lho, mas ele manteve a ordem e eu requisitei mil minas “AUPS ou similar”.

Zona e tabanca de Mamboncó, felizmente de novo repovoada. É perfeitamente visível, à esquerda da estrada Mansoa / Mansabá, o célebre carreiro do Morés.
Imagem Google, legenda de CV

O Serviço de Material, em Bissau, mostrou-se surpreendido e eu, por mensagem, expliquei que a justificação para a requisição só poderia ser obtida junto do CAOP 2. Tempos depois, recebi mil minas M-35, de menores dimensões e, portanto, menos potentes e mais dificilmente detectáveis. A mina AUPS, de fabrico italiano, tinha a forma de prato, com o disparador no fundo. Podia ser-lhe aposta uma “carapaça” de ferro seccionado, para criar estilhaços, no momento da explosão. A M-35, de plástico verde-claro e de fabrico belga, era pouco maior do que um queijo fresco e tinha o disparador montado na parte superior. Este, com a forma de um peão, era um objecto perigosamente engraçado. Por isso, um dos soldados da Bateria Anti-aérea já tinha ficado sem uma falange, ao pretender, com uma navalha, afiar o bico do pião, precisamente o detonador e, ainda na Academia Militar, um camarada meu tinha tido sorte igual ao manipular uma mina numa aula de explosivos.

A área a cobrir com o campo de minas era grande e não sei se barraria completamente a máxima largura da antiga aldeia. Se lançássemos uma simples linha de minas, poderíamos constituir um obstáculo com um quilómetro, (se a distância entre minas fosse de um metro). Porém, um campo de minas necessita de profundidade e densidade, o que obrigaria a colocar uma segunda, ou mesmo um terceira fiada de minas. Além disso, para que o inimigo não determinasse a lei a que o campo obedecia era necessário criar uma certa irregularidade na colocação das minas. Optei por criar uma linha de triângulos equiláteros, no vértice dos quais ficariam as minas implantadas. Os triângulos teriam orientações diferentes e a ligação entre cada um e o seguinte seria feita também segundo direcções variáveis. Sabendo que a Natureza se altera quase de um dia para o outro, seria difícil encontrar referências permanentes que nos permitissem, mais tarde, localizar as minas, quando quiséssemos verificar o campo ou passá-lo à Unidade seguinte. Por isso, optei por adoptar sempre as mesmas medidas para os lados dos triângulos – dois metros – e para as “ligações”, seis metros. Usávamos uma fita métrica para medir as distâncias e uma bússola para definirmos as orientações de cada troço recto que fosse definido. Estimo que, deste modo, teria ficado negada ao inimigo a possibilidade de se mover numa frente de pouco mais de quinhentos metros.

As minas M-35 são inferiores às AUPS e, por isso, quando se me acabaram estas, resolvi aplicar aos pares as mil que recebera do Serviço de Material, mas por sugestão do Paiva, prescindi das “carapaças” metálicas que potenciavam o efeito das AUPS.

Qual seria a utilidade daquela medida ofensiva, se o inimigo não passava ali e se nós patrulhávamos o local com certa regularidade? Não creio que quem mandou colocar as minas – o ComChefe ou o CAOP – tivesse uma ideia precisa do que seria um campo de minas e, muito mais num terreno como aquele. Ao longo dos anos pensei várias neste assunto e acabei por concluir que tudo se deveu a uma necessidade de tomar uma medida qualquer que revelasse qualquer actividade que se pudesse reportar para o escalão superior, não tanto para apresentar serviço, mas antes porque era necessário “passar à ofensiva”. No fundo, a decisão ter-se-á ficado a dever a um certo desnorte que imperava entre os condutores da Guerra, na impossibilidade de inverter o curso dos acontecimentos. Partiu-se de uma avaliação incorrecta da situação, utilizou-se um meio perigoso e, como já se sabia, pouco eficaz para actuar sobre o inimigo e depois… depois foi o pior.

Sabendo como era perigoso o uso de minas naquele ambiente, resolvi fazer uma “batota” que me permitisse, pelo menos em caso de verificação, localizar rapidamente cada “cacho” de minas: liguei, com arame de tropeçar enterrado, os vértices explosivos. Assim, localizada uma mina (ou par) localizava as outras três com toda a facilidade. O In não conhecia este procedimento e, se detectasse ou accionasse uma mina até poderia levantar mais duas, mas como não conhecia a distância das seguintes e a respectiva orientação, teria de se ficar por ali.

Semanalmente saíamos o Ramos (o Furriel Amarelinho) já então casado e vivendo na tabanca com a mulher e o filho, o Paiva e eu (que vivia no quartel com a minha mulher) para, a pouco e pouco, irmos lançando o campo. Viviam em Mansabá, por sua conta e risco, três mulheres brancas, pois a estas duas teremos que juntar a do Costa – também furriel – que vivia na tabanca. Havia condições de espaço e habitabilidade no quartel e tabanca, mas era proibida a presença de famílias de militares metropolitanos em Mansabá. É curioso como esta proibição extensiva a tantas localidades, nunca foi considerada indício de que algo estava mal e que, ou a terra era inóspita ou o inimigo nos impunha a sua vontade… No fundo, não nos esqueçamos de que o país era um só e que a livre circulação de pessoas e bens é uma característica de qualquer país em paz, como seria o caso, segundo as autoridades.

