sábado, 24 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2300: Bibliografia (12): Memórias de outra tropa, de outra guerra, a da pesca do bacalhau: escovar a história a contra pêlo (José António Boia Paradela)


Ilhavo > Costa Nova > Agosto de 2006 > José António Boia Paradela, arquitecto, amigo de infância do Comandante Valdemar Aveiro... Também ele, filho e neto de gente do mar, andou embarcado, até aos 18 anos, na pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra... Uma experiência, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro - "para os amigos" - Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, que eu tive a honra e o prazer de prefaciar.

O que o meu/nosso querido Zé António - amigo comum, meu e do Capitão Valdemar Aveiro - escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssimo e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados....

Não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista ou pessimista, escrita sob pseudónimo (Ábio de Lápara = Boia Paradela). No final, Irineu - um dos personagens da narrativa e, seguramente, um alter ego do autor - (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago, e que um ilhéu, um ilha...vense, mesmo quando deixa a sua ilha, em busca de mundo, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro… (LG).

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.


Título: 80 Graus Norte: Recordações da Pesca do Bacalhau.
Autor: Valdemar Aveiro
Editora: Papiro
Ano: 2006
Nº páginas: 166
Preço: c. 17 €

"Nítidos e cheios de expressivas imagens são os relatos que faz da sua vida na faina da pesca. Sem nos apercebermos, somos convidados a entrar a bordo do seu navio e fazermos companhia ao nosso comandante nas amarguradas horas de forçada prisão em mares gelados, verificando in loco como a força do homem e até os seus mais modernos conhecimentos ali parecem tão pequenos e sem valor, comparados com a brutal força dos elementos da natureza." (Excerto do prefácio, do Capitão António Marques da Silva).

Título:Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar
Autor: Valdemar Aveiro
Editora: Papiro.
Ano: 2006 (2ª ed., 2007)
Preço: c. 17 €




1. Texto do editor L.G.:

O capitão Valdemar Aveiro é um velho lobo do mar, natural da Gafanha da Nazaré, Ílhavo, terra que tem dado, a Portugal, ao longo da sua história, grandes marinheiros, pescadores e capitães... Passou 35 anos da sua vida na pesca do arrasto do bacalhau, a bordo, e capitaneando grandes lugres. Hoje, está em terra, com funções de gestão em empresa do sector piscatório ao mesmo tempo que vai passando e repassando para o papel as suas memórias...

Em 2004 saiu o seu primeiro livro, Figuras e Factos do Passado: Recordações da Pesca do Bacalhau, numa edição infelizmente nada profissional da Câmara Municipal de Aveiro. Quando o conheci, através de um amigo comum - o Arq. Zé António Paradela, da empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, Lda -, ele teve a gentileza de me oferecer ume exemplar desse seu primeiro livro, autografado.

Foi uma revelação, para mim, essas estórias - épicas, dramáticas, picarescas, burlescas, mas sempre humaníssimas - dos nossos marinheiros e pescadores da Terra Nova.. Fiquei de lhe fazer uma recensão crítica que nunca chegou a aparecer, à luz do dia, no meu blogue, na altura o Blogue-Fora-Nada...

Por outro lado, sempre me intrigou o facto de, durante a guerra colonial, se poder optar pela dura pesca do bacalhau como alternativa à tropa e à guerra... O Comandante Valdemar terá recebido - imagino eu - largas e largas dezenas, ou centenas, de pedidos para aceitar a bordo mancebos que se queriam livrar da Guiné, Angola ou Moçambique... Um belo dia destes, na Costa Nova, hei-de falar com ele sobre esta outra tropa ou guerra que se desenrolova nos bancos de gelo da Gronelândia e da Terra Nova...

Hoje vou-me limitar a reproduzir, aqui, a belíssima apresentação que o seu mano José António Paradela - e meu velho amigo - fez do seu livro, em 2ª edição, Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar... Pegando na inspiradíssima dica do Zé António, também eu direi que - à semelhança dos nossos velhos lobos do mar que hoje morrem em terra ! - compete-nos também a nós, que fizémos a guerra colonial, "escovar a história a contra pêlo"... Temos tentado fazê-lo, fazendo jus ao lema do nosso blogue: Não deixes que sejam os outros a contar a tua história!...

O Capitão Valdemar Aveiro, como como todos os mareantes, é um execelente contador de estórias. Tem, além do talento, a grande vantagem da vivência e da autenticidade... Que ele seja um exemplo inspirador para todos nós, amigos e camaradas da Guiné.

Boa saúde, boa viagem, meu caro comandante! Luís Graça

2. Aveiro, Setembro de 2007. Na apresentação dos “Grandes Trabalhadores do Mar ”

Texto de José António Paradela, Arquitecto


“…E dentro de uma geração quem é que se lembrará disto? A menos que fique escrito, tudo se perderá no nada.” (Valdemar Aveiro)

Li novamente o teu livro e gostei ainda mais.

Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos.
Estava a lê-lo e a recordar-me de Alain Gerbault ( À la Porsuite du Soleil ), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville (Moby Dick).

O barco de que falas já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante.

Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.

Contudo esse argumento é para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.

Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas -, para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.

Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável. É a vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos!

Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!

Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória. À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (existem) e que marcaram o teu trajecto, quase sempre sobre as águas que do planeta são ainda a parte incógnita. Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitam, estes de quem tu falas.

São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.

O que afirmas na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram, e a falta que isso agora te faz.

Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões. Um tempo de outrora, mas também de hoje, por dentro de nós.

Este livro é o livro que faltava… Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto.

A história com H grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.

Walter Benjamim, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.

O teu livro, os teus livros, que para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo.

Haverá quem faça a história oficial da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos: Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.

O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo, aos seus instrumentos e às suas palavras. (Podes acrescentar no glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).

A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa muito por aqui: Pelas ligações orgânicas, e pelos copos… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal. Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema não existe, esquecendo que alguém terá de as contar.

E é este acto de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, este incontornável filtro da inteligência e do coração, que constitui a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.

Não contaste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, ou o peixe como Hemingway . Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses.

Ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos, ela não deixa de ser menos verdade. Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência:

“… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.

Um abraço do teu mano Zé
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2284: Antologia (66): A tropa do bacalhau, na Terra Nova e na Gronelândia: uma estória de vida (Joaquim Sampaio de Azevedo)

(2) Testemunhos sobre o Capitão Valdemar Aveiro:

Do Blogue Mar de Viana > 24 de Fevereiro de 2007 > Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar

Fui honrar o convite que a CMVC [Câmara Municipal de Viana do Castelo] me fez para o lançamento da 2.ª edição do livro, com título em epígrafe, do Capitão Valdemar Cravo da Cruz Aveiro que teve lugar a bordo do navio-museu Gil Eanes, atracado no topo Leste da doca de flutuação do Porto de Viana do Castelo.

A possibilidade de estar com o autor e demais pessoas ligadas ao meio marítimo em que me insiro e no qual vivi longos anos, é , à partida, motivo mais que suficiente para não desperdiçar uma oportunidade tão envolvente.

O capitão Valdemar é um nome sobejamente conhecido no meio bacalhoeiro, pelo seu perfil, pelo seu carácter, pela sua atitude, pelo seu sucesso e pelo seu humanismo. Estes atributos só por si dizem tudo do homem que passou 35 longos anos da sua vida na pesca do arrasto do bacalhau e disso dá testemunho neste livro que hoje lança em segunda edição.

Em 1970 fui pela primeira vez à pesca do bacalhau, como piloto do arrastão de popa Lutador, propriedade da extinta Empresa de Pesca de Lavadores em que o Capitão Ferreira da Silva era sócio-gerente.

Falei algumas vezes com o Capitão Valdemar sem que nos conhecêssemos . Isto acontecia com muitos de nós, capitães, imediatos, pilotos e telegrafistas especialmente, porque tínhamos comunicações entre nós e raramente nos encontrávamos em terra. Há histórias interessantes a esse respeito vividas por homens do mar que só vieram a conhecer-se depois que abandonaram a profissão. Este é um caso desses. Se o Capitão Valdemar não tivesse escrito este livro e não tivesse vindo a Viana fazer o lançamento, não sei se alguma vez nos chegaríamos a conhecer.

Interessante foi também o facto de termos histórias semelhantes a contar por ocasião do 25 de Abril, cada um à sua maneira, mas que estávamos ambos no mar e a bordo de navios bacalhoeiros quando se deu esse acontecimento marcante na vida de todos nós. A marca que deixou nas nossas vidas, a forma como cada um o viveu, são outras histórias interessantes e desconhecidas. Só por isso valeu a pena ter ido ao lançamento do livro ao Gil Eanes.

Do blogue Mukandas do Nelsinho >[Rio de Janeiro, ] 19 Fevereiro de 2007 > Homens do Mar...

Valdemar Aveiro é bem um daqueles típicos Lobos do Mar pelos quais, garoto de doze ou treze anos, eu nutria uma profunda e respeitosa admiração, quando o meu irresistível fascínio pelos maiores e mais belos Lugres de três e quatro mastros, me levava à margem direita do Rio Douro, onde aparelhavam para a perigosa e dura faina da pesca do bacalhau em mares gelados e traiçoeiros!

O Capitão Aveiro, eu soube ontem, acaba de publicar um livro contando as Histórias Desconhecidas dos Grandes Trabalhadores do Mar, que adivinho tratar-se de leitura imperdível para todos aqueles que gostam do mar e de aventuras vividas!Apesar da minha admiração por sua extraordinária pessoa, faz muito tempo que não nos encontramos e, pior, sequer temos nos comunicado! A apresentação do seu livro na RTPi, disparou minha vontade de buscar de volta os laços que nos ligavam, acabei telefonando e garantindo o convite de honra para uma sardinhada em sua casa na Gafanha da Nazaré!Então, até lá Comandante!

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