Diz o autor desconhecer como estas (6) histórias não saíram na edição daquele livro. Lembremos que o "Tarrafo" é composto por crónicas enviadas da Guiné para serem publicadas no Jornal da Bairrada, pelo, hoje considerado o primeiro repórter da Guerra do Ultramar, Armor Pires Mota, que foi Alferes Miliciano da CCAV 488.
ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 11
Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)
CRÓNICAS (AUSENTES) DE TARRAFO - 2
Por qualquer motivo, não incluí na edição do TARRAFO alguns textos que foram inseridos no Jornal da Bairrada. Ora aqui os recupero, passado meio século. Tal como aconteceu com o“Diário de Bordo” que naufragou com a nau do esquecimento.
Gente amiga
“Maio de 1964
Os que se refugiaram no Senegal sentem que aquele não é o seu chão. E, quando souberam do nosso acantonamento junto à fronteira, alguns homens grandes vieram falar à tropa, ao capitão [Correia Arrabaça]. Queriam regressar, ajudariam a tropa a fazer o quartel e a patrulhar a zona, quando lhes déssemos armas, fariam ali as suas moranças, o seu chão seria ali. Além fronteiras, sofriam fome, privações e muitas vezes iam à suas antigas aldeias buscar alguns víveres. Ainda há dias encontrei meia dúzia de homens com mantimentos à cabeça, aos ombros. Perguntando-lhes o que faziam por ali, vi que lhes podia dar boleia até ao acantonamento. Dali ao Senegal a distância era mínima.
Falaram dos terroristas: “ bandido levar gente amiga de Português para o mato, roubar tudo. Assim, a gente sem arma, fugir”. Queixaram-se também de fome e privações: “no chão de Francês corpo dói, cabeça dói e gente mesinho cá tem… no chão de Francês vianda cá tem”. Era sabido que muitos naturais do país vizinho, e em tempos sucedia o mesmo no sul, vêm por vezes aos nossos postos de socorro da fronteira.
Gostariam de regressar, eram largas centenas. Não queriam estar mais debaixo da bandeira do Francês.
O caso foi exposto a quem de direito.”
Jornal da Bairrada, 6 Março 1965
************
Onde há macacos…
Jumbembem, 11 de Dezembro de 1964
Caminhávamos, há três horas, na húmida noite do capim. Ao amanhecer, entrámos na tabanca. Deixámo-la intacta como não tivesse ares de comprometida. De cima da avioneta, o tenente-coronel [Fernando Cavaleiro], ia dando indicações, por aqui, por ali. E assim fomos ter à estrada, vencendo a bolanha.
Dois bandidos, vestidos de azul, sentados na berma, junto de um monte de árvores tombadas, ficaram surpresos e apalermados, não nos esperavam ali.
– Olhe bandidos! – disse o Estremoz, num cicio de espanto.
Cheguei-me junto dele. Apontou, carregou no gatilho e… nada. Ficou furioso. A arma encravara-se. Eles toparam a nossa presença e, fugindo, enrolaram-se no capim. Ainda atirei, mas em vão.
Certamente tinham vindo da emboscada montada à coluna auto em que houve dois feridos graves. O furriel enfermeiro, atingido nas costas, injectou e pensou o melhor que pode, os feridos, e somente no fim é que se injectou e pensou com a ajuda de um camarada. O Faustino, terrorista recuperado, contorcia-se com os estilhaços cravados num dos olhos.
Era a terceira ou quarta vez, que eu via tão de perto bandidos armados. Em combate, isso é difícil. De resto, nem mortos, é muito raro. Em geral, só rastos de sangue, guardas-de-corpo [amuletos]. É que, junto de cada atirador, há sempre quem saiba também dar ao gatilho. Assim, caso o atirador fique ferido ou morra, há outro que toma conta da arma e defenda a posição, o melhor possível, enquanto outros guerreiros arrastam para fora do local da emboscada o ferido ou o morto. E assim sucessivamente.
Um T6 sobrevoava-nos e o rádio-telefonista contactava o estacionamento:
– Estamos de costas…
Regressávamos. Eu falava para o Peixe e ele apontou-me:
– Olhe ali plantas de ananás!