Com dois grupos instalados à nossa retaguarda, trabalhávamos sem equipamento e desarmados e íamos colocando as minas de forma que elas só existissem à nossa frente. Colectávamos os elementos no campo, especialmente no que dizia respeito às orientações das ligações e lados dos triângulos. Depois, na tarde de cada dia, eu passava para papel de arquitecto o desenho do campo que ia surgindo.

O trabalho de campo era árduo, pois, passadas as temperaturas amenas da manhã, começávamos a suar e acusar cansaço. Penso que o suor nos empapava mais os camuflados do que se fôssemos andando pelo mato. Por isso, procurei que nunca trabalhássemos mais de duas horas. O regulamento – o célebre Manual de Minas e Armadilhas – obrigava à elaboração de um relatório onde o responsável pelo lançamento era obrigado a declarar que o “sapador” estava “bem comido, bem dormido e não fora incitado a apressar-se”.

Só relativamente à última condição eu tinha um certo controlo. Nunca fixei metas e, com a segurança montada, até podíamos fazer pausas. Mas, será possível que alguém que vai manipular umas dezenas de minas, no dia seguinte, durma bem? E terá apetite que lhe permita comer um pequeno-almoço que lhe garanta um teor de açúcar no organismo suficiente para que exista a concentração necessária à execução destas tarefas? Enfim, a situação era aquela e tínhamos que a aceitar, já que a não podíamos modificar.

Logo no primeiro dia poderia ter sucedido e comigo. Afastei-me da mina n.º 11 – a “onzima” – e, para não me esquecer onde a tinha deixado e poder continuar a partir dela, deixei-a assinalada com a bússola, um “pica” espetada no chão e um pequeno caixote de madeira vazio. Ao voltar pus o pé esquerdo no interior do espaço assim definido. Só quando senti o pé a ir abaixo é que vi que algo estava mal. Levantei-o mas seria tarde, se tivesse pisado a mina AUPS em cheio. Assim, pisando-a pela beira, ela basculou, mas não explodiu. Calei-me e procurei que, para além do Ramos e do Paiva ninguém mais soubesse.

Porém, dias depois a Isabel soube. Foi durante um jogo de cartas, nós os dois, o Paiva e o Jota Lopes.

Falou-se das últimas actividades e o Paiva disse:

- Veja lá mas é se acaba com aquilo das minas. Eu posso não ter a sua sorte…

Ele descaiu-se e eu tive que explicar à Isabel a sorte tinha tido. Não me era possível acabar com “aquilo”. Por isso, paulatinamente, fomos continuando a lançar.

A dado momento, estávamos no par de minas 437. Não me recordo porquê, mas creio que foi por termos tido que intensificar a actividade de patrulhamento, parámos o lançamento das minas, durante uma semana ou duas. Passado esse tempo e sabendo das dificuldades de referenciar as minas enterradas, propus que me deixassem verificar o campo.

Entretanto, o Coronel Durão “descobriu” as nossas mulheres e, tendo falhado a proposta de que Mansabá passasse a ser considerada suficientemente segura para poder ser habitada por mulheres brancas, a Isabel regressou a Lisboa. Estávamos em meados de Março e eu terminaria a comissão em princípios de Junho.

Julgava eu…

(Continua)
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8229: Memória dos lugares (153): Cacine, ao tempo do Pel Rec Daimler 2049 e da CART 1692 (António J. Pereira Costa)

Vd. último poste da série de 28 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7880: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (4): Em Mansabá, os últimos tempos de guerra

3 comentários:

Luís Graça disse...

Tó Zé:

Nunca montei uma mina nem nenhuma armadilha. Felizmente não era a minha especialidade. Mas tinha (e tenho) muito respeito por que monta (na guerra) e sobretudo porque quem desmonta minas e armadilhas (na paz).

Também nunca (ao que eu saiba) pisei nenhuma A/P... Com alguns dos milhares de quilómetros que devo ter feito, a penantes, por sítios onde o diabo perdeu os cornos e o rabo, é possível que tenho posto o pezinho a escassos milímetros de alguma, tal como tu descreves... Já com minas A/C, apanhei alhuns sustos e calafrios: última, a 13 de Janeiro de 1971, a 20 meses de comissão, deu mesmo direito a andar de GMC numa montanha russa...

Tudo para te dizer, quão absurda e insensata era (e é) a utilização dessa arma cega, e que facilmente se vira contra o seu dono e senhor...

Juro que senti um calafrio ao ler o teu texto... Gosto, por outro lado, da maneira descomplexada e irónica com que abordas a este tema sensível...

A minha homenagem a todas as vítimas das nossas (e do IN) minas e armadilhas no TO da Guiné. O meu apreço pela coragem, sangue-frio, competência, nervos de aço, não só dos nossos especialistas de minas e armadilhas como dos nossos picadores... LG

Anónimo disse...

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