terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12464: Conto de Natal (14): Recordações de 1964, de um Alentejo longe de África, onde os jovens de então matavam e morriam (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa Grã-Tabanqueira e Amiga Felismina Costa com algumas recordações do Natal de 1964:


Paisagem no Alentejo (foto: Digitalsignal / wikimedia), com a devida vénia


É Natal!

Sob um céu de chumbo, tão baixo, que parecia tocar a minha cabeça, o dia manteve-se igual do princípio ao fim. Nasceu e morreu igual a si mesmo, único, pois que não recordo outro assim…
Gelado!
Ninguém na rua podia estar parado!
Na lareira grande, onde cabíamos todos, ardia o madeiro de Natal!

Encostada às brasas, a panela de ferro, mantinha quente a água, qual esquentador do passado. Uma cafeteira de barro, onde a mãe fazia o café, passava lá os anos. De manhã, o seu cheiro aquecia e confortava, e o leite de cabra, directamente da produtora, promovia os nossos pequenos-almoços, que tinham à mistura, os sorrisos e as belas palavras dos nossos pais. Às vezes, um cheiro a migas ou a fatias de ovos, vinha ao nosso encontro e preparavam-nos para mais um dia de trabalho duro, mas gostoso. O vento livre, assobiava por entre as árvores e o canavial.

O frio, só se sentia lá fora. Ali, reinava o calor humano, a compreensão, o amor e o carinho. Na ampla e bela cozinha, uma janela, que se abria a nascente, enchia-a de luz. Às vezes, debruçava-me nela para olhar o sabugueiro que permanecia ali ao lado e o topo da cerca, que partilhava o muro já velho e em derrocada em vários pontos, com a cerca do ”Ti Zé das Corgas Fundas”, partilhávamos igualmente as ameixeiras, que ignorando divisões infiltraram as suas raízes por debaixo do muro, oferecendo aos dois proprietários os seus frutos temporãos.

A poente, uma fila de oliveiras fazia o traçado da quinta, antecedendo a figueira que se situava já perto do tanque, onde um cardo leiteiro, morria e renascia, todos os anos.

Sentado sobre o tanque, vejo com frequência, uma personagem que marcou os dias da minha juventude, na sua voz característica, no seu perfil incomparável, na sua convicção, no seu querer. O poço, donde tirava a água com um caldeirão, estava ali ao lado, deixando apenas uma entrada para a quinta, entre os dois.

Aonde vais coração?
Isso, já foi há muito tempo! Meio século atrás! Mas, não sei como estão tão presentes esses dias!

Era 1964!
25 de Dezembro de 1964!
Esse dia de Natal gelado e cinzento, cor de chumbo, aliava-se ao espírito dos portugueses da época!

Lá longe, os jovens de então, matavam e morriam, e ali, chorava-se a saudade, o medo da perda, o desespero de nada se saber ao certo, pois as notícias nunca eram do dia, e, as que chegavam mais rápidas, ninguém as queria.

Felismina Mealha
Em cada dia deste espaço de tempo.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12452: Conto de Natal (13): Um Menino Jesus antecipado na família Brian (Tony Borié)

8 comentários:

Anónimo disse...

Para o coração, não há um tempo, ele vai sempre onde quer, ainda que algumas vezes o dono lhe imponha o silêncio.
Como é bom escutar o coração.
Obrigado Felismina, com textos assim, o Natal está mais perto de mim.
António Eduardo Ferreira

Mário Vasconcelos disse...

Um texto muito gostoso, descritivo que chegue e muito tocante. Parabéns. Um feliz Natal e próspero ano novo.

Tony Borie disse...

Olá Felismina.

Tão doce, tão gentil, parecia eu, parecia qualquer de nós, parecia todos aqueles companheiros, que em jovens passaram aqueles Natais, na aldeia, onde o calor humano, aquecia mais do que todas as modernices e facilidades que hoje estão ao dispor de alguns.
Obrigado, pelo momento de paz que me fizes-te passar, ao ler o teu escrito.
Bem hajas.
Tony Borie.

Luís Graça disse...

Felismina, está aí a tua alma de poeta (ou poetisa), de mullher, de alentejana, de portuguesa... Em 25 de dezembro de 1964, eu tinha 17 anos e "sabia" que ia parar à guerra de África...Já não me lembro se, nesse dia, na minha terra fazia frio, chuvia ou estava sol... Não foi por certo um dia alegre... Mas no teu caso, não quiseste desvendar o "mistério"... Não é por acaso que referes esse dia, 25/12/1964, como um dia "gelado"...

E há uma figura, presente/ausente, que evocas com emoção contida: seria teu pai ? teu avô ? teu amigo ? teu afilhado de guerra ?

(...) "Sentado sobre o tanque, vejo com frequência, uma personagem que marcou os dias da minha juventude, na sua voz característica, no seu perfil incomparável, na sua convicção, no seu querer. O poço, donde tirava a água com um caldeirão, estava ali ao lado, deixando apenas uma entrada para a quinta, entre os dois." (...)

Um Natal de 2013, quentinho, amoroso, junto dos teus! Luis

JD disse...

Também gostei desta incursão da Felismina. Sensível, sofrida, com muito boa capacidade para colocar no papel es memórias do coração, a Felismina dá-nos sempres prazeres inauditos.
Só tenho para lhe dizer, que lhe desejo Boas-Festas natalícias, e que o novo ano lhe proporcione alegrias frequentes.
Um beijinho
JD

Juvenal Amado disse...

Pois é Felismina daquele tempo as memórias alternam entre doces e amargas.
Quantas vezes ansiei pelo vento gélido da serra dos Candeeiros quando em casa dos meus avós festejávamos o Natal.
Lá as saudades e o calor esmagavam, mas atrevo-me a afirmar que era pior para quem cá estava e tinha os seus lá.
Eu sou dos que estive nas duas situações e para os pais e esposas era ainda assim mais difícil do que para nós.
Mas você traça o retrato com tal perfeição e sensibilidade, que podemos ver e sentir o que foi aquele tempo.
É importante que continue a dar-nos estes momentos como quem revive a água clara dos ribeiros da nossa juventude

Um abraço

Rui Silva disse...

Sublime, a que a autora (ilustre) nos habituou.

Abraço, Felismina.

Rui Silva

Anónimo disse...

Olá Vizinha
Já tava com saudades suas!
Nesse ano de 1964 assentei praça em 13 de Outubro e em Janeiro de 1968 entrei para a vida. Depois, bem... depois, foi o que já se adivinha e calcula...
Um Feliz Natal e um Bom Ano na companhia de todos os seus.
Um Abraço do
António J. P. Costa