Olhei. Por detrás das árvores, macacos saltavam, gritando. Achei a coisa natural, porque sempre ouvira dizer: “onde há macacos, não há terroristas"…
O Montes, que devorava um pedaço de pão com um naco de polvo assado do jantar da véspera, interrompia-me:
– Quando há-de ser o dia em que havemos de atirar-nos para o charco?
Mal eram ditas estas palavras, o fogo, vindo do mato, da esquerda e da direita, fez-nos arremessar para o chão em menos de um segundo. Os da frente tombaram de cabeça na bolanha. Encharcaram-se todos. Mas todos, num relâmpago, abriram uma estrondosa fuzilaria, estrondosa e cerrada. Por sua vez, a Fox batia a zona com fogo preciso e o T6 fazia acrobacias, metralhando, reforçando, desse modo, o estridular das armas.
Regressados ao quartel, pela calada da noite, houve grande choro para os lados de Bricama. Ouvia-se, quase imperceptível, o rumor dos tambores. Muitos haviam tombado definitivamente.
“Onde há macacos, não há bandidos"…
Pelo menos para nós, pela primeira vez, isto era mentira.
Jornal da Bairrada, 29 Maio 1965
************
Despedida com lágrimas
Jumbembem, 14 de Agosto de 1965
A minha companhia teve conhecimento no dia 13 de Junho que ia abandonar Jumbembem, no dia seguinte, rumo a Farim. Houve lágrimas e euforia. “A aldeia ficou muito triste quando soube [dia 13 de Junho de 1965] que íamos ser rendidos. Alguns homens e bajudas [raparigas] começaram a pedir-nos fotografias para recordação. O Bassiro[chefe da tabanca], de voz entaramelada, desenhou no rosto olhos húmidos de saudade. Éramos amigos e íamos partir para sempre”.
“Para nós foi dia de festa e algazarra. Cervejas, abraços, gritos do viva a peluda! O Caracol puxou do acordeão e logo se lhe juntou uma comitiva terrível de euforia: soldados batiam latas, cantando, enquanto as miúdas batucavam, saltando, batendo palmas. As ruas encheram-se de música, à luz da lua que alongava os ramos dos mangueiros sobre os tectos das moranças. Cantar para melhor cicatrizar as carnes frescas de sofrimento, as feridas que a guerra nos abriu, embora nos recordemos sempre”.
[No dia seguinte, houve a cerimónia ritual da despedida, à volta da bandeira hasteada]
“Os homens alinhados no terreiro, fardas coçadas, esperavam o toque do clarim. Havia olhos febris, ensonados. Dormir, quando se faziam tantos planos? Além disso, a noite fora de festa e algazarra, ar morno e lua enorme em forte e irresistível magia a bater-nos no peito. Cervejas, abraços, gritos. O Caracol puxou do acordeão de novo e logo se lhe juntou uma comitiva terrível, eufórica: os soldados batiam latas, cantando num coro dissonante, esganiçado, mas verdadeiro, e as miúdas, a Ansaro, a Usita, todas de sorrisos brancos caindo dos lábios, encabeçavam o cortejo, batucando, saltando, cabriolandso, batendo palmas. Encheram-se as ruas de música. E pouco importava que eles viessem farejar o ararme-farpado. Seria uma despedida em cheio, com golfadas de aço e estridular fogoso das nossas armas, onde muitos haviam gravado o nome da mãe, namorada ou noiva.
Jumbembem, 1964/65 - Grupo de bajudas cujas blusas lhes foram ofertadas pelos alferes de CCAV 488
Jumbembem - Mostra de grande empatia que se estabeleceu entre a população e a tropa. Cp Fernando Tomaz filmando a menina Usita, no fim de uma dança. Criança que, rapariga feita e bonita como era, se enamorou, de verdade, de um alferes. Teria uns belos 18 anos. Casou, foi viver para Bissau, mas não foi feliz. Morreu cedo.
A aldeia triste saiu toda a terreiro. A tropa que ela tanto amava, ia partir para Lisboa. Lisboa significava para longe, para nunca mais. Uns pediam fotografias; outros, simples lembranças. E o Bassiro, o homem grande da tabanca, adiantado, de voz entaranelada, deixava desenhar nos olhos húmidos duas brancas conchas de tristeza, enquanto a Salimaro, criança encantadora, chupava dois rebuçados que algum soldado havia distribuído.
O burburinho cresceu. As camionetas da companhia que nos vinha render, ultrapassaram os frisos de arame farpado num ronronar confuso e os soldados comentavam as duas caveiras de boi, chifres espetados no ar, provocadores, encimando a entrada. Depois desceram, dispersaram-se em pequenos grupos, mirando, inquirindo as instalações, os fortins de palmeira e terra, o rio a morrer de sede, a redondeza luxuriante.
Com a tropa nova no tereno, o clarim, soou. As notas marciais estremeceram o peito, a manhã clara a prometer um sol violento e perderam-se na selva imensa, num desafio quase irónico. Os soldados, perfis homérico de leais espartanos, rígidos e impecáveis como estátuas, plantaram os olhos na bandeira esfarrapada que subia a bailar, a enrodilhar-se no vento sul.
Jumbembem - Tarja de saudação da CCAV 488 à Companhia que a foi substituir
Num rápido desdobrar de memória, vejo o Montes, de boina castanha sempre tombada sobre a orelha, carregado de manhas de contrabandista que fora, voluntarioso e de uma ferocidade cruel na luta; o Salgueiro, medroso como uma mulher, que não era capaz de denominar o medo. Mas que ultimamente amassava e cozia saboroso pão. Mas quem o ouvisse falar, dava-lhe honras de herói. E lembrava os soldados negros: O João, o Lassana. O João de fina argúcia, inteligente e sonhador, e o Lassana, baixo, calado, mas ambos grandes e iguais a qualquer branco. E murmurei os nomes do Peixeiro e o Rogério, eternamente ausentes.
Jumbembem - A "padaria" do aquartelamento
Voltou a soar o clarim. Todas as mãos caíram ao longo da farda numa pancada seca e curta. O sol, de arranhar-se na selva, vinha sangrento e criador.
A hora da partida trouxe já um sol violento. As crianças e as raparigas, de olhos tristes, formaram cortejo para nos beijarem. Quando a hora chegou, então foi um nunca mais acabar de apertos de mão. As mulheres diziam-nos coisas comovedoras e tivemos de engolir uma ou outra lágrima.
Os motores das viaturas começaram a ronronar. Eram os últimos apertos de mão e os últimos beijos das crianças. Entoámos o Hino do Batalhão [da autoria do major Alexandre António Bahia Rodrigues dos Santos] e as viaturas começaram a mover-se devagarinho, a sair do quartel. Os negros saltaram para a estrada. E então foi a explosão dos acenos e das lágrimas, rumo a Farim”.
Jornal da Bairrada, 21 Agosto 1965
[Esta gente boa, com quem fizemos empatia e amizades, recolhera à nossa protecção. Erguemos-lhes casas novas em adobes de terra e viveu connosco todo o espectro de uma guerra, sofrendo com a tropa os desaires e alegrando-se quando não havia feridos e mortos. Éramos quase uma família, cujos membros se respeitavam. No meio da parada, havia o pau para hasteamento da Bandeira Nacional e à sua volta, foi desenhado com garrafas de cerveja o emblema do Batalhão, o que era também nosso ponto de honra].
____________
Nota do editor
Vd. postes da série de:
25 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão
27 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!
29 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12360: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (3): Diário de bordo - Manhã azul e Deus ao leme
2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12378: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (4): Cinco dias no Niassa; A primeira grande experiência e Dois alferes de uma só vez
4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente
6 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião
9 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos
11 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12432: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (8): Aerogramas para a Lili (1)
13 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12444: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (9): Aerogramas para a Lili (2)
e
16 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12458: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (10): Crónicas (ausentes) de "Tarrafo" (1): Bandeira branca, O Vicente e Palhota sem luz
Sem comentários:
Enviar um comentário